John Williams, tendo vivido entre 1922 e 1994, foi professor de língua inglesa e de escrita criativa durante 30 anos na Universidade de Denver. Escreveu 4 romances, dois deles já publicados pela Dom Quixote e apresentados aqui (Stoner e Butcher’s Crossing), e Nothing But the Night (1948), o seu romance de estreia, ainda por traduzir. Augustus foi o seu último romance (sem contar com o seu quinto trabalho que ficou inacabado) e o único que lhe trouxe notoriedade em vida: vencedor do National Book Award; considerado a sua obra-prima; possivelmente o melhor romance histórico escrito por um autor norte-americano. Enquanto que em Stoner e Butcher’s Crossing, John Williams escreve sobre realidades mais próximas – não será por acaso que ambos os protagonistas destes romances têm William no nome –, o autor muda aqui completamente a trajectória da sua temática e debruça-se sobre o primeiro imperador de Roma e que deu origem a uma era augusta e à Pax Romana.
Ano de 44 a.C., nos idos de Março. Uma tarde de sol brilhante, quente. Um emissário de Roma traz a notícia do assassinato de Júlio César. Este dia fatídico, em que Octávio, o sobrinho frágil e enfermiço de César, abandona em definitivo a sua juventude e inocência aos 19 anos, é narrado no diário de um seu amigo.
A história do império de Augustus é contada em fragmentos, de modo polifónico, como quem junta dezenas de tesselas, as pequenas peças cúbicas que formam um mosaico. Entretecendo cartas, biografias, memórias, apontamentos de diários, ou até éditos de personagens como Marco António, Cleópatra, Cícero ou Estrabão, e onde se evocam ainda outros como Virgílio, Ovídio e Horácio, o herdeiro contestado de César é sempre perspectivado pelos outros, os seus poucos amigos e os muitos inimigos: «Peço-vos que fiqueis ciente de que compreendo a dificuldade da vossa tarefa no governo desta extraordinária nação que amo e odeio, e deste extraordinário Império que me horroriza e me enche de orgulho. Sei, melhor do que a maioria, até que ponto trocastes a vossa felicidade pela sobrevivência do nosso país; e sei do desprezo que tendes pelo poder que vos foi imposto – só alguém com desprezo pelo poder poderia tê-lo usado tão bem.» (p. 242)
O romance dá conta da ascensão de Octávio a Primeiro Homem de Roma e da sua transformação em Augustus, o mais formidável imperador de Roma, com a sua fria eficácia e que tentou mesmo legislar contra as paixões do coração humano por serem perturbadoras da ordem (p. 243). Com a mesma surpresa crescente com que os seus inimigos o conheceram (e dão por eles a admirá-lo e a respeitá-lo), o leitor assiste à criação do mito, conforme constata igualmente que até um imperador pode ser um mero peão face aos caprichos do devir histórico. E ao mito segue-se, a caminho do fim, o retirar da máscara, conforme o imperador se torna novamente homem, quando nas últimas (quase) 40 páginas ganha a sua própria voz.
Um dos aspectos mais curiosos do romance, onde predominarão gradualmente excertos do seu diário, escrito em 4 d.C., consiste no destaque conferido a Júlia, filha do Imperador Octávio César que, ao contrário do pai, parece inebriar-se com o poder que Roma lhe atribui, quando aos 27 anos, grávida do quinto filho, duas vezes viúva, se auto-intitula de deusa e segunda mulher de Roma. Ver artigo
A Civilização do Peixe-Vermelho – Como peixes vermelhos presos aos ecrãs dos nossos smartphones, de Bruno Patino, publicado pela Gradiva, é um breve tratado sobre o mercado da atenção que se lê no equivalente a duas horas de deriva pelas redes sociais. Da autoria do director do canal Arte France e da escola de jornalismo do Instituto de Estudos Políticos de Paris, condensa em 117 páginas alguns dados assustadores que nos ajudam a tomar consciência da nossa relação com os smartphones. Os peixes que em criança colocávamos num aquário têm uma curta memória, cuja atenção dura 8 segundos. Depois disso, o seu «universo mental reinicia-se» e a repetição transforma-se em novidade. No caso do homem, o attention span resume-se a 9 segundos.
«Vivemos no mundo dos drogados da conexão estroboscópica.» (p. 14)
Estima-se que 30 minutos é o tempo máximo adequado de exposição às redes sociais, e à Internet em geral, sem que a nossa saúde mental fique comprometida.
«O nosso inferno diário somos nós mesmos. Sem descanso possível, repletos de dopamina, mantemo-nos constantemente despertos.» (p. 30)
A Universidade de Oxford tentou fazer um cálculo entre o tempo livre disponível para cada indíviduo e o acesso à informação, cultura e entretenimento, mas a oferta é hoje infinita. E contudo, com um sentimento crescente de culpa, conforme sentimos o tempo a esvair-se, numa era em que temos tudo para ganhar mais tempo de vida e mais tempo na vida, o nosso cérebro funciona num círculo vicioso, enquanto passamos em revista todas as notificações do nosso telefone, quase sempre assim que acordamos: «De dois em dois minutos, 30 vezes por hora de vigília, uma vez a cada três horas de sono, 542 vezes por dia, 198 mil vezes por ano» (p. 18). Nos Estados Unidos, um jovem passa 5 horas e meia ligado a algum dispositivo digital e mais de 8 horas frente a um ecrã de computador; 22 % dos jovens (entre os 22 e os 30 anos) não têm qualquer actividade académica ou profissional.
«A vertigem provocada pela nossa separação das ferramentas conectadas e respectivas aplicações é um objecto de laboratório, tal como a necessidade compulsiva de responder às solicitações digitais que nos invadem os ecrãs.» (p. 24)
Vivemos numa era de reflexos e condicionamentos, em que o nosso tempo e os nossos dados são espiados, controlados e manipulados pelos GAFAM (os gigantes da Web: Google, Apple, Facebook, Amazon, Microsoft). Se renunciarmos durante algum tempo ao Facebook, este automaticamente lança um alerta de que há já algum tempo que não publicamos nada e os nossos amigos querem saber de nós… Se bem que, pelo menos no caso do iphone, já somos notificados todos os domingos, mediante um relatório semanal, da média de horas que dispendemos nas redes sociais durante essa semana. Se assistimos a uma série na Netflix, nem sequer precisamos de decidir se veremos um episódio mais, pois esta plataforma automaticamente passa ao capítulo seguinte, deixando-nos num transe de dependência e de «frustração associada à visualização incompleta» (p. 29). Quando uma criança é confrontada desde tenra idade com estímulos visuais e auditivos (como quando lhes colocamos um ecrã em frente para que ela se silencie a ver os desenhos animados enquanto come), instalar-se-á depois uma «fadiga decisória» e «abandona a luta contra o prazer imediato originada pela reacção a um estímulo eléctrico» (p. 27), por isso é perfeitamente natural que nos anos vindouros não pegue num livro…
«Dependência dos ecrãs, extremismo do debate público, polarização do espaço público, reflexos que se sobrepõem à reflexão, a ágora transformada em arena: assim é a nossa época. É o melhor e o pior dos tempos.» (p. 38) Ver artigo
Ao entrarmos nas primeiras páginas de Milkman, de Anna Burns, publicado pela Porto Editora, deparamo-nos com alguma dificuldade, um certo estranhamento face a uma escrita torrentosa, feita de frases distendidas, num registo muito próximo da oralidade, onde as palavras se repetem em eco, num mundo onde nada é mencionado pelo nome, nem mesmo a protagonista e as irmãs e cunhados.
A irmã do meio tem dezoito anos e vive numa cidade, num país, onde a violência explodia à mínima coisa, onde apesar de haver tiroteios, bombas, protestos, confrontos, esta jovem gosta de caminhar enquanto lê, e sempre um romance do século XIX.
E, subitamente, somos agarrados por uma frase como esta, que pode definir toda a narrativa, e é igualmente tão próxima da nossa própria realidade (considerando alguns dos mais recentes eventos no país):
«Ele acabava de trazer à conversa a questão da bandeira, a questão das bandeiras e dos símbolos, que era instintiva e emocional porque as bandeiras se inventaram para serem instintivas e emocionais (amiúde patológica e narcisicamente emocionais), ele estava a referir-se à bandeira do país «do outro lado do canal», que era também a bandeira da comunidade «da ponta de lá da estrada». E essa não era uma bandeira que a nossa comunidade acolhesse de braços abertos. Não era uma bandeira que a nossa comunidade acolhesse de todo.» (p. 33)
A voz deste romance é tão original que nos custa a entrar mas, conforme nos apercebemos de que a narradora estabelece um longo solilóquio com o leitor, onde as mais variadas questões da actualidade são tratadas com ironia e ambiguidade, rapidamente nos leva na sua corrente, na sua prosa-palco de uma dialéctica, de natureza alegórica, de um país sem nome que existe por oposição ao que está “do outro lado” (e pode remeter para o conflito entre as duas Irlandas), numa comunidade fechada, onde o rumor e o boato impera, uma sociedade patriarcal onde o cunhado três é aliás conhecido por não regular bem, com aquela sua «atípica estima em que tinha tudo quanto se reportasse ao feminino» (p. 18).
Anna Burns nasceu em Belfast em 1962, vive em Inglaterra e este seu romance foi vencedor do Man Booker Prize 2018, National Book Critics Circle e Orwell para ficção política. Ver artigo
O movimento new age e a literatura de auto-ajuda foram substituídos nas duas últimas décadas por uma nova indústria da felicidade e do desenvolvimento pessoal, avaliada em mais de 4 biliões de dólares, que abrange uma ampla gama de serviços e produtos, como a autoajuda, o coaching, o mindfulness, cursos de inteligência emocional, aconselhamento psicológico positivo, medicação que potencia boa disposição, aplicações para o telemóvel, livros de auto-ajuda. A felicidade é hoje um indicador de progresso nacional, social e político. Devo confessar que considerei urgente a leitura de A Ditadura da Felicidade, de Edgar Cabanas e Eva Illouz, publicado pela Temas E Debates, não por ser um descrente da literatura que vende a felicidade como um produto (que não é novo, mas que se vende agora como legítimo – cientificamente comprovado – e premente), mas justamente por ser um curioso.
A dimensão e o impacto da investigação académica sobre a felicidade e temas afins, como emoções positivas ou bem-estar, decuplicou, envolvendo a psicologia mas também áreas como a saúde, a economia, a educação, a gestão. Conceitos que antes eram vistos com desconfiança ou como charlatanice, e que continuam a padecer da «falta de um núcleo de conhecimento rigoroso e comum», são agora relançados num novo embrulho compósito, numa «mistura mal corroborada e eclética de fontes heterogéneas», de psicanálise, religião, behaviourismo, medicina, neurociência, ocultimos, etc. (p. 43).
A felicidade é hoje um indicador de progresso nacional, social e político. E é vendida como «o mais valoroso investimento pessoal a fazer» (p. 183), pois pessoas mais felizes significa que são mais saudáveis, mais produtivos, melhores cidadãos. As sociedades modernas proporcionam aos seus cidadãos maior auto-consciência, mais liberdade, mais oportunidades de escolha e de seguirem os seus sonhos. Mas todos os anos há milhões de pessoas que recorrem a terapias, serviços e produtos da psicologia positiva, pois, como este livro demonstra, a psicologia positiva criou um círculo vicioso: «Há sempre uma dieta a seguir, um vício a largar, um hábito mais saudável a adquirir, (…) uma falha a corrigir» (p. 216). E as panaceias que se vendem não resolvem os problemas, antes os agravam, pois geram uma frustração constante; culpabilizam o eu por não ser feliz, uma vez que todas as ferramentas estão em si próprio; criam uma necessidade de autovigilância permanente para não termos pensamentos negativos que nos tornam infelizes; dão novas vestes ao individualismo neoliberal, gerando maior egotismo e auto-absorção (basta fazer um passeio pelas redes sociais em que a maior parte dos jovens influenciadores parecem extáticos de felicidade). Mais flagrante ainda é a análise de como a psicologia positiva se tornou uma forma de controlo social, pois desvia o foco das condições em que o cidadão vive, especialmente no contexto empresarial que faz livre uso destes serviços, com a pretensão de facilitar a adaptação eficaz dos trabalhadores a uma cultura neoliberal e a enganadora justificação de reduzir o stresse, que é criado, justamente, pelo actual espírito empresarial.
Edgar Cabanas é doutorado em Psicologia pela Universidade Autónoma de Madrid, professor na Universidade Camilo José Cela, em Madrid, e investigador associado no Max Planck Institute for Human Development, em Berlim.
Eva Illouz é professora de Sociologia e Antropologia na Hebrew University of Jerusalem e na École des Hautes Études en Sciences Sociales em Paris, colunista do diário israelita Haaretz e autora de diversos livros. Em 2018, recebeu o prémio EMET, o maior galardão científico de Israel, e foi condecorada com a Legião de Honra de França. Ver artigo
Espinosa viveu num tempo em que a crença religiosa era lei (vigorava a Inquisição) e qualquer pensamento desviante condenava um livre pensador à prisão ou à morte. Contudo, apesar do risco constante, manteve-se leal ao seu próprio pensamento filosófico e concebeu uma noção inovadora de Deus que ultrapassava a crença religiosa imposta.
O Milagre Espinosa – Uma filosofia para iluminar a nossa vida bestseller vendeu mais de 300 mil exemplares em França, foi publicado em Portugal pela Quetzal e narra-nos a vida e obra de Espinosa. Narra-nos, porque apesar de este livro de Frédéric Lenoir não ser ficção, conta-nos a história de Baruch de Espinosa de um jeito claro e envolvente. Note-se, por exemplo, como o autor designa o filósofo pelo seu primeiro nome, Baruch, nomeadamente na primeira parte do livro, quando fala de Espinosa ainda antes da sua obra ser publicada e o seu pensamento começar a circular pela Europa. Oscila-se assim, aparentemente, entre os nomes Baruch e Espinosa conforme o narrador (porque o autor assume-se sempre na primeira pessoa e partilha o seu próprio pensamento) se refere à pessoa ou ao filósofo.
Os antepassados de Espinosa foram, provavelmente, judeus espanhóis expulsos em 1492 e que se refugiaram em Portugal, mas que novamente partem em busca de asilo para as Províncias Unidas dos Países Baixos (Holanda).
«De uma educação religiosa dogmática e rigorista, assente no medo e na esperança, que abandona a partir do final da adolescência, passa, de maneira apaixonada, para uma busca livre pela verdade e pela verdadeira felicidade, assente apenas na razão.» (p. 32)
Com 23 anos, tendo perdido quase toda a família e sobrevivido a uma possível tentativa de assassinato, Espinosa renuncia à publicação de alguns dos seus livros ou passa a publicá-los sob pseudónimo, contudo o seu pensamento é inconfundível, pelo que isso pouco adianta. Os anciãos da sinagoga de Amesterdão decretam um herem, um acto radical e raro, banindo o filósofo holandês da comunidade.
«Com a ajuda do julgamento dos santos e dos anjos, excluímos, expulsamos, amaldiçoamos e execramos Baruch de Espinosa, (…) em presença dos nossos livros sagrados e dos seiscentos e treze mandamentos que neles estão contidos. (…) Que o Pai Eterno inflame contra esse homem toda a Sua ira e faça cair sobre ele todos os males mencionados no livro da Lei: que o seu nome seja apagado deste mundo para todo o sempre» (p. 39)
A sua obra Ética, publicada um ano depois da sua morte, foi condenada e catalogada no livro negro da Igreja Católica. Mas o pensamento e o nome de Espinosa mantiveram-se vivos e a sua filosofia é agora recuperada neste livro, a uma nova luz, de modo a iluminar a nossa vida e nos ajudar a viver melhor. Pode até parecer um livro de desenvolvimento pessoal (vulgo auto-ajuda), não fosse estar assente numa leitura crítica atenta e pertinente das obras de um dos grandes filósofos. Criador da etologia ao propôr uma ética «conducente a uma vida boa e feliz, a qual assentará numa metafísica, ou seja, numa conceção de Deus e do mundo» (p. 109), rompeu com a herança judaico-cristã que «circunscreve Deus a uma só definição» (p. 119) e foi pioneiro na defesa de uma leitura histórica e crítica da Bíblia.
São muitas as passagens deste livro que gostaria de evocar, mas para terminar fica uma passagem bastante actual (e um pouco extensa) em que Lenoir consegue revivificar o pensamento de Espinosa, falecido em 1677, e transpô-lo para o nosso tempo: «Todo o pensamento de Espinosa assenta nesta ideia, que defende que um indivíduo estará tanto mais em harmonia com os outros quanto melhor estiver consigo mesmo. Ou seja, as nossas democracias serão tanto mais sólidas, vigorosas e vivas quanto mais os indivíduos que as compõem forem capazes de dominar as suas paixões tristes – o medo, a ira, o ressentimento, a inveja, etc. – e de pautar a existência pelos princípios da razão. Mesmo se não o diz de forma explícita, também se percebe que está subjacente a ideia de que os cidadãos, mais movidos pelas emoções do que pela razão, podem eleger ditadores ou demagogos.» (p. 98) Ver artigo
Melhor livro do ano pelo New York Times e a National Public Radio. Vencedor do LA Times Book Prize, Stonewall Book Award e Andrew Carnegie Medal. Finalista do Pulitzer Prize e do National Book Award.
Já referi antes que por vezes me incomoda quando os livros são demasiado etiquetados, todavia este romance, publicado pela ASA, e que está a ser adaptado para televisão, é para mim um dos livros do ano e aborda um tema que eu estranhava não ter sido ainda devidamente tratado num romance. Temos o filme Filadélfia, ou a série Um Coração Normal, podemos até lembrar-nos do escritor que se suicida em As Horas, de Michael Cunningham, mas não havia nenhum romance, ainda mais de grande fôlego, que abordasse a epidemia da SIDA nos anos 80 nos Estados Unidos da América.
Em Novembro de 1985, um grupo de amigos fazem uma festa em Chicago que é, na verdade, um funeral, enquanto a “verdadeira” missa fúnebre decorre a quilómetros dali, assistida apenas pela família. Nico, um jovem belo, promissor, querido por todos, morreu. A sua irmã Fiona vira as costas à família, da mesma forma que os seus pais, que agora o choram, expulsaram em tempos Nico de casa quando souberam da sua homossexualidade. Nos meses seguintes, decorre uma espécie de jogo, quase como num mistério policial, em que nunca se sabe quem vai morrer a seguir, enquanto o grupo de amigos de Yale Tishman vai sendo dizimado.
(…) Ver artigo
Já saiu o segundo volume da tetralogia José e os seus irmãos, iniciado em As Histórias de Jaacob. Publicado pela Dom Quixote e traduzido directamente do alemão, numa excelente tradução da professora Gilda Lopes Encarnação.
José tem agora dezassete anos e «aos olhos de todos os que o contemplavam, era o rapaz mais belo entre as criaturas de Deus» (p. 9). Continua a ser invejado pelos seus 10 irmãos, mas aquilo que primeiro era ódio, por ser manifesta a predilecção do patriarca Jaacob por José, o único que aliás beneficia de um tutor, começa a transformar-se em temor, conforme se apercebem que, além da sua beleza, José é também inteligente e eloquente, capaz de seduzir, de enfeitiçar.
«É que este menino é esperto como as cobras e manso como as pombas, como todos nós deveríamos, no fundo, ser. Malicioso na inocência e inocente na malícia, de modo que a inocência se torna perigosa e a malícia sagrada – eis as marcas iniludíveis de quem foi abençoado pelo Senhor, e contra elas nada há a fazer, mesmo que o desejássemos, o que nunca sucede, porquanto nelas se adivinha a presença de Deus.» (p. 142)
(…)
Uma obra magistral, polifónica, como uma sinfonia que recupera um tema aqui e ali, enquanto se desenrola a história da queda de José, ao tornar-se escravo, e da sua ascensão a senhor do Egipto. Considerada pelo autor a sua magnum opus, esta recriação da história bíblica de José foi concebida em quatro partes, sendo as próximas a publicar José no Egito e José, o Provedor, e mal podemos esperar pela continuação desta história mítica. Ver artigo
Um livro que se compõe de 13 histórias, o que atendendo ao epílogo do autor pode até não ser uma coincidência, pois, como se anuncia na contracapa, a Morte é o denominador comum destas micronarrativas (para simplificar toda a simbologia do 13, limito-me a referir que a carta XIII do Tarot é a Morte). Refere ainda a contracapa do livro que todos os protagonistas «infames» destas histórias «estão condenados a um único desenlace, sem redenção possível nem lugar no paraíso». Permitimo-nos discordar, como se lerá mais adiante, pois nem todos os contos são de facto sobre a morte e alguns deles interligam-se de forma magistral.
Jaume Cabré, um dos mais premiados escritores europeus da actualidade, nascido em Barcelona em 1947, autor de guiões cinematográficos e televisivos, declara numa nota final ao livro que por vezes no meio da escrita de um romance escreve um conto, «como quem para descansar atraca numa ilha desconhecida» (p. 243), impelido pelo projecto narrativo em curso ou justamente para dele se afastar, como quem procura nova perspectiva. Os 13 contos são relativamente breves, à excepção de «Os homens não choram» e «Ponto de Fuga». Não sei se é por isso mesmo que é com este conto que abre o livro, mas «Os homens não choram» é uma das histórias a destacar. É essa verdade universal que o pai profere ao seu filho quando o deixa num orfanato, poucos dias depois de a sua mãe se ter suicidado, prometendo que o visitará no domingo. Mas o pai nunca vem. E o protagonista desta narrativa opressiva e desesperançada, um rapaz sem nome, terá de aprender a conviver com os outros jovens, cada um com as suas taras e problemas, enquanto tem de evitar o Henricus, que gosta de os tocar e apalpar, a frieza distante das freiras que vogam como pássaros. E este rapaz sem nome, apenas conhecido como «Tu» vive de tal forma imerso na penumbra que congemina, como salvação, o plano de matar Henricus com outros 3 amigos, para que não acabe por ser sodomizado como aconteceu com Tomàs. A narrativa oscila entre um eu e um ele, como se Tu se tivesse dissociado em dois, como estratégia de sobrevivência à vida no orfanato até ao dia em que atinge a maioridade e sai. Apenas para se deixar enredar numa nova prisão, quando assolado por um desejo de vingança Tu acaba por matar. Apenas para voltar a matar.
No último conto do livro, «O Ebro», acontece o inverso. Numa viagem de carro, dá-se um diálogo desencontrado entre pai e filho, ao longo de 11 páginas. Enquanto o filho interpela e conversa directamente com o pai, procurando atender às suas necessidades imediatas, como urinar, mantê-lo confortável, comprar-lhe os croissants de que gosta pois sabe que o pai é guloso, mostrando-se sempre solícito e paciente, o pai discorre num discurso ininterrupto que evidencia claramente que está preso aos acontecimentos que viveu na batalha do Ebro (deduzimos nós pelo título do conto) que recorda de forma tão vívida que teme o aparecimento do Sargento Mayo para lhe dar um tiro, apesar de ele ter morrido à sua frente nas margens do Ebro, possivelmente às suas mãos. Cedo compreenderemos que, a fechar o livro, temos agora um filho a deixar o pai num lar. Embora o pai não chegue a viver um dia nessa nova casa, pois morre às mãos do monstro do Paraíso, o mesmo pedófilo que assassinou 5 crianças no conto «Paraíso», pois foi ele o juiz que condenara o criminoso a prisão perpétua: «Naquele momento, não teve discernimento suficiente para se perguntar por que motivo as histórias da vida acabam sempre com a morte, como se não houvesse mais nenhum final possível para todas as coisas.» (p. 242)
Todas as restantes histórias são igualmente atravessadas pela temática da morte, mas sempre de forma violenta. Praticada como vingança, ou como um negócio, no caso de assassinos a soldo, ou ainda como acto de criação, como é o caso do protagonista de «As mãos de Mauk» que leva mais longe o acto de criar e aniquilar as personagens das suas histórias: «se ele era o deus que governava as personagens que criava, porque não podia ser o deus das pessoas que o cercavam? Quando escreveu a história do jardim zoológico, não decidiu só porque sim que Irene devia morrer? Decidiu-o porque sim, não por uma qualquer razão narrativa. Escreveu aquilo e Irene palmou, sem sequer ter o direito de reclamar, porque eu sou Deus.» (p. 210)
Escreve o autor, voltando ao epílogo, que nesta colectânea, publicada pela Tinta-da-china, há contos resgatados à gaveta, outros já publicados em antologias, mas há ainda uns quantos que nasceram quando trabalhava na actual compilação: «A dinâmica do livro em construção desperta em mim o desejo de contar novas histórias que, sem grandes melindres, se colocam lado a lado com outras narrativas que esperavam há anos pela oportunidade de enfiarem o nariz de fora.» (p. 245) Parece ser esse o caso destas histórias que ressaltam e quase se impõem como narrativas autónomas numa galeria de personagens «sem redenção possível nem lugar no paraíso». Contudo esse paraíso parece ser vislumbrado em alguns dos contos, a começar por «Claudi» onde um homem entra num quadro como quem muda para outra dimensão – quadro esse que volta a surgir em «Nunc dimittis» e depois em «Ponto de Fuga» –, onde o tempo se esvanece, não há sentimentos nem obrigações, e se vive uma imensa liberdade, caminhando rumo ao sol nascente pela mão de uma camponesa. Ver artigo
Muhsin Al-Ramli nasceu em 1967, numa aldeia do norte do Iraque. É romancista, poeta, dramaturgo, académico e tradutor. Os Jardins do Presidente, publicado pela Topseller, entrou na longlist do International Prize for Arabic Fiction, conhecido como o «Booker árabe». Vive em Madrid desde 1995.
«Um romance extraordinário passado no Iraque de Saddam Hussein, que traz à memória Cem Anos de Solidão e O Menino de Cabul»… Com esta frase intenta-se seduzir o leitor a entrar neste mundo fabuloso que, de início, evoca realmente a atmosfera de Macondo ou o imaginário do realismo mágico latino-americano: veja-se, por exemplo, o caso de Isma’il que em rapaz cortou a língua de um bode e desde então perde a voz, até que anos depois as palavras que lhe saem num grito coincidem com o momento em que «reza a história antiga, (…) uma estranha massa amorfa com um corpo gigante e uma cabeça minúscula chamada América atravessou os mares e ocupou um país chamado Iraque» (p. 8)
A primeira frase do romance é, aliás, tão emblemática como o início da obra-prima de García Márquez: «Num país onde não havia bananas, ao terceiro dia do Ramadão, a aldeia deparou-se, ao acordar, com nove caixas de bananas, cada qual contendo a cabeça degolada de um dos seus filhos.» (p. 7). Todavia Os Jardins do Presidente, de Muhsin Al-Ramli, é uma narrativa que rapidamente se distancia de tudo e ganha vida própria.
Tariq, Abdullah Kafka e Ibrahim nascem em 1959, em meses seguidos, e desde logo se tornam inseparáveis. Até que a guerra contra o Irão deflagra (e dura 8 anos), e Abdullah é preso pelas forças iranianas em 1982. Em 1990, o Iraque invade o Kuwait. A guerra torna-se o estado natural das coisas e «quanto mais se adentravam no deserto (…) mais mergulhavam na guerra» (p. 59). Em 1991, as forças aliadas desencadeiam o ataque terrestre a partir das areias da Arábia Saudita:
«O deserto, que se vira abandonado durante séculos, foi transformado num mar de ferro e fogo. O cenário era nada menos que apocalíptico, demonstrando o poder que aquela pequena criatura, o homem, conseguira alcançar, capaz de transformar a face da natureza de forma aterradora e esmagadora.» (p. 62)
Nas primeiras 200 páginas temos uma narrativa intrincada repletos horrores da guerra, mas sobretudo de histórias que se cruzam. Todas as personagens têm a sua história, sempre contada na primeira pessoa, como é o caso de Ibrahim que procura deixar o seu legado à sua filha Qisma (significa destino), vendo-a como a extensão natural da sua história. O romance passa depois a uma segunda parte, no que parece uma estrutura desarmoniosa, mas conforme prosseguimos percebemos como se fecha o círculo deste mundo, tanto que o penúltimo capítulo é um eco do primeiro, voltando à frase de abertura do romance. É quando Ibrahim se muda para a cidade de Bagdad que o romance ganha outro fôlego. Como funcionário nos jardins de um dos vários palácios do Presidente, Ibrahim é supervisionado por Sa’ad, que ao longo de várias páginas, descreve a opulência dos “palácios do povo”, em descrições hiperbólicas ao estilo dos contos das Mil e Uma Noites. A única vez em que Ibrahim avista o Presidente no jardim é justamente quando ele assassina um músico emblemático do país. O próprio nome de Saddam Hussein, ao jeito do realismo mágico, nunca é mencionado; quando Qisma dá o nome do líder ao filho, Ibrahim recusa-se terminantemente a chamá-lo pelo nome.
Ibrahim é depois promovido de jardineiro a coveiro, enterrando milhares de corpos sem nome, «vítimas de um reinado impiedoso de terror», nos jardins do Presidente… Ver artigo
A propósito da atribuição hoje do Prémio José Saramago, lembrei-me de publicar esta recensão, ainda que extensa, publicada recentemente na Colóquio Letras Ver artigo
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