
Depois de Matadouro cinco, chega-nos Pequeno-almoço de campeões, de Kurt Vonnegut, com selo da Alfaguara e tradução de Miguel Cardoso.
Depois de uma sátira particularmente incisiva sobre a guerra, este é mais um livro desconcertante e irreverente do autor norte-americano, cuja imaginação corre aqui livremente, sem limites de criação. No entanto, o fantasma e o trauma da guerra continuam presentes, sempre mencionados de forma derrisória pelo narrador:
“O Vietname era um país onde a América estava a tentar fazer com que as pessoas deixassem de ser comunistas atirando coisas para cima delas de aviões.” (p. 108)
(Não deixa aliás de ser curioso como involuntariamente se têm multiplicado os romances que tenho lido sobre o Vietname ou sobre a guerra no Vietname.)
O protagonista deste romance – se é que se lhe pode chamar assim, uma vez que por vezes nem se compreende se de facto a prosa compõe uma narrativa – é o escritor de ficção científica Kilgore Trout, uma das mais conhecidas personagens de Kurt Vonnegut. Em paralelo, encontra-se a personagem de Wayne Hoover, um bem-sucedido vendedor de carros – e sócio de inúmeros outros negócios. Entretanto temos ainda uma voz que nos narra na primeira pessoa, assumindo-se plenamente como o criador das outras personagens, e que elucida o leitor que estas só fazem aquilo que ele pretende que façam.
“Ali mesmo no bar, a espreitar através dos meus vazios para um mundo que eu próprio tinha criado, dei por mim a dizer a seguinte palavra, em surdina: esquizofrenia.” (p. 221)
E é esse o sentimento que perpassa ao longo desta narrativa – o de uma escrita esquizofrénica e desconcertante.
Uma narrativa frenética, de prosa torrentosa, muitas vezes desviando-se do seu curso, onde chegam a surgir pequenos desenhos quase como rabiscos que pretendem ilustrar algumas das referências feitas. Dessa forma, o autor compõe a paisagem humana de uma certa América, de forma irónica, risível até. Um autor-narrador que se equipara mesmo a Deus: “Ali, na penumbra do bar, eu estava em pé de igualdade com o Criador do Universo.” (p. 229)
Este é ainda um romance que desconstrói convenções literárias, imbuído de uma metareflexividade explícita profundamente irónica e até risível. Veja-se a seguinte passagem em que o narrador parece reflectir um pouco sobre os princípios da ficção e logo em seguida passar ao cómico e ao absurdo. Quando nos fala de uma romancista, sobre quem assume não ter qualquer respeito, afirma que ela fazia “com que as pessoas acreditassem que a vida tinha personagens principais, personagens secundárias, pormenores significativos e pormenores insignificantes, que continha lições a serem aprendidas, provas a serem superadas, e um princípio, um meio e um fim.” E logo em seguida este narrador – que pode ser facilmente tomado como o próprio autor (até porque ambos estão por volta dos 50 anos no momento da escrita) – declara veementemente que com a idade vai ficando cada vez mais estarrecido e enraivecido com as decisões idiotas dos seus compatriotas que de forma inocente e natural se comportam de modo abominável: “eles só estavam a fazer o melhor que conseguiam para viver como as pessoas inventadas nos livros de histórias. Era por isso que os americanos disparavam uns contra os outros com tanta frequência: era uma convenção literária muito conveniente para dar por concluídos contos e romances.” (p. 239)
Voltando às personagens centrais: Kilgore Trout descobre, horrorizado, que Wayne Hoover, interpreta à letra as rocambolescas teorias apresentadas nos seus livros – livros esses que aliás escreveu em catadupa, sem sequer se preocupar em deles tirar proveito, uma vez que foi descobrindo acidentalmente que as suas histórias eram publicadas nesta ou naquela revista.
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