Harper Lee é uma autora que marcou a literatura norte-americana e anglófona apesar de o ter feito – pensava-se – através de uma única obra. Mataram a Cotovia (To kill a mockingbird) considerado Melhor Romance do Século, em 1999, pelo Library Journal, ganhou o Pulitzer em 1961 e vendeu mais de 30 milhões de exemplares, traduzido em mais de quarenta línguas, adaptado ao cinema em 1962. Em Portugal, foi traduzido originalmente sob o título Por favor não matem a cotovia, até que a Relógio d’Água numa edição mais recente corrigiu o título, segundo muitos de forma mais justa, para Mataram a Cotovia. Poucos meses depois de ter sido publicado outro manuscrito seu, que parecia constituir uma sequela ao seu primeiro romance, a autora faleceu no dia 19 de Fevereiro deste ano.
Apenas no final da sua vida, quando Harper Lee contava já 88 anos, foi publicada outra obra, entre muita polémica, lançada entre nós com o título Vai e Põe uma Sentinela, publicada pela Editorial Presença, em Outubro de 2015. Em agosto de 2014 a advogada de Harper Lee, Tonja B. Carter, ao remexer entre vários documentos da autora ter-se-á deparado com um manuscrito que lhe chamou a atenção pois parecia tratar-se de um rascunho para o To kill a mockingbird, sendo que os nomes das personagens eram os mesmos. Só depois percebeu que aquela era uma história diferente e situada vinte anos mais tarde em relação à acção de Mataram a Cotovia, com uma nova intriga e onde as crianças eram agora jovens adultos. Supostamente Go set a watchman foi o primeiro original de Harper Lee mas, quando o apresentou ao editor, este ter-lhe-á sugerido que escrevesse um livro da perspectiva de Scout ainda em criança, recuando cerca de vinte anos.
Entretanto, tudo o que se conseguiu apurar sobre a publicação deste manuscrito perdido, ou melhor dizendo, esquecido, terá sido por interposta pessoa, sem ter havido qualquer declaração directa por parte da autora. Afinal, Harper Lee não dava uma entrevista desde 1964, pois recolheu-se ao anonimato, e desde 2007, quando terá sofrido um acidente vacular cerebral, que vivia num lar na terra onde nasceu, Monroeville, encontrando-se física e metalmente debilitada, e aparentemente cega. Mesmo quando a advogada foi julgada em tribunal o silêncio de Harper Lee ter-se-á mantido, ainda que tenha deixado a mensagem de que este manuscrito era uma obra acabada e, mesmo que não estivesse ao nível do romance por que ficou mundialmente conhecida, era certamente uma obra digna de uma principiante.
Nelle Harper Lee nasceu no dia 28 de Abril de 1926 em Monroeville, uma pequena cidade do Alabama, onde se tornou a melhor amiga de um rapaz que se mudou para lá aos quatro anos, após o divórcio dos pais. Harper Lee servirá de inspiração a esse mesmo rapaz, anos depois, para a personagem Idabel de Outras vozes, outros lugares, o romance de estreia de Truman Capote, enquanto este, por seu lado, será retratado como Dill, o vizinho e amigo da protagonista Scout, de Mataram a Cotovia, um rapaz baixo, de ombros largos, sempre presente nas brincadeiras de Scout e do irmão Jem. Quem viu os filmes Capote (2005) e Infame (2006), recordar-se-á de Nelle Harper Lee, a inseparável amiga de Truman Capote, representada, respectivamente, por Catherine Keener e Sandra Bullock.
Nelle foi a mais nova de quatro irmãs, filhas de um advogado, cuja carreira terá começado com o polémico caso de defesa de dois negros acusados de terem morto um comerciante branco, depois condenados a morte por enforcamento. Este caso real está de certa forma retratado na forma como Atticus Finch, o pai de Scout, também ele advogado, em Mataram a Cotovia, não hesitará em defender, perante o assombro e revolta de vizinhos e amigos, um negro acusado de violar uma jovem branca, ensinando aos filhos que nunca se devem render ao racismo ou a qualquer outro tipo de preconceito social. Esta situação irá ter um volte face curioso no segundo livro de Harper Lee, Vai e Põe uma Sentinela, onde o pai de Scout, agora com 26 anos e conhecida pelo nome próprio de Jean Louise, parece finalmente sucumbir também ele ao racismo, o que retrata as tensões raciais que se viviam nos anos 50.
Em Vai e Põe uma Sentinela sente-se, efectivamente, esse constante retorno à infância de Scout, o que parece justificar, de facto, que este livro tenha provocado a escrita de Mataram a Cotovia. Quando Jean Louise regressa à sua terra natal, pois vive agora em Nova Iorque (à semelhança da autora), para visitar o pai que está doente, existem constantes deambulações pelo passado da protagonista, por vezes através da narração de episódios subitamente relembrados, muitas vezes apenas em subtis alusões ou comparações entre o tempo da narrativa e o tempo da infância: «Os comboios haviam mudado desde a sua infância» (p. 11); «Havia vinte anos que não voltava àquela estação» (p. 14); «O tempo da escola havia sido o período mais infeliz da sua vida» (p. 36).
A escrita é leve mas cuidada, e com um humor bastante peculiar, que parece advir da própria perspectiva e espírito irreverente de Jean Louise: «Jean Louise, Jem e Dill ter-se-iam aborrecido de morte não fosse o reverendo Moorehead possuir um talento deslumbrante que fascinava as crianças: ciciava. Tinha um espaço entre os dois dentes da frente (Dill jurava que eram falsos e tinham sido feitos assim para os fazer parecer naturais) que produzia um som desgraçadamente divertido quando ele pronunciava uma palavra com um «s» ou mais. Perversão, Jesus, Cristo, salvação, sucesso eram palavras-chave que esperavam ouvir todas as noites, e a sua atenção era recompensada de duas formas: naquele tempo, nenhum pastor conseguia terminar um sermão sem as usar todas, o que lhes garantia deliciosos paroxismos de riso abafado pelo menos sete vezes por noite; em segundo lugar, uma vez que prestavam uma atenção tão rigorosa ao reverendo, os três amigos foram considerados as crianças mais bem comportadas da congregação.» (p. 60-61).
Publicado ou não com o consentimento da autora, que já não terá vivido o suficiente para colher os louros deste sucesso (a obra estava já no top de vendas da Amazon, seis meses ainda antes do seu lançamento); o estado de saúde da autora seria tão debilitante como se fazia crer?; este romance tem de facto qualidade literária para fazer jus à sua obra anterior que parecia fazer de Harper Lee autora de um único livro (apesar de ter escrito alguns contos e ensaios)? Esta não é uma obra de todo pacífica, dado o contexto em que surge e as questões que levanta, mas é certamente um romance meritório de ser lido, independentemente de se ler antes ou depois ou até mesmo de se ter lido ou não Mataram a Cotovia. É também uma obra que faz luz sobre o passado da protagonista, Jean Louise Finch (terá a sua infância e a educação que recebeu por parte do pai uma mentira?) e sobre o passado de uma nação dividida pelas tensões raciais que, afinal, não são um assunto arrumado, como ainda recentemente se pôde verificar a propósito da questãos dos Óscares.
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