Robinson Crusoe, obra essencial à formação do romance moderno inglês publicada em 1719 e, possivelmente, o segundo livro mais traduzido em todo o mundo, a seguir à Bíblia, cruza o documentário com a ficção. Daniel Defoe aposta novamente nessa fórmula três anos depois, mais ou menos quando deflagra nova epidemia de peste em Marselha, ao escrever este Diário do Ano da Peste. Tudo aponta para que este narrador na primeira pessoa, que assina o final do livro como H. F. seja um tal de Henry Foe, tio do autor. Defoe procura assim dar a crer que se apoiou num diário deste seu antepassado para narrar esse fatídico ano de 1665, quando a peste grassou em Londres mais de 200 000 vidas. Defoe teria então cerca de 5 anos.

Sem entradas datadas, este documento esbate novamente a fronteira entre ficção/romance e registo verídico dos factos, apoiando-se sobretudo em gráficos e boletins de mortalidade – realidade estranhamente próxima da que se tem vivido nos últimos tempos –, onde confluem, no entanto, em jeito de narrativa pessoal, testemunhos de histórias que o narrador terá presenciado ou terá “ouvido dizer”. Escrito na perspectiva de quem ficou na cidade, enquanto o grosso da população evita o confinamento e foge para o campo (por vezes contribuindo para disseminar ainda mais a epidemia), este é um relato sufocante de alguém que mantém a cabeça fria e recusando-se a ver a mão de Deus no sucedido escrutina a realidade de forma científica, analítica (se bem que na altura ainda não se saberá qual a verdadeira causa da peste, primeiro surgida em 1347). A presente narrativa apresenta-se sobretudo como um guia, para que os seus leitores «tomem a minha descrição mais como uma advertência sobre a conduta a seguirem do que como a história dos meus próprios atos, visto de outro modo o registo do que me aconteceu não valer para eles absolutamente nada» (p. 36)

Diário do Ano da Peste é uma belíssima edição das PIM! Edições, com ilustração de capa da Miss Inês, um prefácio de Rui Tavares, e com introdução e tradução de João Gaspar Simões, onde se incluem ainda ilustrações e imagem de capa do original.

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Paulo Nóbrega Serra
Written by Paulo Nóbrega Serra
Sou doutorado em Literatura com a tese «O realismo mágico na obra de Lídia Jorge, João de Melo e Hélia Correia», defendida em Junho de 2013. Mestre em Literatura Comparada e Licenciado em Línguas e Literaturas Modernas, autor da obra O Realismo Mágico na Literatura Portuguesa: O Dia dos Prodígios, de Lídia Jorge e O Meu Mundo Não É Deste Reino, de João de Melo, fruto da minha tese de mestrado. Tenho ainda três pequenas biografias publicadas na colecção Chamo-me: Agostinho da Silva, Eugénio de Andrade e D. Dinis. Colaboro com o suplemento Cultura.Sul e com o Postal do Algarve (distribuídos com o Expresso no Algarve e disponíveis online), e tenho publicado vários artigos e capítulos na área dos estudos literários. Trabalhei como professor do ensino público de 2003 a 2013 e ministrei formações. De Agosto de 2014 a Setembro de 2017, fui Docente do Instituto Camões em Gaborone na Universidade do Botsuana e na SADC, sendo o responsável pelo Departamento de Português da Universidade e ministrei cursos livres de língua portuguesa a adultos. Realizei um Mestrado em Ensino do Português e das Línguas Clássicas e uma pós-graduação em Ensino Especial. Vivi entre 2017 e Janeiro de 2020 na cidade da Beira, Moçambique, onde coordenei o Centro Cultural Português, do Camões, dois Centros de Língua Portuguesa, nas Universidades da Beira e de Quelimane. Fui docente na Universidade Pedagógica da Beira, onde leccionava Didáctica do Português a futuros professores. Resido agora em Díli, onde trabalho como Agente de Cooperação e lecciono na UNTL disciplinas como Leitura Orientada e Didáctica da Literatura. Ler é a minha vida e espero continuar a espalhar as chamas desta paixão entre os leitores amigos que por aqui passam.