Quando estreou, em Abril de 2017, a série televisiva do canal de streaming Hulu que adaptava A História de uma Serva, de Margaret Atwood, superou todas as expectativas. A série The Handmaid’s Tale, que segue agora para a quarta temporada, tornou-se uma das mais populares dos últimos anos, até pela irónica coincidência de Gileade parecer representar o futuro dos Estados Unidos da América, com a eleição de Trump. A própria autora chega a aparecer numa das cenas mais perturbadoras da série. Entretanto, as distopias parecem ter-se tornado uma possibilidade cada vez mais próxima – parece aliás que vivemos numa, com esta pandemia, que levou a que praticamente o mundo inteiro se fechasse em casa.
Os Testamentos, com tradução de Sofia Ribeiro, surge agora publicado pela Bertrand Editora, depois de ter sido lançado internacionalmente em 2019 e é a continuação, ou a conclusão, da história de Gileade, 35 anos depois da obra anterior. A intriga da narrativa tem lugar 15 anos depois do final em aberto de A história de uma Serva, até porque a segunda temporada da série se torna completamente independente da obra de Margaret Atwood. E a autora, depois de obras menos conseguidas como O Coração é o Último a Morrer, está aqui em pleno fôlego criativo, tanto que arrecadou novamente o Booker Prize de 2019 com este livro. A narrativa alterna entre a história de três mulheres, totalmente diferentes: Agnes Jemima é uma jovem já criada no regime de Gileade, filha de um dos Comandantes mais destacados; Daisy foi criada no Canadá, país vizinho de Gileade; e a terceira narradora é uma mulher mais velha, uma das Fundadoras de Gileade, com direito a estátua e a oferendas de laranjas e ovos que roçam a idolatria.
Margaret Atwood consegue manter toda a suspensão de um mundo possível que é tão ou mais plausível do que a realidade que hoje vivemos, e fá-lo com a deliciosa ironia e humor a que nos habituou: «Se queres fazer Deus rir, conta-lhe os teus planos, costumava-se dizer; se bem que, nos dias que correm, a ideia de Deus a rir está muito perto da blasfémia. Um sujeito ultrassério é o que Deus é agora.» (p. 230)
É absolutamente brilhante que se tome como protagonista uma das vilãs do livro anterior, pois a Fundadora é ninguém mais do que a execrável Tia Lydia: um pouco mais humana ou ambígua na série do que no livro, na minha perspectiva… Além de que é também ela que interpela directamente o leitor, sem qualquer pejo em revelar como a sua mente retorcida e sinuosa é capaz de tecer uma teia de aranha fatal, em que o destino das duas jovens se entretece…
É ainda muito inteligente da autora procurar responder, com esta obra, aos leitores que lhe perguntavam como é que afinal caiu o reinado de Gileade, ao mesmo tempo que tirou partido do sucesso da série e do seu impacto junto de milhares de espectadores para pegar em algumas pontas soltas, mesmo quando estas nada têm a ver com a sua obra original… Por isso, ficaremos a saber o que aconteceu, 15 anos depois, com a Bebé Nicole (este nome é tomado da série), a filha da protagonista do romance anterior, bem como o que aconteceu afinal com Offred (Defred) – este nome é um patronímio, composto pelo pronome possessivo e pelo nome do seu dono.
É quase impossível parar ao longo das 450 páginas deste livro, especialmente nas últimas 50 páginas, em que a acção se precipita e os capítulos são cada vez mais curtos, contando apenas o essencial da acção. A primeira parte do livro, contudo, forma-se num lento crescendo, em que as histórias alternadas tornam o cenário de Gileade vívido, ao mesmo tempo que se pressentem as falhas e fracturas que preparam a sua queda, laboriosa e ardilosamente tecida pela mais inesperada das personagens, cujas intenções a autora consegue indiciar muito subtilmente, sem nunca empurrar verdadeiramente o leitor. Além de que é muito difícil não sentir alguma piedade cristã pela Tia Lydia, antes uma poderosa juíza e defensora dos direitos das mulheres, conforme percebemos como foi tratada, assim como as outras mulheres, quando os E.U.A. se transformam no país ultra-religioso e patriarcal de Gileade. Ver artigo
A gripe espanhola matou dezenas de milhões em 1918, possivelmente até cem milhões.
A turberculose, doença que hoje quase esquecemos (se bem que eu e toda a minha família tivemos de fazer um rastreio, quando um familiar foi identificado com tuberculose) mata 1,5 a 2 milhões de pessoas por ano.
Existem actualmente 7000 doenças genéticas. Há 20 anos conheciam-se 5000.
Uma pessoa, em cada 17 pessoas, pode ser portadora de uma das 7000 doenças raras que existem hoje.
A gripe mata, num ano bom, 30.000 a 40.000 pessoas por ano. Em 2017-2018 matou 80.000 pessoas. E isto é porque se fala apenas de um país: os Estados Unidos da América.
Com o que agora se vive, com pessoas e países em quarentena, senti-me impelido a abrir O Corpo – Um guia para ocupantes, de Bill Bryson, publicado pela Bertrand, em alguns capítulos essenciais.
Na linha de êxitos anteriores, como o aclamado Breve História de Quase Tudo, Bill Bryson volta-se para o corpo humano, numa brilhante investigação, em que debita informação científica, dados, estatísticas, e aproveita para contar histórias curiosas, sempre num tom ligeiro, e mantendo o bom humor, conforme explica aos mais leigos como funciona o corpo humano, como se chegou ao conhecimento que hoje se tem sobre o corpo, aquilo que ainda aguarda resposta, como cresce, como se cura e regenera, como se reproduz noutro corpo humano. Contudo, apesar de tudo o que se sabe, «os detalhes são, muitas vezes, surpreendentemente inconstantes» (p. 14).
São precisos 59 elementos para fazer um corpo humano. E apesar de a Humanidade partilhar 99,9 % do mesmo ADN, não há dois seres humanos iguais. Somos o resultado de 3 mil milhões de anos de evolução. E há mais de 8000 coisas que nos podem matar.
Bill Bryson escreve ainda sobre o vírus: «Um vírus bem-sucedido é aquele que não mata demasiado bem e consegue circular com um grande raio de alcance. É isso que torna a gripe uma ameaça constante. Uma gripe típica deixa as pessoas contagiosas cerca de um dia antes de começarem a ter sintomas e durante uma semana ainda depois de recuperarem, o que transforma cada vítima num vetor de contágio.» (p. 397)
E cita um especialista que refere que «não estamos mais bem preparados hoje para um surto grave» (p. 410) do que estávamos há 100 anos com a gripe espanhola. Apenas temos tido sorte. Ver artigo
Colleen McCullough, autora publicada pela Bertrand Editora, nasceu na Austrália em 1937 e faleceu em 2015. Na sua carreira literária revelou versatilidade: escreveu breves romances como Tim ou As Senhoras de Missalonghi, aventurou-se numa série policial com Carmine Delmonico, explorou os primórdios da colonização da Austrália com A Viagem de Morgan, e estudou a fundo a História de Roma em O Primeiro Homem de Roma, uma ambiciosa e avassaladora série composta por 7 volumes (com mais de 1000 páginas cada) que retrata o apogeu da época romana: inicia com Mário e Sula, dedica vários volumes à vida de Júlio César, e termina com Marco António e Octávio Augusto. Colleen McCullough é, sobretudo, conhecida por Pássaros Feridos, bestseller internacional que narra as grandes paixões de uma saga familiar, com o imenso deserto australiano como cenário, e deu origem a uma série televisiva em 4 partes.
As Senhoras de Missalonghi lê-se como uma recriação de um conto de fadas, ao género da Gata Borralheira, onde não falta uma fada-madrinha e um final imprevisível. Missy Wright tem 33 anos, vive em casa com a mãe e a tia, que fazem trabalhos de costura mais para se ocupar do que para se remediar, é a única morena do clã alvo e louro de Hurlingfords, e nunca vestiu outra cor se não o castanho, como condiz à sua condição de solteirona: «era uma cor tão prestável! Nunca mostrava a sujidade, nunca estava na moda nem deixava de estar, nunca ficava ruço, nunca parecia ordinário, vulgar, indecente.» (p. 53).
O único prazer que Missy conhece é o da leitura de romances de cordel, cujo desfecho previsível é, ainda assim, previamente revelado por Una, que lhos vai passando subrepticiamente. Até se deparar com um estranho cavalheiro, cuja chegada marca também o desabrochar e a insurreição de Missy contra a sociedade hipócrita que a rodeia, nomeadamente a própria família, onde os homens ardilosamente reclamam para si o património das viúvas, persuadindo-as de que são a sua única salvação, até que, subitamente, as acções dos Hurlingfords começam a ser misteriosamente compradas. Se resumirmos a essência de As Senhoras de Missalonghi, a história é, portanto, enganosamente simples, mas a colori-la está a vivacidade irónica da autora, a argúcia com que dá vida às suas personagens, donas de um carácter à altura das suas paixões. Ironia que denota ainda uma narrativa histórica que retrata o fim de uma época, com o prenúncio da Primeira Guerra, feita de convenções e superficialidade: «A atmosfera encontrava-se carregada de particípios corretamente formados e de infinitivos harmoniosamente colocados, assim como muitas outras delícias verbais desatualizadas há pelo menos cinquenta anos.» (p. 84) Ver artigo
Este pequeno livro de bolso da Bertrand Editora começa como um trabalho de metaficção, em que um argumentista, instalado numa casa de férias nos Alpes com a mulher e a filha de 4 anos, tenta escrever o argumento da sequela do seu filme de sucesso. Mas se de início a narrativa é perpassada por uma escrita que se pensa a si própria e onde não faltam referências a uma linguagem cinematográfica, com alguns fade in e flashback, a história começa rapidamente a transformar-se em mais do que a tentativa de escrita de um argumento muito imberbe, pois assemelha-se a um diário, organizado com entradas por datas, entre 2 a 7 de Dezembro de um ano qualquer. Pode até bem ser o caderno inacabado a que o escritor se refere, onde escreve os seus pensamentos, intercalado com as cenas e diálogos do argumento, e descreve alguém que parece transpôr o limiar da loucura.
Se de início o narrador, sempre sem nome, começa por dar conta de como o seu casamento parece estar em crise, com discussões constantes, e ele próprio parecer um pouco alienado e preferir isolar-se no seu próprio mundo, enquanto tenta dar mostras de progresso no trabalho, que na verdade pouco evolui, a partir de metade do livro a narrativa ganha contornos de um thriller psicológico. Curiosamente, assim que se sai do cenário da casa e o narrador vai até à aldeia para se reabastecer de provisões, uma mulher avisa-o: «Vá-se embora depressa.»
A partir daí o livro descende numa espiral de distorção do real. Os estranhos sonhos e pesadelos são recorrentes. A casa ganha quartos novos e outros há que mudam de lugar. No seu caderno aparecem palavras que ele não escreveu. As leis da geometria são abolidas. Os reflexos nas janelas surgem distorcidos em relação à realidade espelhada, pois não reflectem o escritor na sala. Fotografias aparecem e desaparecem das paredes. Outra pessoa parece andar pela casa. Ou talvez a dissociação entre escritor e pessoa seja tão forte que ele se começa a projectar a si próprio. E é pela escrita que ele tenta salvar-se e reencontrar-se:
«Escrevo muito depressa, anoto o que se passou. Tenho de escrever isso para não enlouquecer. Ou para o caso de qualquer coisa me acontecer.» (p. 63)
Daniel Kehlmann, alemão, é um dos escritores favoritos de Ian McEwan e de Jonathan Franzen. O livro está a ser adaptado ao cinema, numa produção e interpretação de Kevin Bacon. A sua obra A Medida do Mundo é um dos mais conhecidos bestseller da literatura alemã, traduzido para mais de quarenta línguas, e igualmente adaptado ao cinema.
Esta obra de Daniel Kehlmann foi adaptado ao cinema no ano de 2020 com o título idêntico, You Should Have Left, e conta com a interpretação de Kevin Bacon e de Amanda Seyfried. Ver artigo
Cerca de um ano depois da publicação de Semente de Bruxa, em que Margaret Atwood recria a peça A Tempestade, sai agora a recriação de O Rei Lear. A série Bertrand Shakespeare conta com um novo título num projecto lançado pela editora inglesa Hogarth, que chega a mais de 30 países e visa recriar em romance as peças do dramaturgo inglês.
A recriação daquela que é uma das mais aclamadas tragédias de Shakespeare é completamente livre e brilhantemente adaptada aos tempos modernos, em que o rei Lear é agora um multimilionário que dirige um grupo global de comunicações. O fôlego shakespeariano sente-se logo nas primeiras linhas do romance, em que as falas das duas personagens, Dunbar e Peter, um comediante alcoólico, se interpelam e atropelam, como numa peça de teatro, onde não falta o absurdo condizente a alguém que terá perdido o juízo, pois Henry Dunbar foi enclausurado pelas filhas numa casa de repouso. Florence, a Cordélia da peça original, é a filha mais nova e meia-irmã de Abby e Megan, que nunca pretendeu usurpar o trono ou o dinheiro do pai, mas que foi afastada por ele. Tal como Lear vagueia quase enlouquecido numa tempestade, também Dunbar enfrenta um nevão quando consegue juntar os resquícios de força que lhe restam e fugir da sua prisão para tentar recuperar o poder que as filhas planeiam usurpar-lhe na próxima reunião de administração, onde pretendem provar que o pai envelheceu e por conseguinte ensandeceu de vez.
Edward St Aubyn transmite de forma viva e actual os dilemas intrínsecos às tragédias de Shakespeare, dissecando o comportamento das personagens e tornando-as humanas, e não simples joguetes nas mãos dos deuses e das forças do destino: «Ergueu a jarra por cima da cabeça, pronto a lançá-la pela janela daquela prisão, mas foi então que ficou petrificado, incapaz de a partir ou pousar, com toda a acção anulada pela perfeita guerra civil entre omnipotência e impotência que lhe bloqueava o corpo e a mente.» (p. 20)
Não falta também um fino humor, especialmente quando Dunbar se encontra ainda na casa de repouso, como quando a enfermeira o conduz para a mesa comunal: «Enquanto ela o empurrava para aquele precipício de encontros sociais aleatórios, do qual ele tinha até então conseguido manter-se bem distante, Dunbar vislumbrou Peter (…), debaixo de um letreiro verde com as palavras Saída de Emergência ao lado de uma figura a sprintar que devia estar a tentar fugir ao inferno da agência de encontros românticos da enfermeira Roberts.» (p. 34)
Edward St Aubyn chega a recorrer, num jogo literário, a passagens retiradas da obra de Shakespeare – «sono que desenreda o novelo emaranhado das preocupações» (p. 92) – e tal como nas suas tragédias presenteia-nos com um desenlace abrupto que se abate como o destino num final inconcluso e infeliz.
Edward St Aubyn é considerado um dos melhores romancistas britânicos da sua geração e o seu quinteto «A Família Melrose», escrito entre 1996 e 2012, foi adaptado no ano passado a uma mini-série televisiva, de cinco episódios, intitulada Patrick Melrose, com Benedict Cumberbatch no principal papel. Ver artigo
Depois da leitura de Ballard e O Reino do amanhã continuamos numa de distopias talvez porque na actualidade a História que escremos hoje pareça ter tomado algum desvio errado. Esta semana chegam ao pequeno e ao grande ecrã, respectivamente, A história de uma serva, de Margaret Atwood, e O círculo, de Dave Eggers, duas distopias bastante distintas mas que contêm em si algo em comum, o facto de o futuro narrado não se afigurar assim tão longínquo. A história de uma serva foi adaptada a série televisiva pela Hulu, canal concorrente da Netflix, a estrear esta quarta-feira, dia 26 de Abril, com os 3 primeiros episódios, naquela que é a produção mais ambiciosa e dispendiosa deste canal de streaming com o acréscimo de Elizabeth Moss figurar no principal papel (quem não viu a sua brilhante interpretação em Top of the lake, série criada por Jane Champion, a realizadora de O piano), enquanto que O círculo estreia esta semana nos cinemas com Emma Watson e Tom Hanks nos principais papéis.
Mas o que aqui interessa é apresentar estas obras. Margaret Atwood venceu diversos prémios no conjunto da sua carreira, sendo também esta obra uma das mais premiadas, figurando na lista finalista do Booker Prize e do Nebula Award, e das mais marcantes, publicada originalmente em 1985 e entre nós, pela Bertrand Editora, em 2013.
Através de Defred, uma Serva da República de Gileade, outrora os Estados Unidos da América, ficamos a saber, sempre de forma gradual e com indicações muito dispersas, como o governo norte-americano foi derrubado por extremistas cristãos e Gileade é agora um país cuja Constituição foi suspensa sem qualquer motim ou resistência, assente em princípios fundamentalistas, onde se nega o direito à individualidade, a sociedade está agrupada em algumas classes privilegiadas principais (as Esposas, os Comandantes, as Martas, os Guardiães), vivem-se tempos próximos de uma Idade Média obscurantista, as mulheres estão proíbidas de ler, cita-se a Bíblia como forma de comunicação e ocultando o mais possível as ideias próprias, a poluição e o controlo da natalidade perturbaram gravemente o desenvolvimento demográfico, aboliram-se todas as medidas científicas que visavam auxiliar a gravidez e agora as mulheres férteis são agrupadas entre as Servas para poderem dar às classes privilegiadas os filhos que geram no seu próprio ventre. Defred na verdade não é o nome da nossa heroína, pois esta deixa de ter identidade e apenas tem importância enquanto “barriga de aluguer” capaz de gerar um filho a Fred, pois este nome é um patronímio, composto pelo pronome possessivo e pelo nome do seu dono. Conforme salvaguardado na passagem bíblica do Génesis em epígrafe, quando Raquel se revelou incapaz de conceder um filho a Jacob, ela disse-lhe que fosse buscar a sua serva Bila: «Que ela dê à luz sobre os meus joelhos; assim, por ela, eu também terei filhos.». Fred irá assim passar a possuir (literal e figurativamente) Defred algumas vezes, na presença da mulher. Mas esta mulher, que teve em tempos um nome, teve também um marido que não sabe agora se está ainda vivo e uma filha que lhe foi tirada. A narrativa narrada na primeira pessoa, a partir do ponto de vista de Defred, ajuda-nos a sentir mais proximamente o vazio e a subjugação que vive no quotidiano, à medida que a história alterna entre dois planos iniciando no momento em que a Serva passa a viver na casa do seu novo senhor, à medida que os seus flashbacks nos conduzem pelas suas memórias de um tempo em que tinha um família com quem era feliz e nos dão conta de como tudo mudou. Se bem que esta Serva tente sempre «não pensar demais» pois: «À semelhança de outras coisas, agora o pensamento tem de ser racionado. Há muitas coisas em que é insustentável pensar. Pensar pode diminuir as hipóteses de uma pessoa, e a minha intenção é durar.» (pág. 16).
Além da escrita cuidada e intimista da autora, a sua mestria reside essencialmente numa ambiguidade próxima à literatura fantástica em que deixa o leitor em suspenso até finalmente pela página 200 (de 348) descrever o que realmente sucedeu de modo a criar uma realidade como a de Gileade possível, um tempo de totalitarismo onde não há universidades ou advogados em que estas mulheres (e sente-se também aqui o feminismo da autora) não só não podem ler, como devem andar cobertas («Algumas pessoas chamam-lhes hábitos, uma boa palavra para os designar. Os hábitos são difíceis de quebrar» (pág. 36)), possuem tatuagens no tornozelo como uma «marca de gado», raramente têm acesso a notícias (e que nunca se sabe se não são falsas) e não podem olhar directamente nos olhos de outros. Mas resta-lhe ainda este poder, não só o de dar vida, mas também o de despertar desejo: «Gosto do poder; o poder de um osso de cão, passivo, mas que está ali. Espero que fiquem excitados por olhar para nós e que tenham de se esfregar colados às barreiras pintadas, sub-repticiamente. Hão de sofrer mais tarde, à noite, nas camas regimentais. Agora não têm alternativa que não eles próprios, e isso é um sacrilégio. Já não há revistas, nem filmes, não há substitutos; só eu e a minha sombra, a afastarmo-nos» (pág. 33).
A cor vermelha está presente de diversas formas ao longo do livro, nos tijolos vermelhos das construções, nas tulipas, na cor dos trajes das Servas, o vermelho do sangue menstrual e da vida, mas também da proibição e das letras escarlates do adultério. O vermelho da luxúria e da paixão que é uma das poucas armas que Defred possui como resistência à colonização do seu corpo. Ver artigo
Este livro, acessível a qualquer leitor, recentemente publicado pela Bertrand Editora, tem como corpo central um conjunto de textos do Professor João Barrento apresentados, em alemão, nas conferências de Frankfurt e que deram origem a uma obra originalmente publicada em alemão em 1999, cujo título pode ser traduzido como “Cravos e Perpétuas. A literatura portuguesa contemporânea”.
Lê-se também na contracapa que em todos os textos, aqui devidamente revistos e adaptados mais especificamente ao contexto nacional, o ensaísta e tradutor se detém «sobre a situação da literatura portuguesa no início do século XXI e do seu lugar no meio literário e social, na escola e na universidade. Naturalmente, todos os escritos originais foram reformulados, desenvolvidos e completados para poderem integrar um corpo coerente numa edição que se constitui como síntese, naturalmente aberta e pessoal, do panorama mais recente da nossa literatura.».
O livro está dividido em cinco partes. O primeiro capítulo é justamente uma reflexão sobre a nossa contemporaneidade – balizando-a, claro que de forma conscientemente arbitrária, a partir da Revolução do 25 de Abril –, que se estende pelo segundo capítulo, onde se apura o papel social da literatura como meio privilegiado de reflexão e revisão da História, que é aliás a matéria mais tratada no romance português pós-revolução, segundo o autor, mesmo quando entra no domínio do fantástico. Partindo de algumas das premissas da Poética aristotélica, Barrento postula que «A pretensão de verdade do romancista não será então tão «rigorosa» como a do historiador, mas em compensação é bastante mais ampla (já Aristóteles dizia: mais universal). O romance amplifica as muitas variáveis que constituem a complexidade das acções inter-humanas, comenta-as e interpreta-as. O narrador assume aqui, na sua relação com o texto da História, um papel próximo do do leitor no acto de leitura propriamente dita.» (pág. 33). No final, há um excurso em torno do Memorial do Convento.
No terceiro capítulo, sugestivamente intitulado «A nova desordem narrativa: escrita feminina», o autor considera, à semelhança de outros críticos como Isabel Allegro de Magalhães, como O Sexo dos Textos, da existência ou não de uma escrita marcadamente feminina, em virtude da grande profusão de autoras mulheres na literatura pós-25 de Abril e do seu importante contributo na renovação da ficção literária, terminando com um excurso em torno da obra de uma das minhas autoras de eleição, Lídia Jorge.
Em seguida, o autor aborda o conto, para se focar finalmente no «Conto Brevíssimo», de Jorge de Sena, e, no capítulo seguinte, na poesia, terminando desta vez não com um poeta em particular mas com a Europa como tema.
O último capítulo consiste numa intervenção proferida no Brasil em 2005, que constitui uma retrospectiva e balanço do estudo realizado nos textos anteriores.
É um estudo profundo e sólido da ficção e da literatura em geral do último quarto do século passado, à semelhança do que Miguel Real fez em O Romance Português Contemporâneo, mas aqui com maior profundidade analítica, se bem que João Barrento se mostre um pouco “parcial” nos autores que mais considera: Lídia Jorge, Teolinda Gersão, Agustina, Maria Velho da Costa, Hélia Correia, Augusto Abelaira, Jorge de Sena, Saramago, Lobo Antunes, Carlos de Oliveira. Mas claro que esta é uma síntese, e que indica desde logo na capa não considerar os últimos 16 anos da literatura portuguesa (1974-2000), o que pode ter também a sua razão de ser, pois se Miguel Real decidiu, e sabemos que ele é um leitor compulsivo e ecléctico, referir-se a todos os autores hoje conhecidos que se encontram nos escaparates das livrarias (numa época em que certos escritores publicam ao ritmo contratual de um livro por ano), Barrento parece preferir cingir-se aos que terão, e poderão vir a ficar, ficado para a posteridade. Em suma, a chama eterna da verdadeira literatura e as cinzas. Ver artigo
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