Cláudia Andrade é a mais recente aposta da Elsinore, editora que discretamente tem vindo a apostar em novas vozes literárias, como João Reis ou Raquel Gaspar Silva, mas sobretudo em autores que além de inéditos trazem uma nova voz ao panorama literário português, uma assinatura de estilo na sua prosa.
Depois do furor causado pelo seu livro de contos Quartos de Final e Outras Histórias, publicado em Setembro de 2019, considerado um dos melhores livros do ano pela crítica, finalista do Prémio Autores 2020 (Melhor Livro de Ficção Narrativa) da Sociedade Portuguesa de Autores, Cláudia Andrade presenteia-nos agora com o seu primeiro romance, Caronte à Espera, que reafirma a força da sua voz na literatura portuguesa.
Caronte à Espera é uma narrativa breve, que não ultrapassa as 130 páginas, mas capaz de deixar o leitor tão agarrado quanto desconcertado, possivelmente até capaz de voltar ao início do livro para o reler. A prosa é burilada, em frases que se distendem e emaranham, um pouco como as acções das próprias personagens que são tão complexas e enigmáticas quanto desamparadas. Há aliás uma passagem do livro que parece relevar isto mesmo: «Não vejo motivo para contar a vida com a pressa insensível com que somos obrigados a vivê-la» (p. 66).
Artur, o protagonista, reformou-se há um ano e vive agora entediado e desinteressado da vida, como se percebe logo no início do romance quando a mulher lhe pousa em cima o álbum de fotos do seu casamento: «Artur carecia tanto da força para suportar como para repelir a eterna repetição daquele ritual» (p. 7) Quando ao oitavo dia da sua reforma, e sétimo dia de treino desde que se determinou a ficar em boa forma física, Artur se vê conduzido numa ambulância por se lhe ter prendido uma virilha, fica dado o mote para a narrativa pícara da vida deste pobre coitado que na própria semana em que decide suicidar-se rapidamente vê gorados os seus recentes planos de morte ao descobrir numa foto do álbum de casamento, visto e revisto, um rosto que se distingue entre os familiares pela «não-familiaridade dos traços, o ar de eslava anemia, a aura de poeta no desemprego» (p. 10). É nesse instante-revelação que Artur é acometido por uma visão que lhe dá novo ímpeto, levando-o a dirigir as suas intenções numa nova direcção ao longo de toda a narrativa, da mesma forma que aí inicia esta narrativa que é afinal o conto dessa viagem, que implicará sair de casa e deixar a mulher. Viagem iniciática, rito de passagem, que inicia com essa demanda quixotesca de Artur – um pouco ao jeito dos Cavaleiros arturianos da Távola Redonda –, mas sempre sujeita aos revezes da ironia do destino, como quando finalmente se decide a apanhar o metro, decisão laboriosamente descrita que desemboca no risível, e depois se dá a revelação, ao sair para a plataforma, de que Artur afinal viajara no sentido errado.
A indefinição e indecisão de Artur estende-se inclusivamente às dúvidas que este nosso antiherói, e o leitor com ele, tem sobre a sua sexualidade. Mas a saga atribulada de Artur pode ser lida sobretudo como uma alegoria da condição humana, em que predominam símbolos quer literários quer míticos. Além do nome Artur, temos Beatriz, a sua mulher, cujo nome é quase indissociável daquela outra mulher-anjo que conduziu Dante ao Inferno e ao Paraíso, mas que para este Artur representa apenas o tédio e fastio da vida doméstica de casado. Existe depois um homem que parece tornar-se o amante de Artur, mas que pode ser tão somente o lado sombrio da sua consciência. Há duelos entre o bem e o mal, representados por anjos. E há as inevitáveis referências literárias, como é o caso de Artur ler Morte em Veneza (e tal como a personagem central do livro vive obcecado na busca de um homem que é também um ideal de beleza) enquanto o seu novo amigo, Ivan, lê Margarita e o Mestre (que narra a visita do Diabo à cidade de Moscovo). Conforme tudo isto se desenrola, Caronte é deixado numa espera, como o próprio título indica, enquanto Artur tão depressa se decide a morrer como depois esbraceja para se agarrar à vida, sendo, por isso, bom para “chamar a morte”, dada a sua lentidão e indefinição. Mas esse ajuste de contas com o passado, desencadeado por um belo desconhecido numa foto, torna-se afinal um ajuste de contas com a vida.
Cláudia Andrade nasceu em Lisboa. Autora dos livros de contos Elogio da Infertilidade, vencedor do Prémio Ferreira de Castro 2017 (sob o pseudónimo que lhe era habitual de Vitória F., entretanto abandonado), e Quartos de Final e Outras Histórias, finalista do Prémio Autores SPA 2020 – Melhor Livro de Ficção Narrativa. A autora considera-se sobretudo contista, embora esteja já a trabalhar num segundo romance, e antes de ser lida em Portugal foi inicialmente publicada no Brasil.
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