David Machado nasceu em Lisboa em 1978 e a sua obra é publicada pela Dom Quixote.
O seu livro Índice Médio da Felicidade foi adaptado ao cinema por Joaquim Leitão e vencedor do Prémio da União Europeia para a Literatura. Escreve ainda literatura infanto-juvenil, com obras de destaque como Não te afastes ou O Tubarão na Banheira.
Depois de Debaixo da Pele, aqui recenseado em 2017, David Machado aventura-se num romance sobre 2 jovens, David e Marco, que no Verão de 2001 estão numa road trip pelos Estados Unidos da América. Apesar do narrador na primeira pessoa, o leitor pode sempre levar o seu devido tempo a querer associar o nome da personagem ao do autor. Estes 2 jovens irreverentes e recém-licenciados, que se envolvem em situações por vezes controversas, decidem suspender com esta viagem o desfecho que é convencionalmente esperado ao terminar os seus cursos. A «viagem depois da viagem» é uma espécie de horizonte sem metas, em que se alimenta o sonho de viver sem prisões nem regras. A única certeza que norteia David e Marco é serem livres e não cair na armadilha de uma vida normal, feita de rotinas e hábitos: «Pouco tempo antes, eu também fora assim, orientando-me pelo mesmo guião aborrecido pelo qual toda a gente regia a sua vida, sem questionar nada, uma normalidade convencionada, um logro cómodo para todos, porque tudo o que era diferente exigia um esforço que preferíamos evitar. Olhávamos o mundo através da mesma lente baça. Todos os nossos gestos eram repetidos – embora não soubéssemos explicar porquê. Éramos réplicas perfeitas uns dos outros, ovelhas num rebanho autónomo, sem necessidade de pastor, seguindo-se umas às outras. Eu tinha vinte e três anos: estava na altura de deixar o rebanho.» (p. 10)
Estes dois gafanhotos, aos saltos entre uma cidade e outra – até que subitamente são de tal forma abanados pela realidade que percebem qual é o seu inevitável destino –, transportam consigo muito pouco além dos seus cadernos que servem de diário da viagem. Pois essa é outra certeza a que se agarram: querem ser escritores. Os eventos que lhes ocorrem podem assim ser definidos de duas formas – “isto é muito Faulkner” ou “isto é Hemingway puro”: «Enquanto Hemingway descreve sem grande detalhe os acontecimentos – deixando espaço para o leitor interpretar aquilo que as personagens estão a sentir e a pensar -, Faulkner narra sem freios e de forma exaustiva o caos interior de um ser humano – oferecendo ao leitor todos os ângulos e leituras possíveis. De certa forma, podemos considerá-los pais de toda a literatura que se lhes sucedeu, pois, de maneira mais ou menos consciente, qualquer escritor acaba por escolher uma destas duas abordagens.» (p. 21)
A Educação dos Gafanhotos é ainda isso – um romance que trata a ténue relação entre a literatura e a vida e qual delas pode ser mais verosímil. De como a literatura só interessa quando bebe da vida, apesar de esta por vezes superar qualquer plausibilidade e lógica. De como um escritor pode até ter muito mau génio e detestar pessoas, apesar de escrever para elas – e é sintomático que o jovem David acabe por ser esmurrado algumas vezes em virtude das suas diatribes verbais, pois cospe a verdade como um veneno e nem todos reagem bem quando se vêm confrontados com as mentiras que contam a si próprios. De como alguém sente necessidade de escapar à sua verdade perante os outros e de se redefinir na mentira mediante as mais rocambolescas ficções. E de como a literatura pode ser o derradeiro escape para alcançar a liberdade e reescrever a sua própria história: «Escrever era a minha forma de rejeitar qualquer definição que o mundo me quisesse impingir. Através da literatura, eu mesmo me definiria» (p. 145). E de como a memória pode trair um escritor, ao ponto de as personagens e situações que narra conforme aconteceram parecerem tão inverosímeis que o próprio narrador suspeita se terá realmente acontecido assim ou se agora o imagina. Ver artigo
Dizer «Eu amo-te» é talvez das palavras ou fórmulas mais antigas na história da humanidade. Muito provavelmente já se veiculava estas palavras por gestos ou por actos ainda antes de o homem dominar a linguagem verbal. Muito certamente são das palavras mais usadas em todo o mundo e, como tudo o que é proferido, transportam consigo uma energia. E todos os dias ouvimos pessoas que sofrem por falta de amor… Até aqui nada de novo. O que é aqui avançado por Sri Prem Baba neste magnífico pequeno livro da Pergaminho, é que o nosso relacionamento com o outro, nomeadamente o relacionamento afectivo e sexual, é o mais poderoso catalisador e ativador da verdade, da mesma forma que é através do acto de amar que o ser humano (enquanto ser espiritual que vive uma experiência terrena, numa existência mundana) atinge a transformação.
Sri Prem Baba desenvolve, ao longo de 4 capítulos, como é que o eu, apesar da sua individualidade, espontaneidade, liberdade, e responsabilidade, nasce no seio de uma família, para depois se conhecer através do seu reflexo no outro, até conseguir chegar a uma união num nós. existe a crença, que não é nova, de que ao preparar-se para nascer a alma escolhe a família, de modo a purificar o seu karma, e é esse processo de purificação, de encontro com a verdade, que permite alinharmo-nos com o nosso dharma, o propósito da nossa alma – a missão que assumimos, por assim dizer. É verdade que existem actualmente milhares de livros que versam a temática amorosa na área do desenvolvimento pessoal, mas para um leitor atento ou mais apaixonado é fácil constatar de imediato que o autor aqui não se limita a mastigar lugares-comuns ou banalidades. Diz-se usualmente que a vida é uma escola: em Amar e ser livre demonstra-se que os relacionamentos amorosos são a nossa universidade. Em traços gerais, as principais ideias do autor defendidas neste livro são que o sexo não pode ser um aspecto da nossa existência a suprimir ou a reprimir, até porque é através da sexualidade, especialmente das nossas fantasias mais recônditas, que é possível descobrir o que escondemos até de nós próprios e que pode fazer luz sobre os nossos medos e anseios, pois revelam «aspectos da consciência que ainda não foram devidamente integrados» (p. 52). Ouço muito recorrentemente as pessoas lamuriarem-se que estão sozinhas (por vezes há algumas semanas), quando outras pessoas (sim, é o meu caso) estão sozinhas há mais de 10 anos. Afirma o autor que, no geral, as pessoas entram nos relacionamentos como trajectos de fuga, «porque o contacto com a solidão significa a morte da nossa falsa identidade» (p. 75). E é através do relacionamento amoroso com outrem que se atinge a verdade interior, um conhecimento íntimo do nosso eu, pois é o outro que faz luz sobre as nossas sombras: «É preciso ter coragem para abandonar as defesas e permitir-se chegar perto do centro. É necessária ainda mais coragem para deixar o outro tocar no nosso centro, para se revelar. (…) sem revelação, não há intimidade. Sem intimidade, não há aprofundamento do amor.» (p. 108). Mas amar, amar verdadeiramente, implica libertar o outro, darmo-nos desinteressadamente, «quando conseguimos perdoar e agradecer e ver Deus em todos» (p. 63). É então que se alcança a purificação e o eu se completa.
Sri Prem Baba nasceu no Brasil, em São Paulo, e estudou Psicologia e Ioga. Tornou-se discípulo do mestre Sri Sachcha Baba Maharajji e fundou o movimento global Awaken Love. Vive entre o Brasil e a Índia onde ministra cursos e oferece palestras e retiros, como os de Satsang (que significa «encontro com a verdade»). Ver artigo
Satoru Miyawaki teve um gato em criança, a que chamou Hachi – oito, o número do infinito –
pois no seu pêlo quase todo branco tem duas manchas castanhas que parecem desenhar o símbolo do infinito, com uma cauda preta e torta. Hachi é o último ser vivo com quem Satoru partilhou momentos felizes, e quando perde os pais tem também de se separar do seu gato. Agora em adulto, Satoru encontra um gato de rua que foi atropelado e cuida dele até ficar bom. Mas no momento em que o gato se prepara para sair em liberdade, Satoru convida-o a ser o gato da casa. Até porque este gato lembra-lhe o outro, com a cauda torta para o lado oposto, e chama-lhe Nana (sete, o número da sorte).
Satoru revela-se um bom companheiro de casa de gato e Nana um bom companheiro de casa de humano, até que 5 anos depois Satoru o convida a fazer uma viagem pelo Japão para reencontrar amizades antigas e procurar um novo companheiro de casa que adopte o seu gato pois por questões «incontornáveis», nunca nomeadas, Satoru não poderá continuar a cuidar dele. Na viagem que os dois companheiros empreendem, Nana fica a conhecer a paisagem japonesa, o mar, as cidades onde o dono cresceu, enquanto Satoru visita o seu colega de natação no ensino básico, Kosuke Sawada, recentemente abandonado pela mulher; Daigo Yoshimine, um colega dos tempos de colégio, que travou amizade na altura em que os seus pais se divorciavam e ele foi viver com a avó; Shusuke Sugi e a mulher Chikako Sakita, colegas de Satoru no primeiro ano do ensino secundário, e que são agora donos de uma pousada pet friendly perto do monte Fuji onde não faltam as suas mascotes, uma gata e um cão que consegue farejar a hostilidade latente entre Shusuke e Satoru; e Noriko Kashima, a tia de Satoru, que o criou quando a sua mãe, irmã mais velha de Noriko, faleceu.
Este pequeno e belo livro, publicado pela Editorial Presença, narra uma história de amizade contada pela voz de um gato, criatura independente mas leal, que observa os humanos com deliciosa ironia do alto da sua superioridade e que, com o gancho da sua cauda torta, parece recolher as pequenas felicidades do quotidiano e dar sorte àqueles com que se cruza. Ver artigo
(Não, não é sobre livros… outra vez.) Ver artigo
Colleen McCullough, autora publicada pela Bertrand Editora, nasceu na Austrália em 1937 e faleceu em 2015. Na sua carreira literária revelou versatilidade: escreveu breves romances como Tim ou As Senhoras de Missalonghi, aventurou-se numa série policial com Carmine Delmonico, explorou os primórdios da colonização da Austrália com A Viagem de Morgan, e estudou a fundo a História de Roma em O Primeiro Homem de Roma, uma ambiciosa e avassaladora série composta por 7 volumes (com mais de 1000 páginas cada) que retrata o apogeu da época romana: inicia com Mário e Sula, dedica vários volumes à vida de Júlio César, e termina com Marco António e Octávio Augusto. Colleen McCullough é, sobretudo, conhecida por Pássaros Feridos, bestseller internacional que narra as grandes paixões de uma saga familiar, com o imenso deserto australiano como cenário, e deu origem a uma série televisiva em 4 partes.
As Senhoras de Missalonghi lê-se como uma recriação de um conto de fadas, ao género da Gata Borralheira, onde não falta uma fada-madrinha e um final imprevisível. Missy Wright tem 33 anos, vive em casa com a mãe e a tia, que fazem trabalhos de costura mais para se ocupar do que para se remediar, é a única morena do clã alvo e louro de Hurlingfords, e nunca vestiu outra cor se não o castanho, como condiz à sua condição de solteirona: «era uma cor tão prestável! Nunca mostrava a sujidade, nunca estava na moda nem deixava de estar, nunca ficava ruço, nunca parecia ordinário, vulgar, indecente.» (p. 53).
O único prazer que Missy conhece é o da leitura de romances de cordel, cujo desfecho previsível é, ainda assim, previamente revelado por Una, que lhos vai passando subrepticiamente. Até se deparar com um estranho cavalheiro, cuja chegada marca também o desabrochar e a insurreição de Missy contra a sociedade hipócrita que a rodeia, nomeadamente a própria família, onde os homens ardilosamente reclamam para si o património das viúvas, persuadindo-as de que são a sua única salvação, até que, subitamente, as acções dos Hurlingfords começam a ser misteriosamente compradas. Se resumirmos a essência de As Senhoras de Missalonghi, a história é, portanto, enganosamente simples, mas a colori-la está a vivacidade irónica da autora, a argúcia com que dá vida às suas personagens, donas de um carácter à altura das suas paixões. Ironia que denota ainda uma narrativa histórica que retrata o fim de uma época, com o prenúncio da Primeira Guerra, feita de convenções e superficialidade: «A atmosfera encontrava-se carregada de particípios corretamente formados e de infinitivos harmoniosamente colocados, assim como muitas outras delícias verbais desatualizadas há pelo menos cinquenta anos.» (p. 84) Ver artigo
Se o combate à ignorância pode ser considerado como um dos propósitos da filosofia, disciplina que promove a saúde moral e a busca do conhecimento através do debate e do livre pensamento, podemos então encarar os preconceitos, o orgulho, a intolerância ou a superstição como algo menos do que manifestações de estupidez? Maxime Rovere defende, paradoxalmente, que os estúpidos, por um lado, perturbam a vida social, mas por outro são também eles produto de uma sociedade doente; são até, muitas vezes, aqueles que mandam e estão ao serviço do poder. Contudo, quando identificamos um estúpido, através dos seus comportamentos desadequados, como alguém que se situa num «grau inferior de uma escala moral», nós, seres imperfeitos que se esforçam por alcançar a realização plena, devemos também ter a noção de que pertencemos a essa mesma escala (p. 29). E, infelizmente, a via mais fácil para responder a um estúpido é tornarmo-nos nós próprios estúpidos – até porque, aos olhos deles, somos nós os verdadeiros estúpidos, e «considerar a nossa própria opinião como algo absoluto é uma das definições subjetivas do estúpido, a imagem divina que têm de si mesmo» (p. 41).
Neste livro publicado pela Quetzal, Maxime Rovere, especialista em História da Filosofia que lecciona na Universidade Católica do Rio de Janeiro, define a estupidez como «a verdade das relações humanas» (p. 30) e relembra-nos o que podemos aprender com eles, pois somos nós quem tenta perceber a sua lógica de comportamento. Composto por capítulos breves, com máximas e conselhos que os resumem, o autor deste ensaio sobre a ética de interacção constrói a sua tese, cheia de humor, ironia e sarcasmo, mas sempre com base na filosofia, com o fito de nos ajudar a melhor compreender a estupidez humana, de modo a evitar o confronto e dar espaço àquele companheiro de casa insuportável, ao colega de trabalho com opinião sobre tudo, ou escapar à negatividade daquele amigo insuportavelmente crítico… «Sabem muito bem que é melhor nunca insultar quem quer que seja – nem mesmo os parvalhões. Logo, a emoção que sentem no momento em que se deparam com um monte de esterco colide naturalmente com a representação mental do dever de reserva, a que não gostariam de falhar. Quanto mais essa força encontrar em vós um obstáculo tanto mais se transformará em violência.» (p. 60) Ver artigo
Rui Cardoso Martins nasceu em Portalegre em 1967. Foi um dos fundadores do jornal Público, trabalhou como repórter internacional e cronista, participou na produção de programas televisivos (Contra-Informação) e na escrita de argumentos para cinema.
Deixem Passar o Homem Invisível, agora reeditado pela Tinta-da-china, foi publicado em Julho de 2009 e venceu em 2010 o Grande Prémio de Romance da APE, destacando o autor como uma voz a ter em contra entre a nova geração de autores.
No incipit, o autor anuncia que «Cegos são pessoas que não vêem, na minha opinião», frase que ressoa desde logo o romance Ensaio sobre a Cegueira, de José Saramago, com o incipit: «Se podes olhar vê, se podes ver repara». Esta associação fará tanto mais sentido se considerarmos que enquanto na obra de José Saramago era uma mulher quem guiava os cegos, aqui é um cego que guia uma criança.
Deixem Passar o Homem Invisível pode resumir-se, em traços largos, como a história de um cego que caiu por um buraco, surgido após uma forte chuvada em Lisboa, juntamente com uma criança perdida que entretanto resgatara da confusão desse dilúvio, e ambos tentarão depois encontrar uma saída por entre os labirintos dos subterrâneos de Lisboa. Numa linguagem enxuta e simples, o tom é ligeiro e irónico: «O céu devia estar cheio de rezas e choros, porque nessa tarde condensou a água de repente e choveu tudo duma vez. Fez-se escuro como a pele dum rato e, minutos depois, largou o peso na terra.»
O real é narrado a par e passo com o irreal e o tom adoptado para a narração das consequências da chuvada torna-se risível, onde o mais sério, digno de ser notícia televisiva, se entrelaça com o anedótico.
A narrativa desenrola-se num plano de alternância, entre o périplo (ideia cara a outros romances de Rui Cardoso Martins) de António e de João, o escuteiro, nos subterrâneos de Lisboa (e que mais parece representar uma espécie de descida aos Infernos) e os esforços do Comandante que planeia a operação de resgate à superfície, auxiliado pelo melhor amigo de António, Serip, o mágico ilusionista (o próprio nome é um anagrama, pois deve ler-se como «Pires ao contrário»). A narrativa alterna ainda entre o tempo presente e passado, com constantes analepses do que foi a vida de António, provocadas pelo seu constante rememorar, enquanto prossegue a sua viagem pelos subterrâneos.
Este livro representa ainda uma alegoria de um tempo em que os portugueses andavam perdidos e às escuras a tactear o caminho entre a incerteza política e uma recessão económica. Ver artigo
Cada obra deste autor é uma deliciosa descoberta, em particular para aqueles que partilham o seu gosto pela leitura, pois como afirma Alberto Manguel: «A biologia diz-nos que descendemos de criaturas de carne e osso, mas, no fundo, sabemos bem que somos filhos e filhas de fantasmas de papel e tinta.» (p. 10)
Publicado pelas Edições Tinta-da-china, à semelhança de outras obras do autor, que têm vindo a ser traduzidas a um ritmo regular, como A Biblioteca à Noite ou Embalando a Minha Biblioteca, este livro é também uma proposta de glossário, à semelhança do belíssimo Dicionário de Lugares Imaginários. O autor reconhece que há personagens, esses fantasmas de papel e tinta, que sobrevivem aos autores e ganham uma vida exterior aos livros que os viram nascer: «Os leitores do mundo veneram escritores como Shakespeare e Cervantes, mas esses seres, imortalizados em retratos imaginários e solenes, são menos tangíveis que as suas criaturas mortais.» (p. 11)
Estes monstros fabulosos que assombram a vida de um leitor – e mais do que um erudito, um ex-director da Biblioteca Nacional da Argentina, um escritor, um dos maiores bibliófilos do mundo (a par de Umberto Eco), é como leitor que Alberto Manguel se identifica – não são todos eles criaturas temíveis, mas sim seres fantásticos em que nos revemos, que nos inspiram as mais diversas qualidades quando a vida nos falha, figuras que norteiam aqueles que se atrevem a manter vivo o sonho: «Ao contrário dos seus leitores, que envelhecem e nunca voltam a ser jovens, as personagens ficcionais são, ao mesmo tempo, quem eram quando lemos as suas histórias pela primeira vez e quem se tornaram no decurso das nossas sucessivas leituras.» (p. 13)
A magia que advém das mais variadas personagens que o autor aqui revisita (Drácula, Alice, Super-Homem e Outros Amigos Literários como o subtítulo do livro sugere, onde não falta inclusivamente o Mandarim de Eça de Queirós) permite ainda o regresso ao nosso eu da infância ou da juventude de quando conhecemos estas personagens e as incorporámos. Ver artigo
Pode dizer-se de um livro que é claustrofóbico?
O livro História da Violência, publicado pela Elsinore, é uma narrativa de pendor autobiográfico em que Édouard Louis narra a violência de que foi vítima. Mas conforme a narrativa se reparte em múltiplas vozes – com a irmã de Édouard a contar ao marido a sua versão da história pontuada pelos seus apontamentos sobre o que pensa e sente em relação ao irmão, os polícias que tomam nota da queixa com o seu indisfarçado preconceito, os próprios apartes de Édouard que surgem aqui e ali entre parênteses, como se não fosse ele o narrador e autor, mas sim alguém que ao coligir uma série de fragmentos que compõem a versão oficial dos factos não consegue impedir a deixar os seus comentários – percebemos que este relato não é uma confissão mas quase uma carta de amor.
Édouard foi, lamentavelmente, uma vítima. Um jovem homossexual que foi abordado na rua por Reda, um estrangeiro sedutor que o ilude. Esta é a sua história de como uma noite de um amor fugaz entre dois homens estranhos se transforma num pesadelo, de uma noite de amor consentido, pelo menos no início, cujo acto se repete por várias vezes, se converte numa violação e numa violentação que deixa marcas. Mas, e é aí que o livro oprime, Édouard também se apaixona pelo seu agressor, nessa noite em que fizeram amor – é mesmo assim que o acto sexual é designado. Lê-se na contracapa do livro: «A história de Édouard é difícil, íntima e dolorosa; tanto que, sem espaço para devaneios da imaginação, lhe resta apenas o relato agitado, por vezes, implacável, daquilo que a realidade um dia lhe trouxe». Mas na verdade Édouard ilude-se. Ao ponto de inventar pedaços da história do homem que o violentou. De criar histórias que insere na infância do homem que lhe deu atenção naquele dia e que o fez sentir-se especial.
A narrativa de Édouard é narrada de forma honesta e crua, como uma confissão pessoal.
«Nessa noite, não percebia como é que a minha história podia já não me dizer respeito (isto é, que eu estava excluído da minha própria história e que, simultaneamente, estava incluído nela à força, uma vez que me obrigavam a falar ininterruptamente dela, isto é, que a inclusão era a condição da exclusão, que ambas eram uma coisa só (…), a história da qual já não tinha o direito de sair).» (p. 41)
Mas da mesma forma que a história de Édouard rapidamente lhe escapa, o relato do que lhe sucedeu converte-se num retrato da actualidade, em que explora o ódio racial e o mal-estar da França e da Europa de hoje. Porque Reda é cabila (argelino)…
«Mataram-no, foi uma agressão, um árabe estrangulou-o, foi estrangulado por um filho da puta de um árabe» (sempre a mesma tendência para chamar árabe a tudo o que se situa para lá da Espanha, incluindo os portugueses, os gregos e até os espanhóis)» (p. 134)
Releve-se a passagem em que o autor-narrador afirma a sua necessidade de uma clivagem social, de se demarcar da família (o que lembra Regresso a Reims, de Didier Eribon).
«Reda quis saber porque é que, com pouco mais de vinte anos, tinha deixado a família e sobretudo porque é que não passava o Natal com ela. (…) Respondi-lhe que para mim os estudos tinham sido para mim mais uma consequência da minha fuga. Que primeiro tinha fugido. Os estudos, a ideia de estudar tinha surgido muito mais tarde, quando compreendi que esse seria o único caminho possível, ou pelo menos o único caminho que me permitiria afastar-me não só geograficamente, mas também simbolicamente, socialmente, e, portanto, totalmente do meu passado. Podia tornar-me operário, como o meu irmão, numa fábrica a trezentos quilómetros de casa dos meus pais e nunca mais os ver; essa fuga seria parcial. A presença dos meus tios, dos meus irmãos ficaria em mim: o mesmo vocabulário, as mesmas expressões, os mesmos hábitos alimentares e de vestuário, os mesmos interesses e mais ou menos o mesmo modo de vida.» (p. 71)
Édouard Louis nasceu em Hallencourt, França, em 1992. Estudou História na Universidade de Picardia e Sociologia na Escola Normal Superior de Paris. Venceu o Prémio Goncourt para Primeiro Romance com a publicação do seu livro de estreia, Acabar com Eddy Bellegueule (Fumo Editora, 2014 – actualmente esgotado), onde se unem o pendor autobiográfico confessional e a força do romance moderno.
Uma nota acerca da tradução ou revisão do livro: não deixa de ser estranho que a obra de estreia do autor seja mencionada neste romance (aparentemente escrita um mês antes), referindo-se o título original (pág. 82) sem qualquer alusão ao facto de haver edição do mesmo em Portugal. Ver artigo
Mesmo quando iniciamos a leitura de um livro em branco (leia-se in tabula rasa), como normalmente opto por fazer, há ainda assim uma certa expectativa subjacente, um horizonte que criamos mais ou menos involuntariamente e talvez até de modo inconsciente. Pelo título apenas presumi que se tratasse de um romance biográfico que desse conta do processo de escrita de Frankenstein, um dos livros que mais me marcou na adolescência. A narrativa inicia justamente com um cenário idilíco e uma prosa lírica, quando Mary Shelley caminha nua nas margens do Lago de Genebra em 1816. Contudo, no capítulo seguinte, num Reino Unido pós-Brexit, encontramos Ry Shelley, um médico, numa espécie de convenção ou feira de robótica, que pretende estudar de que forma os robôs afectarão a saúde mental e física dos humanos. Ao longo do livro, as duas histórias alternam, e as personagens de uma época encarnam noutra.
Este romance pretende romper com as convenções, ao mesmo tempo que intenta uma crítica mordaz, divertida, ao limiar da realidade que conhecemos, num mundo que se aproxima cada vez mais do imprevisível. Victor Stein (que partilha o nome do médico do clássico de Mary Shelley), é um investigador da Inteligência Artificial; Ry Shelly, outrora mulher, é um médico transgénero, que fornece partes de corpos humanos a Victor, com quem se envolve numa relação amorosa e sexual que não se pretende classificar; Ron Lord, um empresário que tem em mente criar uma inovadora gama de sex dolls; Polly D, uma jornalista em busca de um furo; e Claire, uma cristã evangélica que consegue ver no trabalho de Victor algo de religioso.
É muito particularmente em Ry que parece recair a simpatia da autora, um transgénero que pode aliás ser tomando como transhumano: «Não sou muito alto, com 1,72 metros. A minha constituição é magra. Tenho ancas estreitas e pernas compridas. Quando fiz a mastectomia, não havia muito a remover, e as hormonas já me tinham alterado o peito. Gosto do meu peito como o tenho agora: forte, suave, plano. Uso o cabelo puxado para trás num rabo-de-cavalo, como um poeta do século XVIII. Quando me olho ao espelho, vejo alguém que reconheço. Foi por isso que escolhi não fazer a cirurgia genital. Sou aquilo que sou, mas aquilo que sou não é uma só coisa, um só género. Vivo com a duplicidade.» (p. 84)
Jeanette Winterson entretece neste livro diversas questões actuais, cada uma por si só suficientemente problemática e passível de se ramificar em diversas perguntas existenciais, mas sem querer deter-se demasiado para as aprofundar. A autora pretende sim brincar com este admirável mundo novo onde homens e mulheres preferem robôs que fazem a vez de brinquedos sexuais e de parceiros perfeitos; em que o alcance da imortalidade é uma possibilidade, como em Frankenstein, através da criogenética ou com um simples download dos nossos cérebros para uma cópia de segurança que sobreviva ao nosso corpo e permita um futuro upload num corpo de carbono; em que uma mulher consegue alterar a sua biologia e transformar-se num homem; onde a incerta perfeição da Inteligência Artificial não será, ainda assim, pior que a inteligência humana, até porque num mundo pós-humano, a inteligência artificial vence a raça humana, pois por não ser sentimental tende para os melhores resultados possíveis (p. 71).
«Li hoje que os seres humanos dizimaram 60 por cento da vida selvagem desde 1970. No Brasil, temos um ditador a fazer-se passar por presidente democraticamente eleito que está a abrir a Amazónia aos interesses comerciais. Os seres humanos não têm mesmo melhor hipótese do que a IA. É demasiado tarde para outras opções.» (p. 232)
Contudo, um leitor atento consegue perceber que a narrativa se contradiz, e daí a sua complexidade ou não fosse este livro também uma paródia, pois noutra passagem Victor proclama, numa declaração de amor a Ry, que «Os seres humanos evoluíram. Estão a evoluir. A única diferença, aqui, é que estamos a pensar e a desenhar uma parte da nossa própria evolução. Deixámos de esperar pela Mãe Natureza. Temos todos de crescer. Não é a sobrevivência do mais apto – é a sobrevivência do mais esperto. Nós somos os mais espertos. Nenhuma outra espécie é capaz de interferir com o seu destino.» (p. 140)
Voltando à história de amor entre Victor e Ry, uma pequena nota sobre a tradução do livro. Intitulado, no original, Frankissstein: A Love Story, a Elsinore optou por simplesmente suprimir o subtítulo. É certo que este pouco parece acrescentar, mas se olharmos o grafismo do título, quer no original, quer na capa da tradução portuguesa, com o jogo de cores, percebemos que este contém também um jogo de palavras, pois podemos separá-lo em 3 palavras: Frank kiss Stein. Ver artigo
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