Choriro, de Ungulani Ba Ka Khosa, foi publicado em Maio de 2015 pela Sextante Editora.

Apesar de muito pouco falado em Portugal, Ungulani (antes Francisco) Ba Ka Khosa é, de entre os escritores moçambicanos, o mais reconhecido da sua geração e integra a lista dos cem melhores autores africanos do século XX. A sua primeira obra, Ualalapi (1987), obteve o Grande Prémio de Ficção Moçambicana em 1990, e Os sobreviventes da Noite (2007) o prémio José Craveirinha de Literatura em 2007. Todavia, a não ser por Ualalapi, publicado pela Caminho, e Choriro, obra originalmente publicada no ano de 2009 em Moçambique e agora publicada pela Sextante numa edição revista, é praticamente impossível encontrar as suas obras em Portugal. As restantes obras são, aliás, colectâneas de contos.

Ualalapi é a obra de eleição de muitos dos seus leitores, pois o autor explora, tal como os sul-americanos o fizeram, o imaginário mítico do seu país. É um exemplo perfeito de realismo mágico na literatura sul-africana, onde se utilizam processos característicos da narrativa oral, em que o autor introduz elementos sobrenaturais e recorre a uma fenomenologia escatológica, assente no exagero que leva ao insólito e ao grotesco, através de vómitos, sangues, menstruações, chuvas diluvianas. Estes são sintomas de um mundo em desintegração que desrespeitou os seus valores tradicionais ao virar-se para a cultura ocidental como um modelo a seguir. A obra é composta por seis contos mas Khosa entretece as seis narrativas, unidades in(ter)dependentes, sendo cada uma das seis unidades antecedida por um pequeno texto, intitulado «Fragmentos do fim», textos esses que se encontram numerados de um a seis, numeração essa que parece marcar também a própria evolução histórica que se sente até chegar à queda do império.

Choriro é o mais recente romance de Ba Ka Khosa e o seu segundo romance histórico, depois de Ualalapi. A palavra choriro significa, numa das línguas locais da Zambézia, dor, correspondendo também ao período costumeiro de três dias de luto, durante os quais o morto é preparado para a cerimónia do enterro. E é sobre esses três dias que a narrativa se centra, retratando o luto daqueles que privaram de perto com o rei branco Nhabezi, aliás Luís António Gregódio. Na aurora da colonização mercantil de Moçambique, na região do Zambeze, no século XIX, Nhabezi foi o único rei branco do país. Um rei branco que, à semelhança de outra das personagens que era sacerdote, acaba por deixar para trás a sua vida de branco e de colonizador e adapta-se aos costumes e tradições locais, integrando-se e sendo respeitado por todos. Contudo foi também este grande caçador que introduziu na dieta o arroz, a banana e o limão, e ensinou os homens a produzir pólvora e a fabricar armas para se poderem defender do invasor. É também curiosa a forma, tal como o título indica, como a narrativa se detém sobretudo no período do declínio da saúde de Nhabezi, quando surgem os abutres de paragens distantes e ficam de vigia sobre as paliçadas, como aves de mau agoiro que colocam toda a gente em sobressalto, e depois na morte do protagonista, porque é em torno dele que se reúnem as várias personagens e as narrativas que cada uma traz, e nos ritos fúnebres. Apesar das analepses constantes, que surgem quase sempre de forma alternada, esta é sobretudo uma obra que retrata uma comunidade: sobre os conselheiros do rei, os seus guerreiros, as suas mulheres, os seus filhos.

Ainda que esta narrativa seja um produto de uma aturada pesquisa histórica, onde não faltam citações de uma suposta crónica e referências bibliográficas, que tanto nos leva a saber mais sobre Livingstone, o explorador do continente africano, como sobre o regícidio em Lisboa, esta é uma versão da História inteiramente imaginada pelo autor, formado em História, Geografia e Antropologia. Choriro ganha assim um tom de crónica histórica, do que podia muito bem ter acontecido, não isenta de espírito crítico e de ironia, como se percebe logo no início da narrativa, quando nos situa temporal, espacial e socialmente: «A vila de Tete, nos então quarenta, cinquenta, do século dezanove, era uma pequena povoação com cerca de cem brancos que se intitulavam portugueses europeus, como forma de distanciarem-se dos mais de cento e cinquenta filhos de Goa que muito se orgulhavam de ser portugueses. O trato entre eles não era de todo cortês, por os brancos, incomodados com a presença sempre crescente dos canarins, chamarem-lhes, quando os nervos vinham à pele em momentos de infortúnio nas incumbências do comércio, judeus asiáticos pelas felizes e lucrativas artimanhas que tinham no trato com as mercadorias trafegadas, e outras ocupações ligadas ao comércio de panos e bebidas e diversas quinquilharias de maior e menor valia para os pequenos e grandes reinos do sertão africano.» (p. 15). Ungulani Ba Ka Khosa tem uma prosa elaborada em que as frases se alongam de modo extenso, sendo necessário, por vezes, voltar ao início das mesmas de forma a perceber o seu encadeamento e conclusão. A escrita, apesar do cuidado nos factos históricos, é efectivamente literária, cuidada, despojada de grandes floreados. A narrativa torna-se ainda mais rica quando atenta nos factos e costumes locais, o que configura um dos aspectos mais interessantes da obra, como acontecia em Ualalapi: a forma como se retratam tradições, crenças e superstições, como, por exemplo, a crença sempre presente de como Nhabezi irá voltar em espírito como leão, rei, ou, caso os espíritos não o favoreçam, como Negozi – espírito mau – para assombrar os que ficam. Uma das mulheres, ainda antes da sua morte, está em permanente pavor a pensar de que forma irá ele regressar para voltar a partilhar a sua cama, se transfigurado em símio, leão, leopardo ou hiena, enquanto outra das mulheres do rei – claro que um rei não pode ter apenas uma mulher – a tenta tranquilizar, convencendo-a de que o «povo fala por imagens».

Como refere o próprio autor, «A minha língua-mãe é o português», assimilada logo em criança, e Ba Ka Khosa dá provas disso, utilizando o português com grande competência literária, conforme se reflete na sua destreza narrativa, ora contida em frases curtas ora distendendo-se em parágrafos mais longos, lembrando autores como Gabriel García Márquez, José Saramago ou João de Melo, criando o chamado efeito do barroquismo da linguagem. A sua linguagem é imaginativa e visual, densa e violenta, o que por vezes se revela de forma chocante, sem contudo chegar ao pornográfico, dotada de uma energia que veicula uma forte carga simbólica e mito-poética. Este autor moçambicano demarca-se por um estilo de escrita bastante ocidentalizante, quase rebuscado, com o condão de nos dar impressões fortemente visuais, enquanto desdobra a realidade moçambicana com a simplicidade e destreza de quem a conhece bem e vive no seu meio. Esperemos agora que a obra deste fabuloso autor continue a ser publicada e reeditada entre nós.

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Paulo Nóbrega Serra
Written by Paulo Nóbrega Serra
Sou doutorado em Literatura com a tese «O realismo mágico na obra de Lídia Jorge, João de Melo e Hélia Correia», defendida em Junho de 2013. Mestre em Literatura Comparada e Licenciado em Línguas e Literaturas Modernas, autor da obra O Realismo Mágico na Literatura Portuguesa: O Dia dos Prodígios, de Lídia Jorge e O Meu Mundo Não É Deste Reino, de João de Melo, fruto da minha tese de mestrado. Tenho ainda três pequenas biografias publicadas na colecção Chamo-me: Agostinho da Silva, Eugénio de Andrade e D. Dinis. Colaboro com o suplemento Cultura.Sul e com o Postal do Algarve (distribuídos com o Expresso no Algarve e disponíveis online), e tenho publicado vários artigos e capítulos na área dos estudos literários. Trabalhei como professor do ensino público de 2003 a 2013 e ministrei formações. De Agosto de 2014 a Setembro de 2017, fui Docente do Instituto Camões em Gaborone na Universidade do Botsuana e na SADC, sendo o responsável pelo Departamento de Português da Universidade e ministrei cursos livres de língua portuguesa a adultos. Realizei um Mestrado em Ensino do Português e das Línguas Clássicas e uma pós-graduação em Ensino Especial. Vivi entre 2017 e Janeiro de 2020 na cidade da Beira, Moçambique, onde coordenei o Centro Cultural Português, do Camões, dois Centros de Língua Portuguesa, nas Universidades da Beira e de Quelimane. Fui docente na Universidade Pedagógica da Beira, onde leccionava Didáctica do Português a futuros professores. Resido agora em Díli, onde trabalho como Agente de Cooperação e lecciono na UNTL disciplinas como Leitura Orientada e Didáctica da Literatura. Ler é a minha vida e espero continuar a espalhar as chamas desta paixão entre os leitores amigos que por aqui passam.