Outra distopia para aqueles que gostaram da série distópica Black Mirror (originalmente britânica e cuja terceira temporada foi criada pela Netflix) esta obra publicada em 2013 e lançada entre nós pela Relógio d’Água em Outubro de 2016 foi adaptada ao grande ecrã e estreia esta semana com Emma Watson e Tom Hanks nos principais papéis. A escrita é clara e translúcida, o que contribui para um livro que é enganosamente simples no seu artifício e prendeu-me desde a primeira página – foi a leitura do fim de semana. A narrativa começa com o primeiro dia de trabalho de Maebelline Holland no Círculo, a empresa de Internet mais influente do mundo, cujas instalações são designadas como campus e cada pavilhão tem um sugestivo nome histórico. As vantagens e regalias dos funcionários do Círculo são muitas, e não é por acaso que todos ambicionam poder ingressar nos quadros da empresa:
«A empresa tinha tantas coisas a acontecerem, tanta humanidade e espírito positivo, e era pioneira em tantas frentes, que Mae sabia que estava a tornar-se melhor só por se encontrar perto das pessoas do Círculo. Era uma espécie de mercearia orgânica bem gerida: sabia-se, ao fazer compras ali, que se ficava logo mais saudável; não era possível fazer uma má escolha, porque tudo já tinha sido verificado antes. Do mesmo modo, todos os funcionários do Círculo tinham sido escolhidos, por isso o património genético era extraordinário e a capacidade cerebral incrível. Era um sítio em que todos se esforçavam, de modo constante e apaixonado, para melhorar, para melhorar os outros, para partilhar o conhecimento, para o espalhar pelo mundo.» (pág. 92).
Há diversas inovações como chips que permitem localizar as crianças para evitar raptos; telemóveis que identificam os códigos de barrar dos produtos que terminaram em casa e automaticamente fazem nova encomenda; câmaras de vigilância que são facilmente ocultáveis; políticos que vivem numa espécie de reality show exterior, transmitindo em vídeo através de uma câmara que transportam num colar como forma de provar a transparência das suas acções; referendos feitos online que podem instituir medidas imediatas; pulseiras que medem o número de passos dados, mas também o rítmo cardíaco, pressão arterial, colesterol, diabetes, fluxo térmico, consumo de calorias, duração e qualidade do sono, eficiência digestiva, medir a resposta galvânica da pele, o pH do suor para notificar a pessoa de que tem de beber água alcalina, etc.. O próprio Círculo era um sistema operativo unificado que combina online tudo o que antes estava disperso: perfis dos utilizadores das redes sociais, sistemas de pagamento, várias palavras-passe, contas de correio electrónico, os seus nomes de utilizador, as suas preferências, ferramentas, interesses.
Mas desde o início que se sente que sendo tudo tão perfeito algo negro parece prestes a explodir a qualquer momento.
Podemos até ter em mente alguns heróis de ficção científica que se rebelam contra o sistema e o tentam minar por dentro, mas o que é impressionante neste livro é a forma como o autor narra sem qualquer ironia o nascimento de uma nova era, que não é assim tão distante da nossa em termos tecnológicos, como se fosse apenas a continuidade lógica da actualidade em que vivemos, e o modo como Mae se deixa imergir completamente no sistema, tornando-se mesmo, na segunda parte do livro, uma das pessoas mais influentes do Círculo, ao mesmo tempo que se afasta de todos aqueles que estão fora do seu círculo “social”, isto é, profissional, pois a sua vida passa a ser completamente dominada pela empresa, que disponibiliza dormitórios cómodos e oferece eventos diários pós-laborais para os funcionários. A incerteza do leitor começa subtilmente, quando Mae dá por si constantemente a desculpar-se por não ter participado do «brunch português» (isto sim, tem muita ironia…) de um colega que fica tão sensibilizado como se ela o tivesse agredido, quando na verdade Mae simplesmente não tinha visto o convite feito na rede social do Círculo, ou quando os colegas acham descabido que ela tenha desaparecido do mapa social durante um fim de semana em que visitou os pais, devido a uma emergência médica, e fez um passeio de caiaque que nem sequer se dignou a partilhar, com uma foto ou um vídeo ou um zing (Tweeter…). Mae faz muitas vezes lembrar a Bryce Dallas Howard no primeiro episódio de Black Mirror que acaba se sente sempre à beira do desespero quando não consegue 5 estrelas numa foto de “Instagram” ou nalguma publicação da sua página pessoal. Sentimos a sua ansiedade, esse «rasgão negro», conforme ela se esforça por conseguir sempre agradar a todos e quando tem uma avaliação de 96 a 99 % envia um questionário ao cliente para saber porque não chegou aos 100 %, enquanto à sua frente a secretária se vai enchendo de outro monitor (chegam a ser mais de cinco), enquanto o seu horário de trabalho se torna a sua vida toda à medida que tenta responder a vários pedidos de subscrição, de partilha de páginas e serviços, mensagens pessoais, juntar-se a comunidades, tentar aumentar o seu número de seguidores…
O seu ex-namorado Mercer (que no fim tenta viver como o Bom Selvagem) tenta avisá-la da transformação que ela sofre, e é através dele que sentimos como o Círculo é uma força voraz que consome as pessoas e as traga para uma nova forma de totalitarismo, «As vossas ferramentas elevaram os mexericos, os rumores e as suposições à categoria de comunicação normal e válida.» (pág. 113), à medida que graças a uma Mae inconsciente (?) se prepara para o Completamento, fechando o Círculo do C, ao mesmo tempo que memória, identidade, privacidade, conhecimento, transparência, ética, liberdade individual e a própria democracia estão em jogo.
Uma última nota: a edição, na capa, na cor, na qualidade do papel, na cuidada tradução e revisão é realmente um mimo. Ver artigo
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