Villa Celeste (publicada em 1985 pela Ulmeiro e agora integrada em O Separar das Águas e outras novelas da Relógio d’Água) traz o subtítulo de «Novela Ingénua». Porque se trata de uma narrativa com cerca de 50 páginas? Porque a sua protagonista, Teresinha – e note-se o diminutivo carinhoso -, é ela própria ingénua, capaz de encontrar felicidade nas coisas mais simples, como uma criança? Porque se trata de um conto alegórico, com uma certa moral social, narrado como quem conta uma história, com um certo jeito oralizante? Ou, como apontou alguma crítica na altura, porque consiste numa novela de «simplicidade ideológica, homóloga aliás da singeleza do estilo e da linearidade da efabulação narrativa» ?
A autora foca-se aqui noutro tipo de pobreza, a de espírito, mas sem se desviar do tema da cisão social que se prefigurava em O separar das águas. A narrativa começa pelo fim, a anunciar o clímax que se seguirá – «Teresinha Rosa já passava dos sessenta quando a vida lhe armou um campo de batalha e ela tomou o gosto ao pelejar.» (pág. 85) – para depois recuar até aos vinte anos da personagem, momento em que «os pais, a braços com seis filhas para casar, a colocaram como costureira portas adentro» (pág. 85).
Mantém-se, ainda que de forma mais secundária, a questão da classe social, ou de como os ricos usam os pobres, inclusive sexualmente, e a representação da mulher em traços menos positivos. Teresinha quando é acolhida na casa de um ramo da fidalga família dos Lebrões, onde começa por trabalhar por costureira, passa portanto a viver no sótão (imagem recorrente na escrita da autora e que nos remete para esse livro…) e será visitada por mais de vinte anos pelo patrão, Manuel Lebrão (note-se o aumentativo pejorativo), que era conhecido como um libertino rapidamente rejeita a mulher mas mantém-se fiel à empregada. A mulher aliás encara essa situação muito tranquilamente: «Fora com muito alívio que a mulher, criaturinha anémica, de gestos empastados, se vira rejeitada dos nojos conjugais. Cumprira o seu dever parindo um rapazinho muito louro, enfermiço, que Teresinha acolheu no peito generoso. Uma vez garantida a permanência dos bens familiares em legítima herança, a senhora Lebrão passou a dedicar-se aos seus vários achaques e ao jornal da paróquia.» (pág. 86) (itálicos nossos). Só nesta passagem podemos logo relevar três aspectos centrais às primeiras obras de Hélia Correia: a camponesa, isto é, a mulher pobre, é mais forte e enérgica; as mulheres de uma certa burguesia ou velha aristocracia é descrita de forma débil e uma vez cumprido o seu papel de garante da sobrevivência da linhagem facilmente se desliga do marido, ou é por este rejeitado, que preferirá encontrar prazer em mulheres de classe social mais baixa; o sexo entre marido e mulher é muitas vezes descrito como algo grotesco e bestial.
A narrativa carece de precisão temporal ou espacial, mas acabaremos por perceber, quando Villa Celeste se vê rodeada de prédios em construção que estamos na periferia de uma cidade, onde não faltará um bairro pobre, e, através da referência aos cabo-verdianos e pedreiros, sempre descritos com simpatia e compaixão, que podemos situar a narrativa na altura da descolonização, quando retornados e emigrados procuram trabalho e casa perto das grandes cidades. A Revolução de Abril será também referida perto do final da narrativa, se bem que com uma certa ironia: «estava o país inteiro de grãozito na asa», «ali para milagres já bastava ver os polícias acariciar as criancinhas» (pág. 115). Teresinha Rosa que é ao início vista como uma bruxa ou uma velha louca (a andar pelo campo a apanhar ervas e a falar sozinha) acaba por ser depois percebida como alguém cuja principal vocação é ajudar e confortar, cada vez mais angustiada pelo urbanismo que grassa em redor da sua Villa Celeste: «Com aquela cidade nascida à sua volta, começou a sentir os males da solidão. (…) O que profundamente a perturbava era ver aqueles prédios a transbordar assim de criaturas a quem não conseguia falar ou ser prestável» (pág. 104). Ver artigo
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