Notas Sobre o Luto, de Chimamanda Ngozi Adichie, publicado pela Dom Quixote com tradução de Tânia Ganho, leva-nos ao fatídico ano de 2020, com o deflagrar da pandemia. Naquele que é o livro mais pessoal e intimista da autora, Chimamanda Ngozi Adichie faz-nos regressar aos rituais vividos durante o confinamento, como as reuniões familiares por videochamada, até que o seu próprio mundo soçobra. O académico James Nwoye Adichie, nascido em 1932, morre subitamente no dia 10 de junho de 2020, na Nigéria. A filha tinha-o visto ao vivo, pela última vez, a 5 de Março, «pouco tempo antes de o coronavírus ter mudado o mundo» (p. 97). Ver artigo
Na internet pode-se encontrar um vídeo de uma TedTalk em que Chimamanda Ngozi Adichie narra como cresceu a ler histórias infantis e juvenis de crianças de cabelos louros e olhos azuis, que adoravam brincar na neve, comer maçãs e falavam frequentemente do tempo e da sorte que tinham quando fazia um dia de sol. A ficção não podia ser mais gritantemente distinta da realidade desta autora, traduzida agora em mais de 30 línguas, nascida na Nigéria em 1977, que foi estudar para os Estados Unidos aos dezanove anos.
Mais tarde, os seus contos apareceram em diversas publicações e receberam inúmeros prémios. Os seus primeiros romances foram amplamente premiados: A Cor do Hibisco foi distinguido com o Commonwealth Writers Prize 2005, finalista do Orange Broadband Prize 2004 e nomeado para o Man Booker Prize 2004; Meio Sol Amarelo venceu, em 2007, o Orange Broadband Prize, o Anisfield-Wolf Book Award e o PEN “Beyond Margins Award”.
Aqui interessa falar de Americanah, o mais recente e igualmente aclamado romance. A história segue a vida adulta de uma nigeriana, Ifemelu, que vive na América e alcançou um certo estatuto na sua vida. Conseguiu uma bolsa em Princeton, tem uma relação com Blaine, professor em Yale, um homem que lhe é completamente dedicado, é conhecida pelo seu blog sobre questões de raça onde a sua voz é reconhecida como mordaz, inteligente, divertida.
Mas esta mulher não está completamente satisfeita. Ao sentar-se num salão de cabeleireiro especialmente dedicado a cabelo africano, com as jovens empregadas do salão a circular em seu redor, constatando (que é como quem diz invejando) a sua pronúncia, o seu sucesso, Ifemelu parece apenas refletir no seu passado, mergulho esse que é motivado pela cisão que se afigura na sua vida, pois esta jovem nigeriana entretanto americanizada, mas só até certo ponto, decide deixar o estatuto que alcançou para voltar ao seu país natal. E dizemos americanizada (daí o título do romance: Americanah, com a ironia característica da voz da heroína e da autora patente na corruptela da palavra americana), até certo ponto, porque esta jovem continua presa às memórias da Nigéria, memórias essas que irão desfilar ao longo do resto do romance, que nos apresenta a sua vida passada: a infância e adolescência na Nigéria, o seu namoro com Obinze, a vida dos seus pais, da sua tia, numa espécie de mosaico da realidade nigeriana das últimas décadas. As dúvidas que rondam Ifemelu transparecem no próprio facto de para encontrar esse salão africano, a protagonista tem de atravessar a zona de conforto onde reside para chegar a Trenton, uma espécie de subúrbio, o que reflete a intenção crítica social, cultural e racial do romance. Tal como Ifemelu faz no seu blog, ao escrever e lançar debates sobre questões de raça e de género, Chimamanda dança na corda bamba conseguindo manter um delicado equilíbrio entre a lamechice de um romance que fala de uma paixão perdida na adolescência para mais tarde poder vir a ser reencontrada e as questões de identidade que atravessam esta mulher africana a viver num país estrangeiro.
Durante o decurso do que parecia uma adolescência absolutamente pacífica, no seio de uma família carinhosa e com uma boa situação económica, a ditadura deflagra na Nigéria, com consequências mais ou menos diretas e imediatas junto da sua família. O pai é despedido porque se recusa a dirigir-se à sua chefe como “Mamã” conforme ela o obriga. A tia Uju, amante de um general e que vivia num apartamento subsidiado por essa figura da nação, de forma luxuosa sem ter de trabalhar, acaba por se ver sem chão. E assim, a posição económica dos pais decresce, enquanto o próprio país vive tempos conturbados, que se traduzem em constantes greves no ensino e que motivam a partida de Ifemelu para os Estados Unidos da América apesar das dificuldades económicas que os pais atravessam e, por conseguinte, ela também, chegando a passar fome e, a certa altura, a ter de se prostituir para conseguir alimentar-se.
Naturalmente que este não é um romance sobre os flagelos da escravatura, ou do apartheid, mas reflete como na contemporaneidade o ser humano ainda continua a balizar-se por preconceitos e estereótipos. O próprio livro parece ter capítulos e capítulos em que se fala de cabelo, onde se descrevem exaustivamente os tratamentos que o cabelo típico de uma mulher africana deve levar, aliás penosos. A questão do cabelo, mais do que a cor, e a forma como a mulher o usa, acaba por refletir a adaptação desta jovem nigeriana ao meio americano: Ifemelu vive e move-se na América, mas recusa-se a esticar o cabelo de forma a parecer mais ocidental, mais civilizada, para ser mais facilmente aceite nos meios em que se move. Tal como a certa altura do romance se pode ler como a irrita particularmente o facto de as empregadas do salão, do Mali e do Senegal, parecerem esperar dela, apenas por partilharem a mesma cor, uma espécie de sentimento de irmandade, da mesma forma que a irrita, por outro lado, que outros se refiram a ela como africana, como se o continente da África fosse todo um país. Mas corre-lhe nas veias o sangue africano ou nigeriano, e por isso mesmo Ifemelu boicota a sua relação perfeita com um homem negro perfeito, Blaine, como manifestação de um sentimento maior de inadaptação ao país. Sentimento esse de não pertença que está também personificado na relação de amor entre Ifemelu e Obinze que depois de tantos anos, e como se esse fosse também um dos preparativos para a sua partida de regresso à Nigéria, despindo a pele de mulher americanizada, que anseia apenas pela sua terra e pelo rapaz agora homem que nunca deixou de amar, ainda que a sua memória possa estar tão-somente envolta numa neblina romântica de idealismo e platonismo, que funciona como armadura contra a negritude que os envolve. O próprio Obinze acaba por tentar a vida em Londres mas vê-se reduzido a trabalho pesado, clandestino e mal pago, enquanto outro nigeriano que terá alcançado grande sucesso quando emigrou (uma mentira que ele tenta alimentar a todo o custo até confessar a verdade ao seu amigo de juventude) lhe tenta arranjar um casamento por conveniência que lhe permita obter um visto de residência, o que acaba de forma desastrosa. Paradoxalmente, quando se vê obrigado a regressar à Nigéria, a posterior ascensão de Obinze reveste-se ainda de uma sombra duvidosa quanto à legalidade do seu trabalho, ainda que seja essa mesma obscuridade que permitem a aparência de uma vida perfeita, com uma casa palaciana, e uma mulher apostada em manter o luxo que acha adequado à sua existência.
Chimamanda é uma jovem escritora em ascensão com a sua própria voz, onde prima pelo seu espírito crítico e inteligentemente divertido, e que nos dá a conhecer mais uma faceta desse mundo imenso que muitas vezes nos reconhecemos a ver, perdidos que estamos na nossa imensa pequenez.
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