A noite das mulheres cantoras, o último romance de Lídia Jorge, foi publicado depois de um interregno de quatro anos, tendo sido atribuídos à autora o Prémio da Latinidade, de Escritora Galega Universal, e o Doutoramento Honoris Causa, pela Universidade do Algarve. A sua escrita reflecte acerca de diversos aspectos sociais, sempre centrada nos problemas da actualidade, sem perder o burilar lento e ritmado de uma linguagem poética, por oposição à arte que se consome fugazmente e não deixa sequelas. Este romance versa o poder do espectáculo e do mediatismo televisivo, designado como «império minuto», oferecendo um testemunho da condição humana, mas, principalmente, da mulher, na qual a própria autora, por vezes, logra reflectir-se de forma autobiográfica. Solange de Matos conduz a narrativa, desfiando o fio da intriga até chegar a um clímax já previsto e, tal como outras protagonistas que assombraram a escrita da autora, é uma personagem cândida, ingénua, com um olhar intocado sobre o mundo, lançada na rede do mal e das complexas relações humanas, mas conseguindo salvaguardar a sua integridade moral. Próximo do final da narrativa e depois de revelado o desenlace não completamente imprevisto que contesta a perfeição de uma noite em que o grupo de mulheres cantoras apareceu na televisão, Solange disserta: «A credulidade é um estado de alma que não se adquire e raramente se perde. Quando se é viciado nessa espécie de não prudência, ela se desfaz e logo se recompõe, persistindo sob a forma de uma natureza intrínseca.» (pp. 302-303). Esta jovem faz o seu ingresso na universidade e na grande cidade, no ano de 1988, data que coincide justamente com a publicação de A Costa dos Murmúrios, vinda da província, onde a família recompôs a sua vida e o seu património, enquanto retornados. Na urbe lisboeta vê-se confrontada com os subterfúgios e dissimulações de uma boa parte da natureza humana, retratada em Gisela Batista, que se assume como a líder deste grupo de mulheres que a recruta como letrista. Não sendo esta nenhuma comparação inédita, a nossa memória cultural pode remontar ao período de fama das Doce, que como muitas outras bandas dos anos 80, período de frenesim de criação artística, tiveram o seu apogeu e queda, muitas vezes de forma meteórica. A vida parece resumir-se a um instante tão repleto de promessa que raia a eternidade, condensada num momento-chave em que tudo se resume: «Eu tinha a ideia de que aquela noite não era uma noite, era aquele momento circular e totalitário de que falam as pessoas que uma vez estiveram à beira da morte e contam que, num ápice, reúnem numa só paisagem todos os pontos altos da sua vida, tudo o que viram e experimentaram» (p. 302). O império minuto de Solange e dessa banda é não propriamente a noite perfeita em que reaparecem num espectáculo televisivo, duas décadas depois, para comemorar o seu único disco, mas também a falsa epifania de um grupo de pessoas, «os filhos da década», que atingiu um êxito, efémero, à custa de um incidente, constituindo uma metáfora judicativa de todos aqueles que se consomem na busca do sucesso, ardendo como borboletas nas luzes e nos brilhos da ribalta a que toda uma geração parece aspirar, desde a década de 80, mas mais ainda nos tempos de hoje: «O pequeníssimo mundo minuto em que a Terra se transformou» (p. 299). Hoje, o egotismo tornou-se uma constante dos tempos modernos e, mais do que um sintoma, é considerado e defendido enquanto apanágio da sociedade, numa geração em que todos criam os seus books fotográficos e mantêm páginas sociais ou blogs onde comentam as mais perfeitas trivialidades, analisando-as como alguma passagem literária de grande projecção. Lídia Jorge traça o rastro da sociedade actual que vive para o imediatismo e efemeridade de um momento de fama, cujo início possivelmente remonta ao boom cultural e social da época em análise neste romance. Ver artigo
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