Rapazinho, de Lawrence Ferlinghetti, foi publicado pela Quetzal em novembro de 2019, ano em que o autor completava 100 anos. Faria 102 anos no próximo 24 de março. Morreu dia 22 de Fevereiro, vítima de doença pulmonar, em casa em São Francisco, nos Estados Unidos, junto da família.
Lawrence Ferlinghetti foi um reconhecido poeta, editor, ativista, pintor, dramaturgo, tradutor, um incontornável artista norte-americano, intimamente ligado à Geração Beat e à defesa da liberdade de expressão nos Estados Unidos. Foi fundador, em 1953, da livraria e editora City Lights, em S. Francisco, e editor de escritores como Allen Ginsberg, Charles Bukowski, Paul Bowles ou Sam Shepard. Quando decide, portanto, publicar um romance sobre a sua história de vida recebeu aprovação imediata do seu agente, Sterling Lord, que contava já 98 anos.
Lawrence Ferlinghetti nasceu em Nova Iorque, a 24 de março de 1919, quinto filho de uma açoriana que ficou viúva poucos meses depois do nascimento do Rapazinho. A sua mãe açoriana, Clemence Albertine Mendes-Monsanto, descendia de foragidos que para escapar à Inquisição em Espanha e Portugal emigraram para os Estados Unidos. Pouco tempo depois do seu nascimento, Émilie, mulher do tio de Clemence, leva a criança para França para cuidar dela como se fosse seu filho, mas o marido abandona-a, e vendo-se sem meios tem de entregar a criança a um orfanato. Mais tarde, Émilie começa a trabalhar como perceptora francesa, numa mansão em Bronxville, Estado de Nova Iorque, para um casal de nome Bisland que perderam um filho, também ele de nome Lawrence, pelo que rapidamente dispensam Émilie mas perfilham o Rapazinho. Como o próprio autor refere, nas poucas páginas das suas primeiras memórias difusas, narra-se uma memória cuja trama é digna de um romance de Charles Dickens.
Apresentado como romance autobiográfico, este testemunho inicia como tal, mas a partir da página 23, depois de rememorar a sua infância atribulada, a prosa do autor, que agora passa também a ser assumida na 1.ª pessoa, extravasa numa torrente de linguagem (sem regras, sem pontuação, sem pausas) que nos conduz por uma série de instantâneos, pensamentos dispersos, citações e alusões indirectas a autores diversos, como Fernando Pessoa, e sobretudo reflexões do mundo a que o autor chegou e que presencia com algum desconcerto: «o comboio da minha vida vai correndo balançando nos carris fictícios do filme que não se pode dizer se é verdadeira ficção ou verdadeiro documentário (…) e assim quem poderá dizer se esta história é uma tragicomédia ou uma tragédia cómica mas feitas as contas não me agradam os finais funestos especialmente o meu e por isso, por isso direi que resumi o meu passado com omissão e alusão e só sei que daqui a nada vou de escada rolante para o nível seguinte de existência ou de não-existência» (p. 128-129)
E talvez por já muito ter vivido, e por ter perdido uma boa parte dos seus contemporâneos, o autor não se coíbe de escrever o que quer e como acha melhor: «o autor continua a falar com uma loquacidade doida sem se importar com o que está a acontecer ao mundo ao seu redor o que é um claro sinal de maluqueira» (p. 127).
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