Em Londres, em 1945, quando a cidade se reergue da ruína da guerra, Nathaniel, um jovem de 14 anos, e Rachel, sua irmã mais velha, vêem-se abandonados pelos pais que alegam terem de deixar o país em trabalho e os deixam a cargo de estranhos misteriosos que podem muito bem ser criminosos, como o Traça ou o Flecheiro, e que aliás parecem viver como tal. Nathaniel irá inclusive ajudar um deles no tráfico de galgos vindos de França como forma de manter vivas e activas as clandestinas corridas de cães.
«Havia partes da cidade onde não se via ninguém, só algumas crianças que caminhavam sozinhas, indiferentes como pequenos fantasmas. Era a época dos fantasmas da guerra, dos prédios cinzentos sem iluminação, mesmo de noite, as janelas estilhaçadas ainda cobertas com tecido preto, onde antes houvera vidro. A cidade ainda se sentia ferida, duvidosa de si própria. Permitia que vivêssemos sem regras. Já tinha acontecido de tudo. Não tinha?» (p. 37)
E é assim que o jovem Nathaniel descobre a sua sexualidade, envolvendo-se com uma jovem cujo nome desconhece em casas abandonadas que aguardam novos donos.
É um romance que tem tanto de belo como de misterioso, enquanto Nathaniel, em adulto, começa a encaixar o enigma que foi a sua vida: «tenho agora uma idade que me permite falar disso, de como crescemos protegidos pelos braços de estranhos. E é como se se fizesse luz sobre uma fábula, acerca dos nossos pais, acerca de Rachel e de mim, e do Traça, e dos outros que se juntaram a nós depois. Suponho que haja tradições e tropos em histórias como esta.» (p. 18)
Mas apesar do engano e das separações inevitáveis que resultam da mentira em que os pais de Nathaniel o deixam, como um filho órfão, o que persiste neste romance é a luminescência do saudosismo e da poesia palpitante na vida: «Uma pessoa regressa a esse tempo passado armada com o presente, e, por mais escuro que esse mundo se encontrasse, não o deixa sem luz. Leva consigo o seu ego adulto. Não é para ser um reviver, mas sim um rever.» (p. 100) Até porque Nathaniel um dia seguirá as pisadas da mãe, o que lhe permite reconstituir o arquivo do passado.
«Se uma ferida é grande, não se pode transformá-la em algo que possa ser falado, quando muito escreve-se.» (p. 224)
O autor, nascido no Sri Lanka em 1943, é autor de sete romances, um livro de memórias, outro de não-ficção, vários de poesia, mas é sobretudo conhecido por O Paciente Inglês, vencedor do Golden Man Booker Prize em 2018, e adaptado ao cinema em 1996. As únicas outras obras publicadas entre nós são O Fantasma de Anil e Divisadero.
Leave a Comment