Dennis Lehane é um autor norte-americano nascido e criado em Dorchester, Massachusetts. O sucesso dos seus romances, premiados e traduzidos em diversas línguas, transparece ainda no grande ecrã para o qual foram já adaptados romances como Mystic River (realizado por Clint Eastwood e reunindo um grande elenco), Shutter Island (realizado por Martin Scorsese, com Leonardo DiCaprio) e Gone, Baby, Gone (realizado por Ben Affleck e protagonizado pelo irmão Casey Affleck, um dos fortes candidatos ao Óscar deste ano com Manchester by the Sea). Em julho de 2016, a Sextante Editora publicou ainda Moonlight Mile, que retoma a intriga de Gone, Baby, Gone, quando o mesmo detective, doze anos depois, volta a procurar a dolescente Amanda, a criança antes desaparecida que uma vez encontrada foi entregue aos cuidados de uma mãe negligente e alcoólica.
Chegou agora a vez de Viver na noite, publicado uma vez mais pela Sextante Editora em maio de 2013, chegar aos cinemas portugueses no passado dia 12 de janeiro, uma vez mais adaptado por Ben Affleck, que desta vez não só realiza como também interpreta o papel principal.
Dennis Lehane é comummente considerado como um dos grandes nomes da literatura policial norte-americana mas os seus romances são normalmente livros complexos que lidam muito mais com as relações humanas e a natureza humana uma vez exposta a tragédias do que com o solucionar de um caso detectivesco (como é o caso da forma como a perda de uma filha em Mystic River faz ressurgir feridas e traumas antigos que afectam três famílias distintas que moram numa mesma rua).
A intriga de Viver na noite, à semelhança de Shutter Island, remonta a um passado um pouco mais remoto, designadamente ao ano de 1926, em Boston, em plena época da Lei Seca, o que não impede que abunde a bebida e proliferem destilarias e bares clandestinos o que leva ainda a lutas entre gangues que fazem correr outros rios e com a conivência de polícias corruptos. Joseph Coughlin é um desses gangsters que vive na noite do crime, movendo-se entre a clandestinidade de uma cidade que não deixa de encontrar escape para os seus vícios e necessidades, preferindo fazê-lo à noite, mais ou menos às claras. Mas Joe, como prefere ser chamado – e logo aqui se institui, de certa forma, essa sua outra identidade – não é o gangster típico, pois trata-se do filho mais novo de um capitão da polícia de Boston, irmão de outro polícia, mas que preferiu virar costas à sua educação e ao meio de onde provém para abraçar o submundo do crime. Além disso, Joe é um gangster instruído, em virtude dos dois anos que teve na prisão onde aproveitou para ler tudo o que agarrava na biblioteca, se bem que prefira antes definir-se como um «fora da lei», além de se vir a tornar num respeitável benemérito de Ybon, onde irá viver o apogeu da sua “carreira”. É aí que Joe percebe também que é impossível fugir à verdade de que ele é realmente um gangster e que esse estatuto se define pelo facto de ser responsável por um gangue, que é afinal a sua família. Mas viver na noite, mesmo quando se é bem sucedido e se consegue viver mais do que uns anos estouvados, traz também um peso irreparável de consciência ou de remorso na alma: «– A noite – disse Joe. – Sabe demasiado bem. Se vivermos de dia, temos de obedecer às regras deles. Portanto, vivemos da noite e fazemos as nossas regras. Mas, D.? Não temos assim tantas regras.» (pág. 375). Curiosamente, não só uma grande parte dos acontecimentos principais do livro parecem ocorrer ao abrigo da noite, como a escuridão é aliás um motivo que está presente em diversos momentos e de diversas formas no livro.
A escrita de Dennis Lehane é fortemente trabalhada, mas num registo fluído, onde a intriga decorre como um rio sem quaisquer desvios ou superfluidades e há diversos episódios que são claramente visuais, em que as palavras pintam cerebral e automaticamente uma espécie de tela vívida. O autor tem ainda um grande cuidado no pormenor histórico, contextualizando os acontecimentos narrados na época em questão, e a sua escrita raia diversas vezes o lirismo, mesmo quando a descrição é crua como convém à violência dos acontecimentos narrados: «Ouviu uma goteira constante, semelhante a torneiras a pingar, e abriu os olhos para ver o seu próprio sangue a pingar no cimento, gotas do tamanho de moedas de cinco cêntimos, mas jorrando tão depressa que se transformaram em amibas e as amibas em poças.» (pág. 78). E apesar de por vezes o autor adoptar um registo mais negro e dramático, não faltam os momentos de humor: «Vestia um fato de quatro botões champanhe, de riscas brancas como giz. A sua camisa lilás tinha um colarinho branco contrastante sobre uma gravata vermelha como o sangue de riscas negras. Os seus sapatos brancos e pretos tinham os atacadores apertados acima dos tornozelos. Se se pedisse a um velho que perdera a visão que identificasse o gangster na estação a cem metros de distância, ele apontaria um dedo trémulo a Dion.» (pág. 168).
O romance encontra-se dividido em três partes: «Boston» (1926-1929); «Ybor» (1929-1933) e «Todos os filhos violentos» (1933-1935). Embora a intriga seja sempre linear e coesa acaba por nos levar por caminhos completamente novos de uma parte para outra. A própria narrativa arranca in media res, quando os pés de Joe são mergulhados numa banheira de cimento e o futuro se afigura muito risonho, mas no segundo parágrafo passamos de imediato ao início da história, onde se apresenta Joe nos seus primeiros momentos de delinquência juvenil quando assalta com os irmãos Bartolo um speakeasy (estabelecimentos ilícitos que vendiam ilegalmente bebidas alcoólicas) que pertencia a Albert White, um dos principais manda-chuvas de Boston. É aí que Joe se apaixona perdidamente por Emma, uma rapariga que trabalhava no speakeasy que ele assaltou e que apesar de estar a ser comandada por Joe, sendo depois algemada e amordaçada, mantém sempre a calma e comporta-se com uma certa frieza condizente com a sua aparência: «olhos de inverno e pele tão pálida que quase podia ver através dela o sangue e a carne por baixo» (pág. 15).
Quando regressamos a esse momento fatídico da vida de Joe, estamos no fundo a preparar-nos para o início do fim da história. Após um volteface, a terceira e última parte do livro consiste num desenlace, resultando num desfecho rápido que retoma os eventos narrados no início da primeira parte que despoletaram a intriga, e encerra a moral de que por muito que nos afastemos no tempo e no espaço há sempre acontecimentos que voltam para nos perseguir e revelar o vazio ou a ilusão em que por vezes baseamos as nossas vidas na vã tentativa de fugir justamente a essa escuridão interior: «Sentado naquela cadeira ridícula olhando para as janelas amarelas inclinadas na água negra, ele soube. Quando se morre, não se vai para um lugar melhor; este era o lugar melhor porque não estávamos mortos. O céu não estava nas nuvens, era o ar nos nossos pulmões.» (pág. 198).
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