Escrevi há tempos sobre Cartas da Guerra, de António Lobo Antunes, e foi curioso como apesar de na altura ter comentado que essa leitura não me agradou particularmente acabou por ser bastante útil para aquilo que me decidi a fazer. Já tinha ligo algumas obras do autor anteriores a O meu nome é legião e Arquipélago da Insónia mas foi a partir destas que comecei a ler a sua obra, à medida que saía um novo romance. Contudo com o Cartas da Guerra decidi-me, dizia, a ler a obra toda do autor à medida que foi sendo publicada e, naturalmente, escrita. Comecei assim com Memória de Elefante e se bem que ao início a leitura custou-me um pouco acabou por fazer sentido no fim e, mais uma vez, graças às cartas que o autor publicou.
Esta obra faz parte de um tríptico (com Os Cus de Judas, que espero ler em breve, e Conhecimento do Inferno) mais autobiográfico. A narrativa inicia no hospital Miguel Bombarda, onde trabalha a personagem sem nome, o senhor doutor (na nossa sociedade de títulos), hospital esse onde também trabalhou o pai, e acompanha mais que o quotidiano da vida de um médico, psiquiatra, os devaneios e reflexões do mesmo. A obra é pungente e melancólica, numa constante ânsia da personagem pela mulher que perdeu, e as duas filhas, enquanto faz um retrato da sociedade pós-revolucionária, não faltam as críticas a Salazar e ao regime pelo qual, aliás, o próprio médico combateu em Angola, durante a guerra colonial. Apesar de a obra ser narrada na terceira pessoa há momentos em que se confundem as vozes e o narrador entra mesmo na mente da personagem. Talvez daí esse seu profundo desencanto perante a sociedade pela qual ele se sacrificou e outros morreram. A linguagem é corrosiva e chega a ser pornográfica, nesse mesmo registo de acidez crítica. E foi no penúltimo capítulo do livro quando Dóri, uma mulher gorda e envelhecida que ele encontra no Casino, com uma linguagem brejeira e um interesse descarado na bolsa do médico que quer apenas afogar as mágoas da sua solidão, entra numa espécie de solilóquio com o médico, sentados no carro, em que durante cerca de 7 páginas que percebi a forte intertextualidade com aquela que, segundo o autor nas suas Cartas, será uma das grandes obras da literatura, ou pelo menos aquela que o marcou e que ele aqui parece querer seguir: Ulisses, de James Joyce. Memória de Elefante narra assim as peripécias num único dia da vida desse médico psiquiatra, ele próprio aliás pertencente a um grupo de terapia, e que mais parece recusar-se a assumir-se como adulto, comportando-se como um adolescente crescido, que deambula, pela cidade de Lisboa, enquanto este Leopold Bloom português desfia o seu desencanto perante uma Olissipo apodrecida pós 25 de Abril, até encontrar a sua Molly, enquanto a sua Penélope permanece inacessível.
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