Quando viajo gosto de levar comigo um livro de viagens relacionado com o destino de férias. Desta vez, apesar de haver diversos romances situados em Malta, não encontrei nenhum livro das colecções de viagens de editoras como a Relógio d’Água ou a Tinta da China. Mas houve uma amiga que em boa hora me aconselhou A Deusa Sentada, de Helena Marques.
Laura parte de Lisboa com a sua prima Matilde, oito anos mais nova, numa viagem de busca das suas raízes maltesas, pois diz-se que o avô André era originário de Malta, tendo casado em 1767. Mas acabam por encontrar muito mais do que isso.
A autora cruza locais distintos como a ilha da Madeira, Malta, Inglaterra e Portugal, numa retrospectiva histórica muito bem tecida, e justificada pelo passado das várias personagens que aqui se cruzam. Tão depressa lemos sobre os refugiados de Gibraltar em Junho de 1939 que encontraram no Funchal uma nova morada, como sobre Malta ter sido devastada durante a II Guerra, pelos olhos de personagens que o vivenciaram, com mais de mil toneladas de bombas em Fevereiro de 1942, ou mesmo sobre o 25 de Abril.
A autora apresenta informação histórica, mas sempre de uma forma muito bem conseguida, sem que pareça que está simplesmente a debitar dados como um guia de viagens ou um livro de história. Além disso, aborda-se ainda duas gerações distintas: Matilde, nascida em 1945, «da geração de sessenta, os das lutas universitárias, da resistência académica, e os outros, os franceses de Maio de 68 e os americanos que denunciaram a guerra do Vietname» e os outros, como Matilde, que eram muito novos para vivenciar a Revolução de Abril.
O livro fala-nos sobre as maravilhas naturais e culturais de Malta, lugar de chegadas e partidas, uma ilha onde várias raças se foram cruzando ao longo dos séculos e todos os povos mediterrânicos se miscigenaram, onde a pessoa com a pele mais morena pode revelar uns olhos de um azul meditrrerânico, como o mar que abraça a ilha, onde se fala uma língua derivada do fenício que soa áspera como o árabe mas em que o inglês, apesar de ser geralmente utilizado, dá lugar ao português, pois devido à presença italiana é bem possível que nos dirijamos a alguém em inglês (enquanto falamos em português com a pessoa ao nosso lado) para ele nos responder em italiano revelando que nos compreende claramente.
A prosa da autora corre como um rio e este livro lê-se muito muito bem. Ver artigo
Nuno Júdice, nascido na Mexilhoeira Grande, Algarve, em 1949, volta à prosa com esta novela, três anos depois da publicação de A Conspiração Cellamare, aqui apresentado. São 135 páginas em que o autor nos brinda com a sua deliciosa e irónica prosa narrativa, onde tergiversa sobre os mais diversos assuntos, não em jeito de crónica, mas como quem entretece uma vasta teia em que todos os assuntos se podem discutir e muitas vezes interligar, quase como uma conversa de café. Como vem a ser hábito na sua ficção, o autor entrecruza a memória com a crónica, enquanto parece desmontar a natureza da própria arte de narrar, num aliciante jogo com o leitor de desvelamento de técnicas ou estratégias autorais: «Nunca soube qual a melhor maneira de começar um romance, ou antes, talvez sempre tenha sabido a pior maneira de o começar. Diz-se que é preciso ambição, que temos de olhar para o fim e não para o princípio.» (p. 9)
É um pouco a medo que nos aventuramos nesta incursão sobre a novela de Nuno Júdice, pois entre as várias farpas lançadas pelo autor, não escapa a crítica aos críticos de literatura, que aliás figura logo em epígrafe no início do livro com uma passagem de Aquilino Ribeiro: «Imagino que a política literária, verdadeira, muito útil à literatura e particularmente aos seus cultores, está em os chamados críticos dos jornais diários falarem dos livros aparecidos dentro do período do ferro quente, em que a sezão não se completou ainda e a curiosidade do público está alvoroçada ou se imagina estar.»
O certo é que a prosa de Nuno Júdice é irreverente, como quando compara a inspiração ao zumbido de um mosquito importuno, e o diálogo irónico que estabelece com o leitor diverte e envolve não pela substância da história mas pela forma como se predispõe a contar: «Estou a ver, neste momento, as dúvidas que começam a surgir: ao fim de várias páginas, e para além de um significativo conjunto de insectos ainda não há um único personagem?» (p. 23)
Mas quem leu as anteriores obras de ficção sabe que raramente a personagem é outra que não a figura do narrador. Até porque a «personagem é um ser incómodo para o escritor. Precisa de um nome, de um corpo, de uma psicologia – a não ser que o livro seja daqueles que contraria essa exigência – e de um contexto.» (p. 23)
Não se quer com isto defender as virtudes do diarista sobre as do cronista ou do narrador, pois num diário o escritor «pode confessar as suas tristezas, os seus males, pode dizer como está feliz ou infeliz» mas «tudo parece construído a partir de situações e de cenários que temos dificuldade em reconhecer na realidade porque ninguém, alguma vez, usaria aforismos tão profundos no seu quotidiano» (p. 39).
E nem sempre os autores precisam do diário para falar de si, como é o caso de Gustave Flaubert que ao escrever a história de Emma Bovary escreve a sua prórpia história… O autor-narrador de O Café de Lenine reflecte assim sobre a arte do romance e de escrever, enquanto evoca o próprio conjunto da literatura, ou da biblioteca pessoal que aqui lhe diz respeito, invocando nomes maiores e personagens que ganham vida na contemporaneidade destas páginas, como Julian Barnes, Camões, Daniel Defoe, Sartre, Khalil Gibran, Teixeira Gomes, Antero, Stendhal, e coloca Guerra Junqueiro a discutir com Lenine num café sobre Rousseau.
Na literatura, afinal, não há convenções nem limites para as possibilidades da ficção, e no pensamento do leitor de hoje tudo pode conviver em harmonia, até quando Emma Bovary entra no quarto de hotel do narrador, ou quando Camille Claudel o convida para o seu atelier. Ver artigo
O mais recente livro de Hélia Correia, Um Bailarino na Batalha, publicado pela Relógio d’Água, em Setembro de 2018, é um poema em forma de narrativa, conforme à prosa poética a que a autora nos tem habituado, e com a respiração de um poema épico. O leitor sente-se perdido tacteando um horizonte de referência, quer no espaço quer no tempo, enquanto tenta situar a narrativa no género da ficção científica, ou da fábula, ou de um mito do princípio dos tempos, mas a história deste povo que atravessa o deserto em busca de uma Europa foge a qualquer classificação. Este grupo pode ser confundido com os migrantes que chegam em vagas provindos de África ou do Médio Oriente, tanto no tempo presente como outrora. Nessa travessia em busca de uma esperança as mulheres e os homens vão-se transformando. E num livro que nos fala de guerra mas também de amor e de sabedoria, o leitor é embalado pela coreografia desenhada nos movimentos das personagens e seduzido pelo ritmo da escrita de um poema que se vai desenrolando como uma serpente a rastrear as areias do tempo.
Hélia Correia é uma autora que aparece muito pouco mas foi possível conversar com ela em Sintra, no início deste ano. Ver artigo
A reler a obra O Jardim sem Limites, de Lídia Jorge (Dom Quixote), para ultimar um artigo.
Tal como a autora invoca recorrentemente, a propósito da personagem de Leonardo, o Static Man, a música de Einstein on the beach (1979), de Philip Glass, a par da alusão constante ao martelar das teclas na sua Remington, com a constante onomatopeica do clap clap clap, também eu me senti impelido, ainda mais por ser um amante da música deste compositor minimalista, a escrever exclusivamente ao som deste seu álbum. O que na verdade não é assim tão estranho, se eu confessar que Glass me acompanha e me serve de banda sonora há vários anos.
Quando me propus trabalhar a relação entre cinema e literatura, ocorreram-me diversas obras da minha escritora predilecta, como o óbvio A Costa dos Murmúrios, devido à adaptação ao grande ecrã por Teresa Cardoso, ou O Vento Assobiando nas Gruas, também extremamente visual, tendo já recebido várias propostas de uma realizadora e sido submetido a concursos, sem que depois se avance, aparentemente por falta de fundos . Contudo desde um primeiro momento que comecei a relembrar o impacto da leitura de O Jardim sem Limites sobre mim, talvez porque a recorrência de motivos na sua insistência quase obsessiva possa deixar realmente marcas no leitor, como um pulsar subliminar.
Esta é possivelmente uma das obras mais complexas da autora e que assinalou aliás a sua maturidade literária, ainda que não pareça ser a obra que mais impacto teve na crítica ou junto do público leitor. É um labirinto de múltiplas entradas, a que me interessa destacar a sua vertente metaficcional que se concretiza, também, na relação entre escrita e cinema, por diversas vias, como pretendo ilustrar no trabalho em curso… Ver artigo
Olhão no centro do mundo Ver artigo
A Nossa Alegria Chegou, o quarto romance de Alexandra Lucas Coelho e o seu décimo livro, publicado pela Companhia das Letras – que está a relançar as suas outras obras -, quebra diversas convenções e géneros, e instaura um território ficcional difícil de definir, sem a complexidade narrativa de deus-dará, onde sete narrativas se cruzam, em sete dias, num romance transgénero que liga passado e presente.
«Alguns mamíferos sabem que vão morrer. Estes três sabem que podem morrer hoje.» (p. 17)
Apesar das frases fatídicas com que o romance abre, a sensação que o leitor tem é de acordar com as três personagens num paraíso, como que um Génesis da Criação. Além do índice que indica antecipadamente que a acção decorre em doze capítulos, em contagem decrescente, do doze ao um, o que é reforçado pelo texto, a cada capítulo, conforme se reforça o tempo que resta aos jovens heróis: «Duas horas para o poente» (p. 159).
Ossi, Ira, Aurora, são os nomes dos três jovens que, à excepção do da jovem Aurora, não permitem perceber de imediato os seus sexos, se bem que ao longo da narrativa ficará rapidamente claro que o género de cada um é pouco relevante à sua natureza e identidade. Inclusive os três jovens parecem ser inicialmente descritos como se se tratassem de um só ser, uma entidade mitológica:
«Três corações, seis pulmões, biliões de nervos numa cama de rede, tórax com tórax, boca com nuca, côncavos, recôncavos, convexos. Jovens como a jovem flor do cacto de Alendabar, a praia onde acordam.
Ossi segura o flanco de Ira, que segura o flanco de Aurora. Ela fecha os olhos, flecte o joelho esquerdo. Ira ganha ângulo e entra nela, com Ossi às costas. Primeira vez que acordam juntos, primeiro sexo a três, primeira hora de luz.
Este dia esperou por eles para mudar tudo. Pacto.» (p. 17)
Este primeiro dia na vida do jovem Ossi, do jovem Ira, e da jovem Aurora, é afinal, como se anunciou logo de início, possivelmente o último das suas breves vidas de flores ainda a desabrochar. A musicalidade e a sensualidade da linguagem literária de Alexandra Lucas Coelho acompanham a sensualidade da relação entre os três protagonistas, cuja relação sexual a três é descrita logo nas primeiras páginas. Se em alguns momentos do livro, o leitor pode sentir-se balançado a pensar neste livro como uma narrativa juvenil é a carnalidade e o erotismo, a alegria dos sentidos, que fazem parte da relação entre cada um dos vértices deste triângulo amoroso que claramente puxam o leitor para uma narrativa que se quer real, factual, pese embora muito do que se leia pareça inventado, como aliás parece salientado logo na segunda página, quando Felix, um quarto jovem entra em cena, ao chegar à praia de Alendabar para espalhar as cinzas do pai.
«Felix nunca esteve nesta parte do mundo. Nunca ouvira sequer o nome Alendabar:
– Parece inventado – disse à mãe (…).
Olho na estrada, Ursula respondeu:
– Todos os nomes são inventados.» (p. 18)
Os nomes de personagens são, de facto, inventados ou então, como com Felix, Ursula, Atlas, o Rei, são claramente simbólicos. Nomes de espécies de plantas e de animais são também inventados pela autora. Como a própria linguagem que se evoca neste romance é inventada. Por isso, o leitor pode novamente ser levado a pensar, num primeiro momento, de que este é um mundo inventado (com direito a mapa no verso da contra-capa), num qualquer universo paralelo de ficção alternativa, ou de um antigo mundo, mas depois percebe-se que não se incorre aqui no domínio da ficção científica nem numa qualquer distopia num futuro improvável. Leia-se a seguinte passagem sobre as histórias: «cá estarão os três para as contar, como desde o começo foram contadas, criando o que não existe para entender o que existe. O humano é esse primata (…) que imagina histórias, ri com elas, chora com elas. Só ele sabe como estar vivo é o grande buraco negro.» (p. 172)
O reino de Alendabar é constituído por três aldeias, a do vulcão, a ribeirinha e a das terras altas. Referenciam-se deuses, pirâmides, escravos e um Rei do gado, mas gradualmente encontram-se elementos de ancoragem num mundo que é bem real e próximo, com lixo a poluir os mares, aviões, helicópteros, e computadores, onde não falta inclusivamente a mais recente tecnologia de ponta, como é o caso da inteligência artificial de Jade. Contudo, fica a sensação que Alendabar é um mundo à parte, de uma era mítica, e aquilo que chega de tecnologia vem do exterior, como o próprio lixo que começou a poluir o mar há um ano.
O número três, como já foi referido, ganha também uma simbologia própria, sendo que os próprios capítulos estão repartidos em vários episódios, separados pelo símbolo de três pequenas pirâmides que formam em si próprias uma pirâmide. A própria trindade formada por estes jovens de 17 anos é vista como uma unidade: «voltarão a ser três. Nenhum deles quer ser dois com alguém.» (p. 34) Três jovens heróis que já acarretam o peso do mundo de Alendabar às costas, todos eles unidos por uma perda cujo denominador comum é o Rei, a apostar no fim de um reinado, mesmo que isso implique a morte que não temem.
Como acontecia em deus-dará, romance anterior da autora, nesta narrativa subverte-se a dicotomia do género, para chegar a um lugar onde não há masculino nem feminino, como acontece com Ira: «macho à força primeiro, fêmea à força depois, nem uma nem outro, agora.» (p. 25)
«Os humanos são homens, mulheres, transgénero, intersexo.» (p. 92)
A difusão de contornos acontece igualmente com a questão da mestiçagem, aqui traduzida na cor da pele: «Aurora corre pela beira-mar. De onde lhe vem tanta claridade? Pai escuro, mãe escura. Ira também saiu mais claro do que a mãe, mas pai não conheceu. Ossi é o mais negro dos três, de longe.» (p. 34)
O romance de Alexandra Lucas Coelho tem sempre mais de real do que de fantasia, porque Alendabar está muito próximo dos males do mundo, pelo que há sempre ecos de referências quando se lê que um dique rebentou há uns anos e foi preciso pagar a muita gente mais para se calar, do que para reconstruir o dique.
«Um hominídeo desce das árvores, o cérebro aumenta, o polegar roda, ele afia uma pedra na outra: primeira faca. Eras depois, ser matador é profissão, gravadas em templos que humanos visitarão outras eras depois, inclinando-se para a tinta semi-sumida, mas onde ainda é possível ver a matança de um mamífero, começando pelo afiar da faca. Os humanos da era digital farão ah! e oh!, impressionados com aquela violência primitiva, enquanto a não muitos quilómetros dali uma faca corta a garganta de mamíferos em série, que já cheiraram o sangue dos anteriores, e sabem que vão morrer.
O que o primitivo fazia às claras, em pequeno número, o civilizado faz em larga escala, sem ver.» (p. 53)
Quando Ira viveu na cidade, pôde ainda assistir à tragédia da desproporção humana configurada nos Invisíveis: «milhões que não bebiam água potável, e ainda assim, ou também por isso, rezavam a Deus.» (p. 159) Ira testemunha ainda a auto-imolação de um homem em protesto contra a poluição, a destruição do planeta, os combustíveis fósseis» (p. 160)
Mas apesar do prenúncio de fim dos tempos que se vive no livro, vence sobretudo o sentimento de que Alendabar pode renascer, até na forma como a sua criação e os mitos são constantemente relembrados. Até no gesto simbólico de Felix e Ursula que se preparam para comer as cinzas de Atlas, pai e marido, misturando-as com a polpa de um fruto de Alendabar, mito carnívoro de que se pode renascer a partir da ingestão do passado. O leitor colhe ainda indícios de uma ligação entre estes três jovens amantes que executam uma revolução de fim dos tempos. Indícios esses, como outros, que nunca se resolvem pois mesmo que este seja um romance de leitura breve, quase de um fôlego, em contagem decrescente, há ainda muito mais que está para lá da realidade da história e que fica a cargo do leitor resolver, enquanto Alendabar será também transformado em mito: «aquele mundo imaginário que a partir de agora só existirá nas histórias» (p. 172) Ver artigo
João Reis nasceu em Vila Nova de Gaia em 1985. Licenciado em Filosofia, foi fundador e editor da Eucleia Editora, de 2010 a 2012. É tradutor literário, especialista em línguas nórdicas, tendo traduzido para português livros de Knut Hamsun, Halldór Laxness e Patrick White, entre muitos outros. Entre 2012 e 2015, trabalhou e residiu na Noruega, Suécia e Inglaterra, onde exerceu várias profissões, como trabalhar numa cozinha ou num armazém de vinhos. Não deixa de ser curioso o percurso deste jovem tradutor e autor, que aprendeu diversas línguas pela sua própria iniciativa, procurando professores particulares. Ver artigo
(agora quase recuperado da doença, e atropelado por trabalho, é altura de regressar à actividade e para isso nada melhor que ler um grande romance de uma grande dama da literatura portuguesa) Se Os Memoráveis encerrava um ciclo, iniciado com a obra de estreia sobre a Revolução de Abril, O Dia dos Prodígios, e fechado com esse trabalho de reconstrução ou resgate da memória da Revolução em Os Memoráveis, então este Estuário pode bem marcar uma nova fase na escrita da autora, como se pode ler na passagem: «Então, alguém teria de escrever esse livro, um livro que fosse, ao mesmo tempo, o último do passado e o primeiro do futuro.» (p. 15)
Se em O Vale da Paixão, o sentimento era de diáspora, e havia uma casa abandonada assombrada pelos passos desiguais dos seus poucos ocupantes, em Estuário, apesar do título dar a entender que há um desaguar ou um fluir, do rio para esse «mar oceano», o sentimento é de retorno, pois os vários filhos do pai Galeano regressam a casa.
Este é um novo marco, estou certo, na obra da autora e que nos prepara para o fluir de um novo ciclo. Ver artigo
Luísa Costa Gomes, nascida em Lisboa em 1954, licenciada em Filosofia, professora, directora da revista de contos FICÇÕES, gosta de dispersar a sua escrita pelas mais variadas áreas, do teatro ao conto, da crónica à tradução e legendagem, da mesma forma que gosta de alternar a escrita de um romance com outras tarefas. Sob a chancela da Dom Quixote, este é o mais recente romance da autora, quatro anos depois de Claúdio e Constantino (2014), e cerca de dois anos depois da reedição revista de A Vida de Ramon (1991, reeditado em 2016), curiosamente um texto de carácter hagiográfico, um romance biográfico sobre Ramon Llull, místico e missionário nascido em Maiorca, que viveu entre 1232 e 1316 e percorreu o mundo, do Mediterrâneo a África e à Ásia.
Florinhas de Soror Nada conta a vida de Teresa Maria, nascida no seio de uma família burguesa na segunda metade do século XX, que perante um pai distante e uma mãe incrédula vai afirmando a sua vontade em ser santa: «São Francisco jejuou quarenta dias, e ela não pode saltar o jantar?» (p. 33)
Ler esta narrativa é como ouvir uma reza, tal o ímpeto da linguagem que corre escorreita, límpida, musical, coloquial, por vezes com arcaísmos. Há ainda uma profusão de vocabulário religioso, como convém a uma hagiografia ou narrativa de vida de santo, mas quase sempre aplicado com humor. Igualmente marcante é a ironia da autora, por vezes com um sentido crítico mais cáustico, enquanto procura retratar a natureza contraditória desta criança que se quer santa (note-se o subtítulo A Vida de Uma Não-Santa), ao mesmo tempo que critica os religiosos, nomeadamente os padres, e os mitos e tabus.
«[Teresa Maria] Reconhece-se na indiferença com que as paroquianas recebem a indigna invectiva, um encolher de ombros perante as tais e quais birras do padre; elas bem sabem que não pecaram, não têm o hábito de pecar, não porque não queiram, ou não possam, mas na aldeia a oportunidade raramente se apresenta. Vivem ambas num dia-a-dia de caldos e cuidados, de quando em vez há um pensamento menos caridoso, um afundar-se no desespero, mas de passagem, ao fim da tarde, antes da solidão da noite, que dormem dum sono só.» (p. 125)
A ironia e o humor pautam a escrita da autora, se bem que neste livro haja uma intenção mais vincada que por vezes aproxima o livro da sátira. É emblemático o episódio em que Teresa arranca a orelha da estátua, como quem leva uma relíquia…
Teresa Maria mostra um excesso de autoconfiança que é aliás o que lhe permite desafiar mesmo a família, que aliás pouca importância lhe dá, quando toma a peito a sua vocação ou o ofício de ser santa. Tal como outros exemplos bem documentados da história das hagiografias, não se pense que a santidade de Teresa Maria nasce sem mácula. Pelo contrário, é depois do pecado, isto é, das brincadeiras sexuais que tem com Rafael, filho da criada de casa, que Teresa Maria mais acirradamente procura redimir-se.
A autora brinca com a linguagem da mesma forma que desmonta dogmas, enquanto narra a história de uma jovem que tão depressa tem brincadeiras exploratórias sexuais com Rafael (com nome de anjo) como depois corta o cabelo à tesourada ou põe cinzas na comida. A infância desta jovem é desfiada num rosário lento e espaçado, para depois no fim a narrativa ganhar novo fôlego e ímpeto, enquanto passa em revista a idade adulta e a terceira idade da protagonista, como se a consciência da vivência do tempo fosse mais lata quanto mais pequenos somos e menos vida acarretamos.
A autora parece ainda explanar o modo como na infância a vocação ou o sentido de missão é muito mais forte, mas conforme se dá a sua imersão na vida mundana e quotidiana, a «Idade Média», Teresa Maria é cada vez menos uma Teresa de Ávila e cada vez mais uma Maria, uma mulher sofredora, pois mesmo escapando ilesa aos martírios de santos, sobre os quais discorria com um certo contentamento sádico em criança, torna-se evidente como a vida humana é bastante difícil por si só, sem o estigma da diferença:
«Sofrer ou morrer, cumprindo o lema de Teresa em Ávila? Teresa que se aguentasse em Ávila, era forte e façanhuda, tinha a sua própria ambição de vir a figurar no calendário. Mas ela não. Não, assim não.» (p. 134)
Perto do final do romance, no último capítulo justamente intitulado «Vida», lê-se em cerca de quarenta páginas a súmula de toda a vida da protagonista, ficando o leitor a saber que se casou, teve filhos, e netos, e adoeceu, sem grande encantamento ou marcos assinaláveis que distingam a vida dessa mulher de outra qualquer. É também nesse momento que é mais fácil para o leitor simpatizar ou criar empatia com as vivências da protagonista. Mas também assistimos ao modo como em Teresa Maria, no decurso da sua vida, há um decréscimo da fé, em particular após o «Sermão à Ranhosa», ao ponto de renegar completamente a sua paixão de outrora por Deus, enquanto paradoxalmente aumenta o seu apetite pelo vinho.
A narrativa estende-se numa via sacra de 13 capítulos, se bem que chegando ao fim, é como se estivéssemos já mergulhados na leitura de um outro livro, tão forte é o cisma que se sente numa segunda parte da narrativa, com a mudança de paradigma por parte de Maria Teresa, quando aos 97 anos se prepara para morrer. Chegados ao final do livro, retoma-se o que lemos no início, num género de prólogo, onde se pressentia a desconexão de uma mente perdida, próxima da demência ou do esquecimento: «A morte já passou, falta morrer.» (p. 12) Ver artigo
A Devastação do Silêncio (Elsinore) é o mais recente romance de João Reis, publicado no dia 16 de Abril, com ilustrações de Lord Mantraste, que tão bem acentuam a crueza e a ironia deste livro.
Afirmava alguém que muitos escritores da nova geração não parecem ter memória do 25 de Abril (até porque não o viveram) nem reconhecer a importância desse momento de cisão, do mesmo modo que alguns destes autores optam por situar as suas narrativas num cenário universal e anódino, sem nada que o torne especificamente português.
Parece sincronia esta coincidência entre a publicação do livro e a efeméride dos cem anos decorridos desde a Batalha de La Lys, em que o Corpo Expedicionário Português foi dizimado. O autor recorda aqui a história de um tio-bisavô, soldado prisioneiro num campo de prisioneiros alemão, durante a Primeira Guerra, sem documentos que o confirmem como oficial, pois foram-lhe roubados, obrigado a partilhar as miseráveis condições de vida dos restantes soldados. O protagonista terá sido «engenheiro na vida civil» (p. 42), estudou em França, e nasceu com uma assimetria corporal do ombro para baixo, o que lhe valeu dispensa, sendo alistado como engenheiro militar, e depois promovido a oficial e a capitão. A sua história é uma vez mais narrada na primeira pessoa, dando a conhecer a Guerra não nos grandes acontecimentos (e mortandades) mas pelo tédio, pela rotina, pela fome e pela pouca higiene: «os piolhos saltavam-lhe do cabelo… estava cheio deles, atafulhado… os outros homens pouco se importavam, pois se não fossem os piolhos, eram os carrapatos, mais sangue, menos sangue… ali, eram essas as batalhas que nos restavam.» (p. 20)
Os prisioneiros morrem não da guerra, mas da doença: «a doença alastrava pelo campo, a tuberculose e a pneumonia matavam-nos aos poucos, no inverno anterior, os romenos haviam morrido às dezenas por conta da gripe (…), os romenos morreram às pazadas, era o que se dizia, que tinham perecido às centenas com disenteria, decerto propagavam-se também todos os géneros de pestilências labiais e linguais… pústulas… carne viva… lacerações…» (p. 22).
Um livro negro, como o primeiro, sarcástico, com laivos grotescos, condizentes à realidade descrita, sem dourados nem subtilezas, mas ainda assim com um fino humor e ironia: «a guerra traria o derradeiro estádio civilizacional dos respectivos povos (…), mais alguns anos e desenvolveríamos guelras e barbatanas» (p. 96).
A narrativa alterna entre um presente, em que o protagonista se encontra com alguém a uma mesa de café – e por isso sabemos que sobreviverá -, enquanto se discute uma gravação com a sua voz. A narrativa é assim um trabalho de rememoração, por vezes com carácter metaficcional. Note-se como o oficial invoca constantemente a necessidade do silêncio – que terá sido aliás a sua melhor arma e garante de sobrevivência durante a guerra: «é preferível manter a ambiguidade, a incerteza, trata-se de uma técnica que utilizei ao longo da vida com enorme proveito» (p. 95). Ao mesmo tempo que invoca a constante vontade em escrever sobre aquilo que testemunha, mas sem papel onde assentar o seu depoimento: «Queria escrever, anotar aquilo em que pensava, o que acontecera no campo nesse dia, decidi não escrever, faltava-me o papel e era inútil, uma perda de tempo, portanto pus-me então à escuta de pássaros» (p. 25).
Português prisioneiro num campo alemão, cria-se também a possibilidade de perspectivar o soldado luso a partir do outro, enquanto simultaneamente se traça uma reflexão acerca desse outro: «Os alemães dedicam-se à ponderação, levantam dúvidas curiosíssimas, é impossível alcançar um tal ponto de civilização nos nossos penhascos e barrancos…» (p. 90) Ver artigo
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