Intimidades, de Katie Kitamura, com tradução de Tânia Ganho, chegou recentemente às livrarias. Publicado pela Quetzal, representa a estreia desta autora norte-americana em Portugal. Assinale-se que o nome da tradutora já se converteu em selo de qualidade, como convém, aliás, a este livro que se apresenta como “um romance preciso e astuto sobre os paradoxos da linguagem”.

Intimidades lê-se como um thriller psicológico e arrebata-nos logo nas primeiras páginas. Numa prosa límpida, narrada na primeira pessoa, uma intérprete do Tribunal Internacional de Haia recém-chegada conta-nos como ainda se encontra a conhecer a cidade, a fazer as suas primeiras amizades. Quando chegamos ao primeiro capítulo percebemos que a narrativa, tão simples e aparentemente isenta, de súbito nos agarra e envolve subtilmente em mistério.

Ao longo dos capítulos seguintes, a aura de suspense adensa-se, sem nunca se tornar declarada. Quase nem nos apercebemos que nunca chegamos a saber o nome desta mulher, como se fosse uma consequência do apagamento da sua identidade que o trabalho lhe exige, pois enquanto intérprete é importante ser-se discreto, quase invisível, e conseguir inclusivamente ressoar as entoações e emoções do discurso que lhe chega. Contudo, entretanto, ficámos a saber que esta jovem intérprete é uma mulher de muitas línguas e identidades. Falante nativa de inglês e japonês, por causa dos pais, e fluente em francês, por ter passado a infância em Paris, também estudou espanhol e alemão; o seu jeito para línguas é de tal ordem que aprende neerlandês só de o ouvir falar ao longo das viagens de autocarro.

 Envolvida com um homem que ainda não se desligou da mulher, embora ela tenha ido para Lisboa com os filhos, e muito próxima de Jana, uma amiga que mal acaba de se mudar para um novo apartamento testemunha um ato de violência que a deixa obcecada, a protagonista vê-se ainda envolvida numa situação política explosiva ao servir de intérprete no julgamento de um antigo presidente acusado de crimes de guerra.

Uma leitura compulsiva e empolgante que aborda os meandros do trabalho de intérprete num cenário peculiar.

Num crescendo inquietante, o leitor torna-se cativo da incerta fidedignidade do relato da narradora. Todos os acontecimentos são filtrados pela sua perspectiva e mesmo as falas das personagens são-nos transmitidas mais ou menos indirectamente pela intérprete (bastante propensa aliás a interpretar demasiado o que observa) que serve permanentemente de filtro. É ela quem nos transmite o que é dito, como é dito, o que se queria realmente dizer, com que intenção, com que significado.

Um livro sobre a linguagem que se constrói naturalmente mediante uma linguagem própria. Daí a importância de uma tradução que encontre o tom certo, sem criar ruído nem deturpações. Conforme nos diz a protagonista: “O meu trabalho é tornar o espaço entre as línguas o mais pequeno possível.” (p. 105). Tânia Ganho também o consegue muito bem, como tantos outros tradutores que permanecem quase sempre invisíveis (mais recentemente, algumas editoras começaram a destacar o nome do tradutor na capa).

Katie Kitamura nasceu na Califórnia em 1979. É licenciada pela Universidade de Princeton e doutorada em Literatura pelo London Consortium. Escreve regularmente para os jornais The Guardian, The New York Times e para a revista Wired. É autora de cinco livros de ficção e não-ficção, dois deles finalistas do New York Public Library Young Lions Fiction Award. O seu romance anterior, A Separation, foi escolhido como livro do ano pelo New York Times e pelo PBS NewsHour/New York Times Book Club; aclamado pelos seus pares e pela crítica, está a ser adaptado ao cinema.

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Paulo Nóbrega Serra
Written by Paulo Nóbrega Serra
Sou doutorado em Literatura com a tese «O realismo mágico na obra de Lídia Jorge, João de Melo e Hélia Correia», defendida em Junho de 2013. Mestre em Literatura Comparada e Licenciado em Línguas e Literaturas Modernas, autor da obra O Realismo Mágico na Literatura Portuguesa: O Dia dos Prodígios, de Lídia Jorge e O Meu Mundo Não É Deste Reino, de João de Melo, fruto da minha tese de mestrado. Tenho ainda três pequenas biografias publicadas na colecção Chamo-me: Agostinho da Silva, Eugénio de Andrade e D. Dinis. Colaboro com o suplemento Cultura.Sul e com o Postal do Algarve (distribuídos com o Expresso no Algarve e disponíveis online), e tenho publicado vários artigos e capítulos na área dos estudos literários. Trabalhei como professor do ensino público de 2003 a 2013 e ministrei formações. De Agosto de 2014 a Setembro de 2017, fui Docente do Instituto Camões em Gaborone na Universidade do Botsuana e na SADC, sendo o responsável pelo Departamento de Português da Universidade e ministrei cursos livres de língua portuguesa a adultos. Realizei um Mestrado em Ensino do Português e das Línguas Clássicas e uma pós-graduação em Ensino Especial. Vivi entre 2017 e Janeiro de 2020 na cidade da Beira, Moçambique, onde coordenei o Centro Cultural Português, do Camões, dois Centros de Língua Portuguesa, nas Universidades da Beira e de Quelimane. Fui docente na Universidade Pedagógica da Beira, onde leccionava Didáctica do Português a futuros professores. Resido agora em Díli, onde trabalho como Agente de Cooperação e lecciono na UNTL disciplinas como Leitura Orientada e Didáctica da Literatura. Ler é a minha vida e espero continuar a espalhar as chamas desta paixão entre os leitores amigos que por aqui passam.