V. S. Naipaul é um dos autores que já estava na minha lista há muito tempo – apesar de ter toda a sua obra, tirando estas novas traduções, faltava-me o tempo. Mas agora que vivo em África ando definitivamente ainda mais virado para os pós-colonialistas.
Num Estado Livre é a junção de três histórias distintas cujo tema que as cruza é sempre a identidade num novo mundo e a que ponto ser cidadão do mundo é ganhar ou perder liberdade. Publicado em 1971 ganhou o Prémio Booker desse ano e quando o autor ganhou o Nobel em 2001 a Academia Sueca declarou que «Naipaul é verdadeiramente um Homem Nobre num Estado Livre».
V. S. Naipaul, de ascendência indiana, nasceu em 1932 na ilha de Trindade (Caraíbas). Em 1950, partiu para Inglaterra onde estudou com uma bolsa na Universidade de Oxford. Viajou por África e pela Índia, por longos períodos, durante a época da descolonização e isso reflecte-se nos grandes temas por si trabalhados, como a identidade e as raízes culturais.
Naipaul é uma das apostas da Quetzal que editou novas obras, como O Enigma da Chegada, e publicou novas traduções, como o imperdível Uma Casa para Mr. Biswas.
Num Estado Livre foi originalmente publicado em 1971 e venceu o Prémio Booker. O livro é constituído por três histórias distintas, acrescidas de um prólogo e um epílogo, autónomos, aparentemente retirados de um diário de viagem. A primeira história, intitulada «Um entre muitos», narra as desventuras, quase em jeito pícaro, de Santosh, um criado indiano, mais especificamente um cozinheiro residente em Bombaim, que convence o patrão a levá-lo consigo para Washington, que surge aos olhos de Santosh ainda como a terra dos sonhos: «Sou agora um cidadão americano e vivo em Washington, capital do mundo. Muitas pessoas, tanto aqui como na Índia, pensarão que venci na vida – mas.» (pág. 25). A adversativa indicia justamente que o preço de se chegar ao centro do mundo pode significar uma vitória mas não compensar o anonimato ou a vida anódina que se leva, pois como Santosh indica ele era «tão feliz em Bombaim. Era respeitado, tinha uma certa posição. Trabalhava para um homem importante.» (pág. 25). Santosh passa por uma série de peripécias até se adaptar à vida de Washington, o que retrata a maneira de ser simples da personagem, que deixou a mulher e filhos na sua aldeia nas montanhas para ir trabalhar em Bombaim, mas também revela, em última análise, toda a inépcia que um ser humano pode sentir ao passar por experiências novas – como a sua primeira viagem de avião – e ao ver-se perdido noutro continente, numa cidade que é um nervo fulcral da civilização moderna, onde até o encontrar negros (designados como hubshis) o choca, apesar de ele próprio ser um estrangeiro que se esquece que não pode andar descalço na rua. É emblemática a passagem em que Santosh ao vaguear pelas ruas, nos momentos livres que tem enquanto o patrão está a trabalhar, encontra um grupo de bailarinos vestidos com túnicas e bailarinas de sari a entoar cânticos em louvor do deus Krishna. Aquilo que de repente o alegra acaba depois por o perturbar, passado o fascínio ou reconhecimento inicial: «Pode ter sido pelo aspeto mestiço dos bailarinos; pode ter sido pela pronúncia incorreta do sânscrito e o seu sotaque. Pensei que aquelas pessoas eram agora estrangeiras, mas que, talvez, em tempos, tinham sido iguais a mim. Talvez, como nas histórias, tivessem sido trazidas para aqui há muito tempo com os hubshis, como cativas, e se tivessem transformado num povo perdido, como os nossos próprios ciganos, sempre de um lado para o outro, e já se tivessem esquecido de quem eram. Quando me ocorreu este pensamento, deixei de sentir prazer em vê-los dançar; e senti pelos bailarinos aquela espécie de desagrado que sentimos quando deparamos com alguma coisa que, em princípio, nos devia ser familiar, mas que, afinal, não o é, e se revela degradada» (pág. 37). Fica a ideia de que o estrangeiro só pode vencer quando é abraçado pelo seu exotismo. No fim, vencidas as suas próprias barreiras culturais e preconceitos, alcançando sucesso fazendo aquilo que faz melhor, fica a sensação de que Santosh não é mais livre por ver reconhecida a sua cidadania em Washington, como se a conquista de uma posição legal e cívica implicasse, tão somente, a perda da autonomia ou da felicidade na espontaneidade: «sou irmão de quem ou quê? Em tempos, fui apenas um elemento no meio da torrente, nunca pensando em mim como uma presença. Depois, vi-me ao espelho e decidi ser livre. Tudo o que a minha liberdade me trouxe é o conhecimento de que tenho um rosto e de que tenho um corpo, de que tenho de alimentar e vestir este corpo durante alguns anos. Depois, tudo acabará.» (pág. 71).
A segunda história, «Digam-me quem matar», é uma narrativa ambígua, em que o leitor tenta fazer sentido dos pensamentos soltos e aparentemente desconexos da personagem sobre quem sabemos muito pouco, apenas que é irmão de Dayo, por quem fará tudo – chega a acumular dois trabalhos – para que ele possa estudar em Londres, como forma de encontrar um prémio adequado à sua beleza e inteligência. Apesar de a chave do enigma estar sucintamente explicada na sinopse do livro, o leitor não é imediatamente confrontado com a explicação ou com o desfecho da história, se bem que o título também fornece uma forte pista, além da referência ao filme A corda de Hitchcock (abundam aliás as referências ao cinema) que indiciam, em suma, que a personagem tem esqueletos no armário ou um segredo bem enterrado no baú.
Por fim, a terceira história, «Num Estado Livre» é justamente a que dá nome ao livro, sendo também a mais extensa, com cerca de 170 páginas. A narrativa, situa-se num país não nomeado que é uma ex-colónia britânica e que apesar de ter reclamado a sua independência assenta numa estabilidade política periclitante, como muitos países africanos: «Neste país africano havia um presidente e havia também um rei. Pertenciam a tribos diferentes. A inimizade entre as tribos era antiga, e, com a independência, as inquietações de parte a parte agudizaram-se.» (pág. 129). O presidente é apoiado pelos homens brancos e decide enviar o seu exército contra o povo rei, justamente num fim de semana em que Bobby, funcionário administrativo num dos departamentos do governo central, parte numa viagem de carro dando boleia a Linda, ela uma devoradora de homens, ele um homossexual que não teme pagar aos negros para dormir com eles. Esta narrativa, extremamente bem escrita e magistralmente construída, permite-nos sentir a tensão que impera nos diálogos que Linda e Bobby esgrimem entre si, enquanto tentam entreter a longa duração dessa viagem de carro pelo país, oscilando entre assuntos sérios e outros mais delicados, que permitem perspectivar a vida nesse país africano póscolonial de formas distintas e muitas vezes antagónicas, ao mesmo tempo que nos faz sentir as incertezas de uma viagem imensa por um país (e quem conhece as vastas estradas do continente africano compreende bem) em polvorosa onde também os estrangeiros se vêem apanhados no turbilhão político de países recém-fundados, por vezes delineados a regra e esquadro pelo colonizador – e que têm de lidar com a sua emergência enquanto nação mas também com as suas próprias guerras interinas entre tribos –, só podem optar por duas posturas: a da arrogância neocolonialista eivada de alguma descrença ou a do pacifismo conformista que raia a submissão, como é o caso de Bobby, que apesar de passar por controlos de segurança onde nem sequer o mandam parar, acaba ainda assim por, a certa altura, e apesar da insistência de Linda em prosseguir viagem, sair do carro numa das barreiras o que só lhe trará problemas. Os expatriados parecem dividir-se em duas categorias, aqueles que só podem estar a viver em África para enriquecer, e aqueles que já não têm coragem de partir apesar da sua infelicidade estrangeirada. É bastante sintomática a personagem do coronel que persiste num comportamento dominado e que, mesmo albergando a certeza de que um dia aqueles que trabalham para si se podem virar contra ele e matá-lo, não se decide a partir. A narrativa de «Num Estado Livre» desmistifica ainda uma certa ideia fantasiosa que se tem de África: «A África aqui era um cenário. Glamour para o visitante ou expatriado branco; glamour também para o africano expulso do mato, para o qual, na cidade, a civilização parecia ter sido concedida, na sua totalidade, com a independência. Continuava a ser uma cidade colonial, com um glamour colonial. Todos os que lá viviam estavam longe de casa.» (pág. 130).
Num Estado Livre é a junção de três histórias distintas, quase como um livro de contos, matizadas por um certo tom pessimista, em que todos os protagonistas são estrangeirados, e cujas questões que as cruzam são as da identidade individual num novo mundo e até que ponto ser cidadão do mundo significa ganhar ou perder liberdade. Conforme declarou a Academia Sueca, quando o autor ganhou o Nobel em 2001, «Naipaul é verdadeiramente um Homem Nobre num Estado Livre».
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