Nuno Júdice, já aqui contemplado a propósito de A Implosão (2013), e geralmente mais conhecido pela sua poesia que tem somado diversos prémios dentro e fora do país, volta a fazer uma incursão na ficção com A conspiração Cellamare, terreno onde prima pela originalidade da voz e pela proximidade com o leitor. Este livrinho, sendo que se utiliza esta palavra não pela sua curta dimensão mas pela dificuldade de catalogar ou rotular eficaz e inequivocamente este romance, é um verdadeiro deleite. Como a própria contra-capa indica, embora a obra «remeta para factos históricos, não é um romance histórico», e como o próprio narrador ressalva logo nas primeiras páginas este romance seria «uma mistura de géneros, entre o diário, as memórias e a ficção; mas já sabia, ao definir esta hibridez, que o resultado seria sempre classificado como não gozando de nenhum desses estatutos e, por isso, carecendo da solidez que se exige a um texto narrativo» (pág. 8). O narrador-personagem é claramente o próprio autor, como nas anteriores obras de ficção, mas aqui claramente assumido, quando refere as suas obras anteriores ou o programa das disciplinas que leccionou enquanto professor na Universidade Nova. O móbil da narrativa é o de reencontrar o passado ou, mais especificamente, o antepassado do autor: «Precisava, antes de fazer qualquer outra coisa, de definir o meu projecto. Sabia que tivera um parente remoto que andara metido em conspirações, e que talvez tivesse perdido um bom futuro nos braços de amantes parisienses quando pôs o jogo acima dos segredos, o que é o pior que se pode fazer num país estrangeiro, embora se goze da imunidade diplomática, que ele tinha, como Embaixador do rei de Espanha em França.» (pág. 7). O embaixador Antonio Giudici, príncipe de Cellamare, não inocentemente apelidado de «remoto parente», afigura-se portanto como uma elucubração do autor pelo que deixa de ser seguro acreditar completamente nas suas palavras quando refere que esse seu «ilustre parente» poderia ter alterado o curso da História se tivesse levado a cabo a sua missão, apesar de, segundo Nuno Júdice, ter havido realmente um seu antepassado genovês que se instalou primeiro em Lisboa e, mais tarde, no Algarve. E além de ser claramente dado o tom descontraído e irónico que impera no romance, esse projecto de recuar três séculos na História nunca é linear nem inteiramente credível: «mas andar à procura de documentos no meio de arquivos e velharias sobre um antepassado que não ficou nos livros de História, e cuja existência conhecia apenas por algumas vagas referências de linhagens familiares, não era a minha vocação. Lembrei-me, então, que poderia compensar esse meu desinteresse se preenchesse as lacunas com elementos de pura imaginação, como fizeram muitos cronistas do passado histórico antes que se descobrisse que não são os homens o motor das transformações do mundo mas o preço dos cereais, do petróleo, das acções, para não falar de factores mais recentes como a baixa do rating ou as metas do défice ou a subida dos juros da dívida.» (pág. 9). Revisita-se assim a História a partir do presente, ao jeito pós-modernista, como quem demonstra que as maquinações políticas e a violência sanguinária do passado afinal ainda estão bem vivas, pois este é também um testemunho de como o escritor é afinal testemunha, se não mesmo um agente da História, ou uma voz da verdade a reivindicar justiça e activismo social, à semelhança de conspiradores mais ou menos esquecidos ou mais ou menos desvelados: «O que é certo, em tudo isto, é que eu tivera à minha disposição um personagem com o qual, para além de uma afinidade de sangue, tinha também uma afinidade no plano social: ambos apreciávamos a sombra, que é o lugar em que, sem sermos vistos, podemos manejar os cordelinhos que fazem mover a História. Ele fizera-o através da conspiração; eu procurava fazê-lo na ficção. E o resultado seria o mesmo: a queda do Poder, das forças dominantes, dos que têm nas suas mãos o domínio da humanidade.» (pág. 116). O autor não teme assim denunciar claramente o actual estado político da nação e da Europa (e chamando as coisas pelos nomes), apesar de se referir a um acontecimento aparentemente remoto, o que só demonstra que o Homem continua a incorrer nos mesmos erros do passado: «Porém, quando o motor da política que tinha de rodar sem falhas gripou, o Embaixador ficou com a geringonça nas mãos sem saber o que lhe fazer, a não ser que tivesse sabido muito bem o que devia fazer, ou seja, deixar que se desconjuntasse sozinha, adivinhando ele que os estados germânicos e a Áustria, com o apoio da Inglaterra que, como sempre, se pôs fora do baralho europeu, nunca permitiriam essa união franco-espanhola» (pág. 108). Ver artigo