O Gato Que Chora Como Pessoa, de Geremias Mendoso, foi publicado pela Caminho e agraciado com o Prémio Branquinho da Fonseca Expresso/Gulbenkian 2019, na sua 10.ª edição, na Modalidade Juvenil. Esta cuidada edição de capa dura conta ainda com belíssimas ilustrações de Samuel (Arão) Djive, artista plástico já com relevo.

O livro de estreia do autor é composto por 19 breves contos, que funcionam como instantâneos da vida em Moçambique, onde se cruzam temas recorrentes como a pobreza, a fome, as cheias, o alcoolismo, a autoridade e, muito especialmente, um imaginário popular muito vivo, com adivinhos, curandeiros e feiticeiros em abundância, e cobras que matam pessoas ao morder a sua sombra.

Numa voz original, o autor tem um ou outro conto próximo do modelo da literatura oral, como «Cato no deserto» (espécie de conto exemplar) ou «Os desconhecidos caminhos de André» (em que à transgressão se segue a expulsão). Sem se colar a modelos, Geremias Mendoso encontrou uma voz própria, poética até, em frases como «Conformado com a minha pobreza, eu ia à escola descalço e com os cadernos no plástico.» (p. 13), para nos contar histórias tão trágicas quanto anedóticas que retratam a vivência naquele que é um dos países mais díspares. Mia Couto assina aliás um pequeno texto de apresentação na contra-capa onde refere: «Se o nome Geremias Mendoso pode parecer estranho, este livro causa ainda maior perplexidade. Raramente um texto de estreia contém já aquilo que um escritor busca em toda a sua carreira: uma voz própria, um modo único de narrar. Li este livro como quem escuta Moçambique.»

Estes contos são escritos numa variante do Português onde podemos encontrar expressões bastante típicas, já cristalizadas, no falar moçambicano como «Peço uma manga», «saímos fora», «toda minha família», «Está ver». Dos 19 contos, «Salvo das mãos do Diabo» é um dos poucos que não termina abrupta ou tristemente, pois praticamente todas as narrativas terminam mal, como que a revelar o peso da vida (e da morte), como acontece especialmente em «De como findou a vida de Aldo e Timolol». São histórias de vidas tão miseráveis que por vezes nem o corpo do morto pode encontrar descanso. Curiosamente o último conto conta-nos como a vida d’«O Português» Vasco encontra um final ironicamente feliz.

O autor Geremias José Mendoso, de 23 anos, é de nacionalidade moçambicana e enfermeiro licenciado pela Faculdade de Ciências de Saúde da Universidade Lúrio, em Nampula.

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Paulo Nóbrega Serra
Written by Paulo Nóbrega Serra
Sou doutorado em Literatura com a tese «O realismo mágico na obra de Lídia Jorge, João de Melo e Hélia Correia», defendida em Junho de 2013. Mestre em Literatura Comparada e Licenciado em Línguas e Literaturas Modernas, autor da obra O Realismo Mágico na Literatura Portuguesa: O Dia dos Prodígios, de Lídia Jorge e O Meu Mundo Não É Deste Reino, de João de Melo, fruto da minha tese de mestrado. Tenho ainda três pequenas biografias publicadas na colecção Chamo-me: Agostinho da Silva, Eugénio de Andrade e D. Dinis. Colaboro com o suplemento Cultura.Sul e com o Postal do Algarve (distribuídos com o Expresso no Algarve e disponíveis online), e tenho publicado vários artigos e capítulos na área dos estudos literários. Trabalhei como professor do ensino público de 2003 a 2013 e ministrei formações. De Agosto de 2014 a Setembro de 2017, fui Docente do Instituto Camões em Gaborone na Universidade do Botsuana e na SADC, sendo o responsável pelo Departamento de Português da Universidade e ministrei cursos livres de língua portuguesa a adultos. Realizei um Mestrado em Ensino do Português e das Línguas Clássicas e uma pós-graduação em Ensino Especial. Vivi entre 2017 e Janeiro de 2020 na cidade da Beira, Moçambique, onde coordenei o Centro Cultural Português, do Camões, dois Centros de Língua Portuguesa, nas Universidades da Beira e de Quelimane. Fui docente na Universidade Pedagógica da Beira, onde leccionava Didáctica do Português a futuros professores. Resido agora em Díli, onde trabalho como Agente de Cooperação e lecciono na UNTL disciplinas como Leitura Orientada e Didáctica da Literatura. Ler é a minha vida e espero continuar a espalhar as chamas desta paixão entre os leitores amigos que por aqui passam.