O Polaco, com tradução de J. Teixeira de Aguilar, é a mais recente obra de J.M. Coetzee, autor sul-africano actualmente a residir na Austrália.

J.M. Coetzee, cuja obra integral tem vindo a ser publicada pela Dom Quixote, foi duas vezes Prémio Booker e foi laureado com o Nobel de Literatura em 2003.

Depois de uma controversa e inquietante reescrita da vida de Jesus – no tríptico A Infância de Jesus, Jesus na Escola, A Morte de Jesus –, onde explora o sentido de um mundo pós-apocalíptico. É ainda digno de nota que O Polaco tenha sido originalmente publicado em espanhol primeiramente, como aconteceu já com dois romances anteriores do autor: uma forma subtil de contestação do poder hegemónico do Norte e da literatura anglófona.

O Polaco é um romance de uma composição magistral, subtilmente complexa, numa escrita concisa, reflexiva e quase fria de tão distanciada. Constituído por 6 partes ou capítulos, cada secção é formada por entradas numeradas, o que confere ao texto uma aura ensaística e uma natureza próxima de uma sinfonia composta por breves andamentos.

Witold Walczykiewicz, virtuoso pianista polaco, especialmente célebre pelas suas interpretações de Chopin, fica enfeitiçado por Beatriz (ou Beatrice, no original), uma patrona das artes espanhola, depois de esta ajudar na organização do seu concerto em Barcelona. Beatriz é casada, num casamento que vive sobretudo das convenções e aparências, e não cede terreno a Witold, até porque ele é muito mais velho. Desencantam-na, sobretudo, as suas interpretações frias de Chopin, nada íntimas; a sua música simplesmente não tem o condão de a transportar. Contudo, Witold envia-lhe cartas e faz-lhe vários convites para viajar, nomeadamente ao Brasil, até que ela acaba por consentir ser visitada na casa de verão do marido, em Maiorca, onde a relação é (mais ou menos) consumada.

A prosa deste romance breve e incisivo é adequadamente directa, descritiva, e a narrativa prende-nos ao mesmo tempo que se deixa cristalizar numa redoma, em que o leitor oscila entre a antipatia ou o simples desconcerto face às emoções, também elas desencontradas, das personagens. A questão do desencontro, entre a sensibilidade masculina e feminina, perpassa ainda a narrativa, assim como a natureza calorosa e apaixonada do sul (Espanha) face à contenção ríspida do norte (Polónia). No início do romance, nos seus primeiros encontros, percebe-se como em alguns diálogos a natureza inquiridora de Beatrice esbarra com um silêncio quase hostil do polaco.

Tece-se ainda um diálogo com a obra de Dante, no que se descreve como uma “variação moderna e irónica da lendária história de amor de Dante e Beatriz”. Cabe ao leitor perceber o sentimento de Beatriz por Witold – se é que se pode verdadeiramente entender o amor, nas suas várias manifestações e linguagens, da música à escrita. O que é indiscutível é que na última parte do livro, onde Beatriz escreve cartas a Witold, a sua voz se entrelaça com a dele, ao citar-nos os poemas que ele lhe dedicou e que ela só lerá depois da morte dele.

print
Paulo Nóbrega Serra
Written by Paulo Nóbrega Serra
Sou doutorado em Literatura com a tese «O realismo mágico na obra de Lídia Jorge, João de Melo e Hélia Correia», defendida em Junho de 2013. Mestre em Literatura Comparada e Licenciado em Línguas e Literaturas Modernas, autor da obra O Realismo Mágico na Literatura Portuguesa: O Dia dos Prodígios, de Lídia Jorge e O Meu Mundo Não É Deste Reino, de João de Melo, fruto da minha tese de mestrado. Tenho ainda três pequenas biografias publicadas na colecção Chamo-me: Agostinho da Silva, Eugénio de Andrade e D. Dinis. Colaboro com o suplemento Cultura.Sul e com o Postal do Algarve (distribuídos com o Expresso no Algarve e disponíveis online), e tenho publicado vários artigos e capítulos na área dos estudos literários. Trabalhei como professor do ensino público de 2003 a 2013 e ministrei formações. De Agosto de 2014 a Setembro de 2017, fui Docente do Instituto Camões em Gaborone na Universidade do Botsuana e na SADC, sendo o responsável pelo Departamento de Português da Universidade e ministrei cursos livres de língua portuguesa a adultos. Realizei um Mestrado em Ensino do Português e das Línguas Clássicas e uma pós-graduação em Ensino Especial. Vivi entre 2017 e Janeiro de 2020 na cidade da Beira, Moçambique, onde coordenei o Centro Cultural Português, do Camões, dois Centros de Língua Portuguesa, nas Universidades da Beira e de Quelimane. Fui docente na Universidade Pedagógica da Beira, onde leccionava Didáctica do Português a futuros professores. Resido agora em Díli, onde trabalho como Agente de Cooperação e lecciono na UNTL disciplinas como Leitura Orientada e Didáctica da Literatura. Ler é a minha vida e espero continuar a espalhar as chamas desta paixão entre os leitores amigos que por aqui passam.