Nuno Júdice nasceu na Mexilhoeira Grande, em Portimão, no distrito de Faro, em 1949. Ver artigo
Elizabeth Finch é o mais recente romance de Julian Barnes. A nova obra do escritor britânico desafia a definição de romance, depois de em O Homem do Casaco Vermelho, em 2021,nos ter oferecido um belíssimo livro difícil de classificar, pois vive algures entre a biografia, o ensaio, e o romance de uma época, a Belle Époque. Ver artigo
O Homem do Casaco Vermelho, publicado pela Quetzal numa luxuosa edição de capa dura vermelha, recheada de fotografias e reproduções a cores de obras de arte, é o mais recente trabalho de Julian Barnes. Este novo livro do autor britânico, com tradução de Salvato Teles de Menezes, é difícil de classificar, pois vive algures entre a biografia, o ensaio, o romance de uma época: «A Belle Époque: locus classicus de paz e prazer, charme com mais do que uma pincelada de decadência, um último florescimento das artes, e o último florescimento de uma alta sociedade instalada antes de, tardiamente, esta suave fantasia ser varrida pelo metálico e sem graça século XX» (p. 37). Por estas páginas desfilam Proust, Sarah Bernhard, Oscar Wilde, invoca-se Flaubert e Henry James, entre outros. Ver artigo
Julian Barnes, nascido em 1946 e por três vezes finalista do Booker Prize, é um dos grandes autores da literatura inglesa, publicado pela Quetzal, cuja obra revela versatilidade, cruzando géneros e temas diversos de modo a chegar aos sentidos possíveis da vida, em romances sempre inesperados. Depois de O Ruído do Tempo, em que num romance próximo de um ensaio, explorava a vida de Shostakovich e a sua liberdade criativa sob o regime totalitário estalinista, o autor envereda agora por um tema mais próximo, o amor, mas sob a perspectiva de um jovem apaixonado por uma mulher mais velha. Nesta recriação da história de Mrs. Robinson – para quem conhece o filme A Primeira Noite (The Graduate), de 1967, com Dustin Hoffman que se envolve com uma mulher mais velha, interpretada por Anne Bancroft –, Paul Casey, um jovem de dezanove anos, conhece Susan, uma mulher de quarenta e oito anos, no clube de ténis, e de parceiros de ténis passarão gradualmente a companheiros de vida. Num envolvimento muito pouco disfarçado, o casal irá afrontar a boa moral inglesa dos subúrbios, numa época em que os termos cougar ou toy boy eram desconhecidos, e as únicas palavras eram «adúltera e mulher fácil».
Aperceber-nos-emos gradualmente que o narrador é um Paul muito mais velho, a relembrar o grande amor da sua juventude e da sua vida. O narrador, inicialmente na primeira pessoa e mais tarde oscilando entre a primeira e a terceira pessoa, alerta desde logo o leitor: «Entendem (espero) que estou a contar-vos tudo tal qual me lembro? Nunca tive um diário e a maior parte dos que participaram na minha história – minha história e minha vida – ou morreram ou estão longe. Por isso não registo necessariamente os factos pela ordem em que aconteceram. (…) A memória organiza e filtra, segundo as exigências que lhe são feitas por quem lembra. Podemos aceder ao algoritmo das suas prioridades? Provavelmente não.» (p. 29)
Neste belíssimo e sublime romance relembra-se o passado, sem o reconstruir, até porque no amor há uma única história. E todos têm ou tiveram já a sua história de amor, a que se torna única e verdadeira. Especialmente quando a única história é a primeira, que marca a vida para sempre e empalidece todos os futuros amores. Mesmo quando essa única história tem um desfecho infeliz.
Aperceber-nos-emos gradualmente que o narrador é um Paul muito mais velho, a relembrar o grande amor da sua juventude e da sua vida. O narrador, inicialmente na primeira pessoa e mais tarde oscilando entre a primeira e a terceira pessoa, alerta desde logo o leitor: «Entendem (espero) que estou a contar-vos tudo tal qual me lembro? Nunca tive um diário e a maior parte dos que participaram na minha história – minha história e minha vida – ou morreram ou estão longe. Por isso não registo necessariamente os factos pela ordem em que aconteceram. (…) A memória organiza e filtra, segundo as exigências que lhe são feitas por quem lembra. Podemos aceder ao algoritmo das suas prioridades? Provavelmente não.» (p. 29)
Neste belíssimo e sublime romance relembra-se o passado, sem o reconstruir, até porque no amor há uma única história. E todos têm ou tiveram já a sua história de amor, a que se torna única e verdadeira. Especialmente quando a única história é a primeira, que marca a vida para sempre e empalidece todos os futuros amores. Mesmo quando essa única história tem um desfecho infeliz.
Escreve George Steiner que
«A música é a força anárquica que subverte a razão humana e o domínio sobre si da psique. Por isso, ela constitui uma ameaça direta à disciplina moral e mental, indispensável à ordem privada e cívica. Ela estimula e exalta de maneiras que escapam às economias da emoção às quais um governo adulto deverá almejar. (…) Lenine temia a possibilidade de que a Appassionata de Beethoven pudesse desviar a sua determinação blochevique das necessárias inclemências. A sublimidade wagneriana assume um papel de destaque na imagem que o Reich de Hitler almejava dar de si próprio.» (Fragmentos, pág. 51).
O novo romance de Julian Barnes, e que é grande literatura, como proclama José Mário Silva, trata justamente disso: de como a música transcende noções chãs como a razão humana, a disciplina, sistemas políticos, ordem e autocracia.
Apesar de Chostakovich (procurar também como Shostakovich que é a grafia mais comummente utilizada) reflectir diversas vezes na impossibilidade de a música expressar ironia ou sarcasmo – algo que Julian Barnes faz muito bem nesta sua prosa – a música é ainda assim algo de indefinível e que, ainda que possa ter servido para encantar as massas, sendo aproveitada ou subvertida por certos regimes como o soviético, neste caso, não deixa de ser superior ao ruído do tempo.
Em janeiro de 1936, Estaline sai intempestivamente da estreia de Lady Macbeth de Mtsensk, no Teatro Bolshoi, em Moscovo, o que naturalmente perturba extremamente o compositor ao ponto de preparar uma mala e passar a esperar no patamar da sua residência por quem sai do elevador, sempre na expectativa de ser arrastado pela polícia política. Curioso o início do romance, em que a própria mancha gráfica de parágrafos curtos e muito espaçados, dá conta dos pensamentos soltos da personagem de Chostakovich que já está à espera há 3 horas frente ao elevador, e a certa altura o narrador designa a «cacofonia de sons na cabeça dele» como «ruídos». Dois dias depois da malfadada estreia o jornal Pravda lança uma crítica com o título «Chinfrim em vez de Música», que pode até ter sido escrita pelo próprio Estaline – a técnica para identificar quando era o «Grande Lider e Timoneiro» a escrever ele próprio os artigos ou críticas era quando estes não tinham sido depurados de erros ortográficos, pois naturalmente ninguém se atreveria a corrigi-los.
Num romance tripartido sobre a vida do compositor mais celebrado pela União Soviético, mas nem por isso sem um grande custo para a sua própria alma e dignidade, Julian Barnes faz uso da corrente de consciência, mas sempre na 3.ª pessoa, levando-nos através dos pensamentos do protagonista, primeiro numa anamnese, apresentando-nos fragmentariamente a sua vida até à noite da estreia de Lady Macbeth de Mtsensk. Depois ir-se-á detendo na forma como Chostakovich tenta continuar a sua vida e obra depois de cair em desgraça para logo voltar a cair nas boas graças do regime, mesmo que isso implique ir-se anulando gradualmente, ao ponto de ler em público discursos que não escreveu e que já nem se preocupa em ler previamente: «E esse foi talvez o triunfo final que lhe impuseram. Em vez de o matarem, permitiram-lhe viver e, permitindo-lhe viver, mataram-no. Era a derradeira, irrefutável ironia da sua vida: permitindo-lhe viver, mataram-no» (pág. 190).
Julian Barnes escreve com mestria, com uma fina ironia. E ressalve-se que a ironia, mesmo que não possa ser aplicada à música, é afinal uma arma de defesa e de ataque contra o totalitarismo e a opressão. Se bem que Chostakovich chega a usar a ironia nas suas conversas com as figuras do regime que continuamente o pressionam subtilmente a fazer o que se espera dele. Por vezes retratando os seus actos e a sua vida com autocomiseração, outras vezes tentando ainda assim manter a dignidade, Chostakovich é perseguido pelo fantasma da pessoa que desejava ser, tendo sido obrigado a gestos nojentos, nas suas palavras, como assinar uma carta pública contra o romancista Soljenítsin: «Uma parte dele tinha esperança de que ninguém acreditasse – ninguém podia acreditar – que concordava realmente com o que as cartas diziam. Mas as pessoas acreditavam. Amigos e colegas músicos recusavam apertar-lhe a mão, voltavam-lhe as costas. Havia limites para a ironia: não podemos assinar cartas enquanto tapamos o nariz ou fazemos figas atrás das costas, confiando que os outros adivinhem que não queremos dizer aquilo.» (pág. 179).
Mas se Chostakovich conforme nos aproximamos do fim considera que aprendeu sobre a destruição da alma humana, também nos deixa uma nota de esperança, um acorde capaz de perdurar:
«O que podemos construir contra o ruído do tempo? Só essa música que está dentro de nós – a música do nosso ser -, que é transformada por alguns em música real. Que, ao longo das décadas, se for suficientemente forte e verdadeira e pura para afogar o ruído do tempo, se transforma no murmúrio da História.» (pág. 138).
Por vezes a escrita é tão sublime que parece aproximar-se do ensaio filosófico ou literário, como um manifesto político ou do que é a vida e a arte face às adversidades impostas pelo tempo em que vivemos: «A arte pertence a toda a gente e a ninguém. A arte pertence a todo o tempo e a nenhum tempo. A Arte pertence àqueles que a criam e àqueles que a usufruem. A arte já não pertence ao Povo e ao Partido, tal como já deixara de pertencer à aristocracia e ao mecenas. A Arte é o murmúrio da História, ouvido sobre o ruído do tempo. A Arte não existe pela arte: existe pelas pessoas» (pág. 104).
Este é decididamente um romance cinco estrelas a não perder!
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