Já não sou um purista, daqueles que fica sempre decepcionado com as adaptações a filme como também ultrajado. Mas continuo a preferir ler sempre o livro antes de ver o filme ou, como agora é mais corrente, a série.
Pequenos Fogos em todo o lado, de Celeste Ng, publicado pela Relógio d’Água, não é uma obra de literatura das que virá a ser discutida ou lembrada na posteridade, mas é um livro de leitura compulsiva, mas não tão leve, cuja prosa é enganadoramente simples. A autora escreve bem, mas fá-lo com precisão cirúrgica, sem usar mais do que as palavras necessárias, da mesma forma que não disseca cenas nem personagens, deixando isso a cargo do leitor. A intriga do livro pode parecer semelhante à de um guião de uma série – e por isso mesmo foi adaptado pela Hulu – mas esta história tem camadas sobre camadas de significado e levanta uma série de questões prementes, que a autora evita explorar, aparentemente, deixando as interpretações e posições a cargo do leitor, como a questão da adopção da bebé Mirabelle/May Ling, se deve ser criada pela mãe que a abandonou ou por um casal branco, rico, que tem todas as condições para a criar, menos a de lhe poder transmitir a sua herança cultural como bebé chinesa que é. Ou como uma mulher acede a ser barriga de aluguer para um casal que não pode conceber mas vê-se ultrapassada pelo seu instinto maternal, possivelmente agudizado pela perda familiar que sofre durante a gravidez.
Mia e Pearl, mãe e filha, raramente permanecem muito tempo no mesmo lugar mas, quando chegam a Shaker Heights onde alugam a casa de Mrs. Richardson, Pearl acalenta a esperança de poder criar raízes naquele pacato subúrbio de Cleveland. E rapidamente começa mesmo a criar laços com a família Richardson…
Shaker Heights é um daqueles subúrbios norte-americanos (não confundir com a nossa Amadora), ao estilo de Donas de Casa Desesperadas, onde todas as casas são geminadas e a relva não pode ultrapassar os 6 cm de altura. Mrs. Richardson é uma daquelas Stepford Wives e note-se que no livro Mrs. Richardson raramente é chamada pelo nome próprio de Elena… ou seja, é sempre conhecida pelo seu “título”, pela sua posição de chefe de família: «A casa dela era grande; os filhos estavam seguros e felizes e bem-educados. Convenceu-se de que isso era o essencial daquilo que planeara há tantos anos.» (p. 103)
Elena Richardson é daquelas pessoas irritantes que gosta de ter tudo no lugar certo e determinada em praticar boas acções (como aquelas pessoas que obrigam a velhinha a atravessar a estrada mesmo quando ela nem queria passar para o outro lado). Por isso mesmo, a renda da casa será muito abaixo do normal e é por isso que Mia se instala aí, apesar das diferenças óbvias entre ambas. Pois Mia é um artista, enquanto que Elena, com a sua família perfeita com um marido perfeito e 4 filhos, vive segura num lugar previsivelmente seguro como Shaker Heights, onde nada acontece: «na sua linda casa perfeitamente ordenada e abundantemente mobilada, em que a relva estava sempre aparada e as folhas eram apanhadas e nunca, nunca havia lixo à vista; no seu lindo bairro perfeitamente ordenado, em que cada relvado tinha uma árvore e as ruas eram curvas para ninguém andar demasiado depressa e cada casa se harmonizar com a seguinte; na sua linda cidade perfeitamente ordenada, em que todos se davam bem e todos cumpriam as regras e tudo tinha de ser útil e lindo por fora, fosse qual a fosse a confusão por dentro.» (p. 300)
E quando além disso Mrs. Richardson propõe, de modo a que seja irrecusável, que Mia faça um part-time como gestora do lar (vulgo politicamente correcto para empregada doméstica), Mia aceita também, até porque isso lhe permitirá acesso aos bastidores da casa da família que Pearl começa a preferir à sua mãe.
Agora, quanto à mini-série: a adaptação do livro Pequenos Fogos em todo o lado, de Celeste Ng, é bastante livre. E sinceramente acho que isso só enriqueceu a minha leitura do livro pois há várias questões que são muito mais exploradas, principalmente, o conflito entre Mia e Mrs. Richardson que é intensificado pela questão cultural, uma vez que na série Mia e Pearl são representadas como “afro-americana”. E é fantástico ver o confronto entre duas boas actrizes: Mia, representada por Kerry Washington (a Olivia Pope de Scandal), e Elena Richardson interpretada por Reese Witherspoon. Há aliás muito mais diálogo entre ambas as mulheres, o que pouco acontece no livro, e a hostilidade muito mais declarada entre uma artista de espírito livre e uma americana loura de boas famílias com um trabalho como repórter em part-time (pois a família é naturalmente a sua prioridade). Só é pena, na minha perspectiva (e se não quiserem um pequeno spoiler do livro aconselho a parar de ler aqui), que na série não se tenha respeitado um aspecto da história original: há uma mulher que é mãe, mas permanece também virgem, enquanto que na série é apresentada como mais promíscua.
As últimas palavras são acerca da minha muito adorada Reese Witherspoon. Mrs. Richardson aparece demasiado caricaturizada na série, como acontece com o seu sistema de organização por cores e os seus calendários para tudo, inclusive para as relações sexuais com o marido que só podem ocorrer às quartas-feiras e sábados. Mas não acho que se possa subestimar a actriz em si, até porque é muito mais exigente do que se possa pensar uma actriz inteligente, ainda por cima com o seu ar de Barbie, conseguir representar convincentemente uma mulher tonta (aqui uma espécie de Legalmente Loura na sua versão adulta) que vê todas as suas certezas arderem.
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