Publicado pela Elsinore, em 2015, este pequeno livro de um designer editorial explora de forma irreverente e original a relação do leitor com a literatura, das imagens que podemos formar a partir do pouco ou nada que o livro nos dá, ou de como por vezes o rosto de um actor na adaptação cinematográfica do livro pode ficar indelevelmente gravada na mente do leitor e dificilmente volta a ser suprimida, mesmo quando a actriz escolhida nada tem a ver com a personagem que encorpora.
Num livro que se constrói ele próprio a partir do jogo entre a palavra e a imagem, entre o texto e a mancha gráfica, o autor disserta em torno de diversos tópicos como: Imaginar a «imagem»; Representação; Olhos, Visão ocular & Meio ou Sinestesia.
Mendelsund alega que, tal como na música, as notas e os acordes definem as ideias, assim como o silêncio das pausas, na literatura as personagens são fisicamente vagas, com poucas características pertinentes, que ajudam mais a «aperfeiçoar o significado de uma personagem» do que a imaginar uma pessoa (p. 30). Os bons livros, como Anna Karenina, sugestionam mais do que desenham, pelo que quando um filme nos mostra uma determinada actriz (uma Isabelle Adjani ou uma Keira Knightley, por exemplo), essa é uma forma de roubo, não propriamente da propriedade intelectual do autor mas do direito de o leitor incitar a sua imaginação à cocriação de uma personagem. Porque quem ler o livro atentamente pode lembrar apenas o adjectivo «roliça», ou a sua bolsa vermelha… Como Homero usava epítetos para melhor nos relembrarmos das várias personagens…
Quando uma obra de ficção é adaptada ao grande ecrã, o filme suprime as nossas visões de leitores. E talvez por isso há sempre tantos leitores descontentes com as adaptações fílmicas. Eu, por exemplo, nunca perdoei a Morgana de As Brumas de Avalon representada por Julianna Margulies, embora a adore na série The Good Wife. Conto apenas dois filmes que para mim suplantaram os livros: são eles As Horas e O Senhor dos Anéis. E isto é algo muito pessoal e indefensável, claramente.
Numa era dominada pela imagem, quer na fotografia quer no filme, é possível que os músculos da nossa imaginação estejam a atrofiar, como já aconteceu com a nossa capacidade mnemónica (ou será que ainda há professores por aí que incentivam os alunos a memorizar poemas?). Contudo esta proliferação rápida da imagem não nos afasta totalmente do mundo da escrita e ler ainda pode ser um prazer único: «Os livros permitem-nos algumas liberdades: somos livres para sermos mentalmente activos quando lemos; participamos plenamente na relização (na imaginação) de uma narrativa.» (p. 192)
Alega ainda o autor que quando lemos alguma passagem, mesmo que seja de autores de outros tempos, como Dickens, preenchemos as descrições com o material da nossa própria memória. E eu dou-lhe razão, pois se ler sobre um farol ou uma praia, sei exactamente qual é o farol ou a praia que a minha memória recupera para preencher a ficção como um vislumbre involuntário do nosso passado (p. 300): «As palavras são eficazes não pelo que transportam com elas, mas pelo seu potencial latente de libertar a experiência aculumada do leitor. As palavras «contêm» significados, mas, mais importante, as palavras potenciam o significado…» (p. 302) Até quando lemos, por exemplo, a descrição de um cheiro (lembro-me desse fabuloso e insuperável livro que é O Perfume, cujo cheiro nauseabundo das primeiras páginas quase nos obriga a pousar o livro, sendo que no filme esse efeito é aproximado mediante a sobreposição de imagens…), não sentimos esse cheiro como tal a evolar-se das palavras na página mas sim mediante uma «transformação sinestésica», invocando não tanto uma experiência ou recordação real mas um instantâneo da nossa memória que terá deixado «uma ligeira imagem residual» (p. 342). Ver artigo
O Prémio Leya 2018 foi atribuído ao romance Torto Arado do autor brasileiro Itamar Vieira Júnior. O vencedor do Prémio foi anunciado em Outubro de 2017 e a cerimónia de entrega do prémio decorreu no passado domingo, dia 2 de Junho, na Feira do Livro de Lisboa.
Torto Arado é um livro de grande solidez narrativa e que bebe da herança dos clássicos, pois lembra o universo romanesco de João Guimarães Rosa em Grande Sertão Veredas ou mesmo o realismo mágico sul-americano. Aqui a acção não se centra, portanto, nas metrópoles e no caos urbano ao jeito de Rubem Fonseca, mas sim num universo rural, suspenso num tempo incerto, em que eventos místicos são comuns na vida do povo de Água Negra.
Bibiana e Belonísia são duas irmãs, que nascem na Fazenda Água Negra, no sertão da Bahia, onde os seus pais trabalham a terra e nunca de lá saíram. Depois de um trágico acidente, provocado pela curiosidade involuntária de uma das irmãs, ao remexer numa velha mala escondida debaixo da cama, as circunstâncias impõem que com o passar dos anos uma aliança se crie entre elas, nem sempre pacífica, em que uma será a voz da outra: «Deveria se aprimorar a sensibilidade que cercaria aquela convivência, a partir de então. Ter a capacidade de ler com mais atenção os olhos e os gestos da irmã. Seríamos as iguais. A que emprestaria a voz teria que percorrer com a visão os sinais do corpo da que emudeceu. A que emudeceu teria que ter a capacidade de transmitir com gestos largos e também vibrações mínimas as expressões que gostaria de comunicar.» (p. 24)
Torto Arado coloca ênfase nas figuras femininas, atentando como os seus corpos continuam a registar marcas do domínio violento exercido pela sociedade patriarcal. Em simultâneo, denuncia-se os abusos dos senhores das roças sobre aqueles que trabalham a terra e vivem do pouco que conseguem retirar para si: «Mas as batatas do nosso quintal não são deles», alguém dizia, «eles plantam arroz e cana. Levam batatas, levam feijão e abóbora. Até folhas pra chá levam. E se as batatas colhidas estiverem pequenas fazem a gente cavoucar a terra para levar as maiores» (p. 46). A isto acresce uma nota de magia graças aos poderes de Zeca Chapéu Grande, o pai das duas irmãs, um curador de jarê, que tem o dom de curar a saúde do espírito e do corpo dos aflitos, dos doentes, dos necessitados que chegam a sua casa e por lá ficam durante semanas.
Itamar Vieira Júnior nasceu em Salvador, Bahia, em 1979. É escritor, geógrafo e doutorado em Estudos Étnicos e Africanos (UFBA).
Nesta 10.ª edição, o Prémio LeYa contou com 348 originais provenientes de 13 países. Portugal e Brasil são aqueles de onde provém a maioria dos originais avaliados, tendo chegado obras de países tão diversos como Espanha, França, Inglaterra, Alemanha, Estados Unidos, China ou Islândia, entre muitos outros. Com o valor de 100 mil euros, o Prémio LeYa é o maior prémio literário para romances inéditos de todo o mundo de língua portuguesa.
O escritor estará presente no próximo dia 6 de Junho, quinta-feira, na Biblioteca Municipal Sophia de Mello Breyner Andresen, em Loulé, para a apresentação do livro pelas 18h. A apresentação da obra estará a cargo da Professora Doutora Mirian Tavares. Ver artigo
É uma mulher. É escritora. Vive em Londres. Divorciada. Mãe de dois filhos – com os quais parece só comunicar por telefone. Viaja até Atenas. Chama-se Faye – como iremos descobrir na pág. 191.
Assim se tece uma nova forma de narrar, em que a protagonista, vista a contraluz, especialmente a partir daquilo que os outros observam sobre ela, permanece muda em praticamente toda a narrativa. Apesar de se escrever sobre a autora que a sua obra narrativa entretece autobiografia e ficção, quase nada é revelado sobre a personagem, apesar de ser ela também a narradora, e o que se regista sobre si é apenas factual. Inclusive quando observa os que com ela convivem, amigos, conhecidos, estranhos de passagem, Faye não tece considerações, limitando-se a transcrever os seus diálogos, que mais se assemelham a monólogos. Talvez por isso uma das alunas do seu curso de escrita fique tão ofendida quando percebe que a aula consiste em ouvir os participantes falarem e nada se escreve…
Neste primeiro volume de uma trilogia, em que A Contraluz (2017) e Trânsito (2018) foram publciados pela Quetzal, e mais recentemente Kudos, pela Relógio d’Água, cria este novo dispositivo narrativo na sua obra, e inédito na ficção em geral, em que a protagonista e narradora se esbate até ser pouco mais do que um contorno a contraluz. Ver artigo
Em Londres, em 1945, quando a cidade se reergue da ruína da guerra, Nathaniel, um jovem de 14 anos, e Rachel, sua irmã mais velha, vêem-se abandonados pelos pais que alegam terem de deixar o país em trabalho e os deixam a cargo de estranhos misteriosos que podem muito bem ser criminosos, como o Traça ou o Flecheiro, e que aliás parecem viver como tal. Nathaniel irá inclusive ajudar um deles no tráfico de galgos vindos de França como forma de manter vivas e activas as clandestinas corridas de cães.
«Havia partes da cidade onde não se via ninguém, só algumas crianças que caminhavam sozinhas, indiferentes como pequenos fantasmas. Era a época dos fantasmas da guerra, dos prédios cinzentos sem iluminação, mesmo de noite, as janelas estilhaçadas ainda cobertas com tecido preto, onde antes houvera vidro. A cidade ainda se sentia ferida, duvidosa de si própria. Permitia que vivêssemos sem regras. Já tinha acontecido de tudo. Não tinha?» (p. 37)
E é assim que o jovem Nathaniel descobre a sua sexualidade, envolvendo-se com uma jovem cujo nome desconhece em casas abandonadas que aguardam novos donos.
É um romance que tem tanto de belo como de misterioso, enquanto Nathaniel, em adulto, começa a encaixar o enigma que foi a sua vida: «tenho agora uma idade que me permite falar disso, de como crescemos protegidos pelos braços de estranhos. E é como se se fizesse luz sobre uma fábula, acerca dos nossos pais, acerca de Rachel e de mim, e do Traça, e dos outros que se juntaram a nós depois. Suponho que haja tradições e tropos em histórias como esta.» (p. 18)
Mas apesar do engano e das separações inevitáveis que resultam da mentira em que os pais de Nathaniel o deixam, como um filho órfão, o que persiste neste romance é a luminescência do saudosismo e da poesia palpitante na vida: «Uma pessoa regressa a esse tempo passado armada com o presente, e, por mais escuro que esse mundo se encontrasse, não o deixa sem luz. Leva consigo o seu ego adulto. Não é para ser um reviver, mas sim um rever.» (p. 100) Até porque Nathaniel um dia seguirá as pisadas da mãe, o que lhe permite reconstituir o arquivo do passado.
«Se uma ferida é grande, não se pode transformá-la em algo que possa ser falado, quando muito escreve-se.» (p. 224)
O autor, nascido no Sri Lanka em 1943, é autor de sete romances, um livro de memórias, outro de não-ficção, vários de poesia, mas é sobretudo conhecido por O Paciente Inglês, vencedor do Golden Man Booker Prize em 2018, e adaptado ao cinema em 1996. As únicas outras obras publicadas entre nós são O Fantasma de Anil e Divisadero. Ver artigo
Um viajante terrestre, de seu nome Ai (o que soa como um grito de dor, mas também como Eu em inglês, «I») é enviado numa missão a Inverno, com o objectivo de convencer esse planeta a fazer parte do Ecuménio, uma civilização galáctica, assente na comunicação e na cooperação, uma liga de mundos cuja união é mais espiritual do que política. Inverno, uma terra inóspita, sem flores e sem aves, é um estranho mundo marginal, no limite do conhecido, perto do braço sul de Oríon, para lá do qual não existe qualquer outro mundo habitado, e com a particularidade de os seus habitantes serem andróginos: o seu corpo passa por ciclos hormonais em que eles serão ora homens ora mulheres, podendo ser pais de uma criança e mães de outras.
Como é próprio da ficção científica, nesta obra o que fala mais alto não é a capacidade de fantasiar da autora, e a sua genialidade efabulatória e narrativa, mas sim a forma como se parte da alteridade de um outro povo, num outro planeta, para reflectir sobre a própria humanidade e sobre a condição terrestre: «Os Gethenianos poderiam fazer os seus veículos andar mais depressa, mas não o fazem. Se lhes perguntam porquê, respondem «Para quê?», do mesmo modo que nós, Terrestres, quando nos perguntam por que razão temos veículos tão rápidos, respondemos «Porque não?» Gostos não se discutem. Os Terrestres tendem a sentir que precisam de avançar, de fazer progressos. Os nativos de Inverno, que vivem perpetuamente no Ano Um, sentem que o progresso é menos importante do que a presença.» (p. 60) Por isso, vivem como viviam há milénios, e «em trinta séculos, Inverno não alcançou o que a Terra, noutros tempos, alcançou em trinta décadas. Mas Inverno também não pagou o preço que a Terra veio a pagar.» (p. 100)
Os habitantes de Inverno aceitam este viajante apesar da dificuldade em acreditar que ele de facto chegou numa nave espacial e que o seu único propósito é aproximar Inverno de outros mundos, predispondo-os a comunicar com o resto da humanidade.
Apesar dos seus dons telepáticos, uma capacidade que os terrestres adquiriram com o passar dos milénios, será difícil a este viajante saber em quem pode confiar, até que se vê obrigado a fugir e encontra uma amizade incondicional na pessoa que menos espera.
A autora nasceu em Berkeley, Califórnia, em 1929. Publicou vinte e três romances de ficção científica e realista, mais de 100 contos e várias antologias de ensaios e de literatura infanto-juvenil. A Mão Esquerda das Trevas é das suas obras mais conhecidas, vencedora do Prémio Hugo e Prémio Nebula, a par dos seis volumes do ciclo Terramar (publicados pela Editorial Presença). Ver artigo
Em resposta a esta pergunta, Mary Midgley escreve um manifesto em que analisa e entretece algumas das questões mais prementes da actualidade, como o papel das humanidades na educação, o aquecimento global, e em particular as consequências da evolução científica e tecnológica.
Procurando responder aos materialistas que alegam que só a máquina e a ciência interessam à vida, a autora demonstra como até os escritores de ficção científica foram capazes de antever os perigos da supremacia constantemente atribuída à matéria, como no caso dos cientistas que apregoam as virtudes da inteligência artificial e da superioridade do computador ao homem mas são incapazes de perceber que passar da confiança em Deus para um mundo regido por máquinas é passar ao lado do poder da nossa mente e do nosso livre-arbítrio como a única forma de encontrar respostas e tomar decisões sensatas.
A primeira parte do livro, apesar da linguagem clara, é um pouco mais vaga, talvez porque a autora se aproxima do tema que lhe interessa numa circunvolução, e só a partir de metade do livro é que une as pontas das várias ideias que foi colocando como pistas. Ela própria parece reconhecer esse método de abordagem quando a certa altura afirma: «As pessoas perguntam-me por vezes qual é o tópico sobre o qual investigo e eu respondo que não faço a mínima ideia» (p. 23). Começando por alertar para os perigos da crescente especialização e compartimentação do saber, a autora procura depois defender como a filosofia, ciência que levanta mais perguntas do que respostas, é essencial à formação do ser humano, sendo a sua tarefa central «lidar com problemas que são radicalmente irresolutos» (p. 64): «A filosofia olha para as diferentes maneiras de pensar e tenta mapear a sua relação. É uma forma de dar sentido ao todo. (…) Assim, a razão pela qual alguns filósofos acabam por ser recordados não é por terem revelado novos factos, mas por terem sugerido novas formas de pensar que implicam novas formas de viver» (p. 73).
Recorrendo às palavras da escritora Iris Murdoch, Mary Midgley procura explanar como é insuficiente pensarmos que o mundo se cinge ao visível e palpável, quando afinal somos seres modelados social e culturalmente: «cada um de nós tem um mundo com um grande enquadramento que a nossa cultura nos fornece já pronto» (p. 69). E nessa compreensão do mundo em que emergimos e imergimos a literatura tem, a par da filosofia, um papel crucial para «figurar e compreender situações humanas» (p. 70), além de que a própria ciência se subsume em conclusões, tecidas com palavras, cuja influência na nossa saúde e sanidade mental é tão poderosa como a nossa dieta e capaz de enraizar hábitos profundos.
Este livro é uma análise lúcida de uma mente brilhante, com a capacidade de clarificar o complexo e de não se deixar desviar das questões verdadeiramente essenciais à vida, ao contrário dos materialistas que reivindicam a era da tecnologia e da máquina (um “escravo sem mente”) como o único e desejável futuro: «As confusões que agora afligem a vida humana não são sobretudo devidas a falta de inteligência, mas a causas humanas vulgares, como a ganância, o preconceito, a parvoíce, a avareza, a ignorância, a ira, a falta de bom senso, a falta de interesse, a falt de sentimento público, a falta de trabalho em equipa, a falta de experiência, a falta de consciência e talvez devido sobretudo à ausência de reflexão.» (p. 210)
Mary Midgley foi professora de Filosofia na Universidade de NewCastle entre 1962 e 1980. Escreveu profusamente sobre a natureza humana, a ética, a ciência, o ambiente, e faleceu o ano passado, no mesmo ano em que este livro foi publicado, agora traduzido e lançado entre nós pela Temas e Debates. E porque escreveu a autora este livro – ou porque se defende aqui a sua leitura essencial?
«O que faz com que escreva livros é em geral a exasperação contra todo o credo redutor, cienticista, mecanicista e fantasista que continua a distorcer constantemente a imagem do mundo da nossa era. Esse credo (…) continua a ostentar o lisonjeiro nome de mentalidade “moderna”.» (p. 211) Ver artigo
O livro Felicidade, à semelhança do Resiliência, aqui apresentado há semanas, integra a colecção Inteligência Emocional da Harvard Business Review (HBR), lançada pela Actual Editora (chancela da Almedina) e que consiste em «artigos inteligentes, essenciais sobre o lado humano da vida profissional».
Ao longo de 7 breves textos, adaptados a partir de artigos mais extensos publicados na HBR, desconstroem-se mitos, como o de que os sentimentos não são essenciais ao trabalho e ao bom desempenho profissional: «Afinal, o modo como nos sentimos está ligado àquilo que pensamos e à forma como pensamos. Por outras palavras, o pensamento influencia a emoção e a emoção influencia o pensamento.» (p. 21)
A própria ciência tem comprovado, e há cada vez mais publicações recentes sobre estes assuntos, como existem claras ligações entre sentimentos, pensamentos e acções. E para nos sentirmos bem, é essencial não gostar, simplesmente, do que se faz, mas ter uma boa relação com superiores e com colegas, e uma visão clara e abrangente do trabalho que é feito. A felicidade pode afinal ser um conceito inefável, evasivo, por vezes enganoso, na forma como o aplicam, mas está inextrincavelmente ligada àquilo que define o ser humano que é, acima de tudo, um ser social. E é uma felicidade construída, não simplesmente um estado de alma que se atinge com meditação ou práticas como o mindfullness, incorporadas na rotina de muitas empresas, mas com a realização de pequenos actos, simples gestos que trazem alegria e cor aos dias, pois tal como a perda de pesa, a felicidade é um estado cumulativo, atingido, especialmente, com o que fazemos no nosso tempo livre.
«Uma pessoa que tem uma dúzia de acontecimentos moderadamente agradáveis todos os dias será, em princípio, mais feliz do que alguém a quem aconteça algo de verdadeiramente sensacional. Por isso, use sapatos confortáveis, dê um grande beijo à sua mulher, roube uma batata frita. Parecem pequenas coisas, e são. Mas as pequenas coisas são importantes.» (p. 39)
O último artigo, convenientemente guardado para o fim, desmonta ainda afinal o conceito de felicidade pois medi-la é «como medir a temperatura da alma ou determinar a cor exata do amor» (p. 119)
A felicidade pode estimular a produtividade e as empresas investem cada vez mais em acções de formação sobre a felicidade, sendo quase certo que os funcionários felizes não se despedem e procuram satisfazer os clientes, mas as pesquisas realizadas nem sempre permitem conclusões tão definitivas. Concentrarmo-nos na felicidade pode aliás fazer-nos correr atrás de uma ilusão e fazer-nos sentir menos felizes, pode tornar-se um dever, pode tornar-se uma mentira. Ver artigo
Nuno Júdice, nascido na Mexilhoeira Grande, Algarve, em 1949, volta à prosa com esta novela, três anos depois da publicação de A Conspiração Cellamare, aqui apresentado. São 135 páginas em que o autor nos brinda com a sua deliciosa e irónica prosa narrativa, onde tergiversa sobre os mais diversos assuntos, não em jeito de crónica, mas como quem entretece uma vasta teia em que todos os assuntos se podem discutir e muitas vezes interligar, quase como uma conversa de café. Como vem a ser hábito na sua ficção, o autor entrecruza a memória com a crónica, enquanto parece desmontar a natureza da própria arte de narrar, num aliciante jogo com o leitor de desvelamento de técnicas ou estratégias autorais: «Nunca soube qual a melhor maneira de começar um romance, ou antes, talvez sempre tenha sabido a pior maneira de o começar. Diz-se que é preciso ambição, que temos de olhar para o fim e não para o princípio.» (p. 9)
É um pouco a medo que nos aventuramos nesta incursão sobre a novela de Nuno Júdice, pois entre as várias farpas lançadas pelo autor, não escapa a crítica aos críticos de literatura, que aliás figura logo em epígrafe no início do livro com uma passagem de Aquilino Ribeiro: «Imagino que a política literária, verdadeira, muito útil à literatura e particularmente aos seus cultores, está em os chamados críticos dos jornais diários falarem dos livros aparecidos dentro do período do ferro quente, em que a sezão não se completou ainda e a curiosidade do público está alvoroçada ou se imagina estar.»
O certo é que a prosa de Nuno Júdice é irreverente, como quando compara a inspiração ao zumbido de um mosquito importuno, e o diálogo irónico que estabelece com o leitor diverte e envolve não pela substância da história mas pela forma como se predispõe a contar: «Estou a ver, neste momento, as dúvidas que começam a surgir: ao fim de várias páginas, e para além de um significativo conjunto de insectos ainda não há um único personagem?» (p. 23)
Mas quem leu as anteriores obras de ficção sabe que raramente a personagem é outra que não a figura do narrador. Até porque a «personagem é um ser incómodo para o escritor. Precisa de um nome, de um corpo, de uma psicologia – a não ser que o livro seja daqueles que contraria essa exigência – e de um contexto.» (p. 23)
Não se quer com isto defender as virtudes do diarista sobre as do cronista ou do narrador, pois num diário o escritor «pode confessar as suas tristezas, os seus males, pode dizer como está feliz ou infeliz» mas «tudo parece construído a partir de situações e de cenários que temos dificuldade em reconhecer na realidade porque ninguém, alguma vez, usaria aforismos tão profundos no seu quotidiano» (p. 39).
E nem sempre os autores precisam do diário para falar de si, como é o caso de Gustave Flaubert que ao escrever a história de Emma Bovary escreve a sua prórpia história… O autor-narrador de O Café de Lenine reflecte assim sobre a arte do romance e de escrever, enquanto evoca o próprio conjunto da literatura, ou da biblioteca pessoal que aqui lhe diz respeito, invocando nomes maiores e personagens que ganham vida na contemporaneidade destas páginas, como Julian Barnes, Camões, Daniel Defoe, Sartre, Khalil Gibran, Teixeira Gomes, Antero, Stendhal, e coloca Guerra Junqueiro a discutir com Lenine num café sobre Rousseau.
Na literatura, afinal, não há convenções nem limites para as possibilidades da ficção, e no pensamento do leitor de hoje tudo pode conviver em harmonia, até quando Emma Bovary entra no quarto de hotel do narrador, ou quando Camille Claudel o convida para o seu atelier. Ver artigo
A crónica é, como se sabe, um texto apresentado na primeira pessoa, apresentando a visão subjectiva do cronista sobre os mais variados eventos do quotidiano. De natureza interpretativa e reflexiva, são textos que surgem nos jornais ou revistas em que o cronista filtra o mundo em seu redor e as mais variadas situações. Mas num tempo de crise para a comunicação, em que o clickbait supera a veracidade das notícias, qual é o espaço que sobra para a crónica? E qual é o tempo que o leitor ainda se digna dispender, para ler a opinião de alguém que se acredita ser melhor informado, quando hoje a informação é cada vez mais facilmente acessível e todos têm direito à sua opinião, plasmando-a nos mais diversos meios, de redes sociais a blogues?
Esta antologia de crónicas jornalísticas, publicada em Abril de 2018 pela Tinta-da-china, reúne mais de 60 textos de Pedro Mexia, publicados, na sua maioria, no Expresso entre 2011 e 2017, outros tantos no Público, e algumas crónicas publicadas ainda noutras publicações, algumas delas inclusive já reunidas anteriormente em volume – Nada de Melancolia, também com a chacela da Tinta-da-china, em 2008.
Lê-se na contracapa, e a negar de alguma forma o título, que «Lá Fora não é um livro sobre viagens demoradas a lugares exóticos, passeios venturosos a altas montanhas ou selvas escuras, ou grandes temporadas em metrópoles sofisticadas». Pedro Mexia descreve «lugares por onde passou e que, de alguma forma, não esqueceu», como Maputo («O país dos outros») ou Londres («Londres chama»), cidade com a qual mais se identifica e que o reconcilia «com o facto de estar vivo». Redescobre Lisboa («Lisboa, cidade aberta») e a modernização do seu plano urbanístico por Ressano Garcia, entre 1879 e 1903, ou vê Portugal na época da ditadura pelos olhos de quem o visitou de fora («Cartas portuguesas»). Mas Pedro Mexia escreve sobretudo sobre lugares mentais e por isso escreve também sobre os «não-lugares» («Terminal de aeroporto»), pois estas crónicas não são somente viagens, mas sobretudo o olhar do cronista sobre o mundo lá fora e com o devido distanciamento, capaz de permitir uma autoironia. Aliás, Mexia opta, em diversos momentos, por deixar as suas interrogações, sem pretender arrogar-se como detentor de uma verdade imposta a outrem.
Numa prosa clara, com rasgos poéticos, em que as vozes da literatura ressoam, com citações e revisitações a autores (mas também ao cinema ou à música), este livro de crónicas é intemporal e merece o Grande Prémio de Crónica e Dispersos Literários da Associação Portuguesa de Escritores (APE), anunciado no passado dia 9 de Maio. O prémio de 12 mil euros será recebido pelo autor no próximo dia 30 de Maio em Loulé, uma vez que a Câmara Municipal é parceira deste galardão. Ver artigo
Sensivelmente um ano depois de Um Gentleman em Moscovo, a Dom Quixote publica As Regras da Cortesia e, novamente, numa belíssima edição de capa dura, com excelente tradução de Tânia Ganho, que aliás enriquece a leitura com contexto sócio-cultural relativo ao cenário e indica cirurgicamente as alusões e jogos literários que pontuam a narrativa. Apesar de publicada em segundo lugar, esta foi a obra de estreia de Amor Towles. O autor nasceu em Boston, formou-se em Yale e este seu primeiro romance, originalmente publicado em 2011, foi considerado um dos melhores livros do ano pelo Wall Street Journal, traduzido para mais de 15 línguas e teve os direitos de adaptação ao cinema comprados – pode-se aliás imaginar uma adaptação ao estilo do The Great Gatsby de Baz Luhrmann. O escritor trabalhou durante 20 anos como investidor e dedica-se agora exclusivamente à escrita.
A acção inicia na última noite do ano de 1937, quando Katey, filha de emigrantes russos, e Eve, a sua colega e quarto e melhor amiga, conhecem Tinker, um jovem banqueiro e um verdadeiro cavalheiro, envolto no seu sobretudo de caxemira, num clube de jazz com o esperançoso nome de The Hotspot. Contado a partir da sua perspectiva numa sábia e bem-sucedida meia-idade, cerca de 30 anos depois, Katey vai relembrar como se apaixonou, como viveu e sofreu, como iniciou a sua escalada social. E, apesar de ser sempre um tema delicado e uma declaração passível de polémica, a voz narrativa na primeira pessoa, filtrada pela perspectiva da protagonista, é de tal modo bem conseguida que sentimos que o autor do romance é, na verdade, uma mulher.
Neste livro ressoa ainda a paixão do autor pela Rússia (cenário do seu segundo romance) e pelos autores russos, além de haver um constante jogo intertextual com diversas obras, poemas e autores. O próprio título da obra é adaptado a partir de um guia de boas maneiras de George Washington e quase todos os títulos de capítulos contêm referências literárias, ou não fosse a jovem heroína uma leitora inveterada. Note-se aliás esta passagem: «Coberta de neve em pó, Washington Square não podia estar mais bonita. (…) No número 25, uma mão abriu uma cortina no primeiro andar e o fantasma de Edith Wharton contemplou a praça com tímida inveja. Doce, perspicaz, assexuada, observou-nos a passar, perguntando-se quando é que o amor que ela imaginara com tanta mestria ganharia coragem para lhe bater à porta.» (p. 36)
É curiosa a tímida dicotomia que se tece entre a vida na alta sociedade e a maravilha de nos retirarmos do mundo e viver em simplicidade como no Walden de Henry David Thoreau, mas é inegável que a verdadeira protagonista deste romance é a sedutora cidade de Nova Iorque, quando emerge vitoriosa do fim da Depressão, apesar da guerra que se avizinha na Europa.
Através de Tinker, Katey conhece toda uma nova sociedade e descobre o conforto do luxo, mas sem nunca se deslumbrar: «quando uma pessoa perde a capacidade de tirar prazer do mundano – do cigarro fumado na soleira de casa ou da bolacha de gengibre comida no banho e imersão –, provavelmente colocou-se numa situação de perigo desnecessário.» Podemos até não concordar com estes pequenos prazeres, e optar por outros, mas o certo é que «temos de estar prontos para lutar pelos prazeres simples da vida e para os defender da elegância, da erudição e de toda a espécie de tentações cheias de glamour.» (p. 159) Para nós leitores, este será certamente um desses prazeres da vida. Ver artigo
Pesquisar:
Subscrição
Artigos recentes
Categorias
- Álbum fotográfico
- Álbum ilustrado
- Banda Desenhada
- Biografia
- Ciência
- Cinema
- Contos
- Crítica
- Desenvolvimento Pessoal
- Ensaio
- Espiritualidade
- Fantasia
- História
- Leitura
- Literatura de Viagens
- Literatura Estrangeira
- Literatura Infantil
- Literatura Juvenil
- Literatura Lusófona
- Literatura Portuguesa
- Música
- Não ficção
- Nobel
- Policial
- Pulitzer
- Queer
- Revista
- Romance histórico
- Sem categoria
- Séries
- Thriller
Arquivo
- Novembro 2024
- Outubro 2024
- Setembro 2024
- Agosto 2024
- Julho 2024
- Junho 2024
- Maio 2024
- Abril 2024
- Março 2024
- Fevereiro 2024
- Janeiro 2024
- Dezembro 2023
- Novembro 2023
- Outubro 2023
- Setembro 2023
- Agosto 2023
- Julho 2023
- Junho 2023
- Maio 2023
- Abril 2023
- Março 2023
- Fevereiro 2023
- Janeiro 2023
- Dezembro 2022
- Novembro 2022
- Outubro 2022
- Setembro 2022
- Agosto 2022
- Julho 2022
- Junho 2022
- Maio 2022
- Abril 2022
- Março 2022
- Fevereiro 2022
- Janeiro 2022
- Dezembro 2021
- Novembro 2021
- Outubro 2021
- Setembro 2021
- Agosto 2021
- Julho 2021
- Junho 2021
- Maio 2021
- Abril 2021
- Março 2021
- Fevereiro 2021
- Janeiro 2021
- Dezembro 2020
- Novembro 2020
- Outubro 2020
- Setembro 2020
- Agosto 2020
- Julho 2020
- Junho 2020
- Maio 2020
- Abril 2020
- Março 2020
- Fevereiro 2020
- Janeiro 2020
- Dezembro 2019
- Novembro 2019
- Outubro 2019
- Setembro 2019
- Agosto 2019
- Julho 2019
- Junho 2019
- Maio 2019
- Abril 2019
- Março 2019
- Fevereiro 2019
- Janeiro 2019
- Dezembro 2018
- Novembro 2018
- Outubro 2018
- Setembro 2018
- Agosto 2018
- Julho 2018
- Junho 2018
- Maio 2018
- Abril 2018
- Março 2018
- Fevereiro 2018
- Janeiro 2018
- Dezembro 2017
- Novembro 2017
- Outubro 2017
- Setembro 2017
- Agosto 2017
- Julho 2017
- Junho 2017
- Maio 2017
- Abril 2017
- Março 2017
- Fevereiro 2017
- Janeiro 2017
- Dezembro 2016
- Novembro 2016
- Outubro 2016