A 20 de junho celebra-se o Dia Mundial do Refugiado, pelo que esta Leitura da Semana decidiu assinalar esta data (e temática) com a obra de literatura infantil intitulada A Viagem, da autoria de Francesca Sanna, publicada pela Fábula (Grupo 20|20), porque a literatura para crianças também pode ser séria e ajudar a colocar questões sobre o mundo em que vivemos, onde vagas de migrantes continuam a chegar às nossas costas. «Como será deixar tudo para trás e percorrer quilómetros e quilómetros rumo a um destino longínquo e estranho?»
Tal como os pássaros, as pessoas também migram para novos países, e assim foi desde o princípio dos tempos, até se começarem a estabelecer em povoações conforme se desenvolveu a agricultura. Migram em busca de uma nova casa, para fugir à guerra, a perseguições, a condições de vida desumanas cujos direitos humanos são violados todos os dias. Mas ao contrário dos pássaros, que não têm de atravessar muros ou fronteiras, os migrantes empreendem longas viagens em que quanto mais distância se percorre mais se vai deixando pelo caminho. E tal como ainda hoje acontece, esta história não tem fim, pois como o fecho do livro indica «Espero que, um dia, como estes pássaros, também nós encontremos uma nova casa. (…) onde possamos recomeçar a nossa história.»
O livro é belissimamente ilustrado, sendo que nesta narrativa existe perfeito diálogo entre texto e ilustração. Contudo, muitas vezes, as imagens do livro também contam a sua própria história, paralelamente ao texto, sem recurso a palavras; como acontece com o mar pintado de preto que cresce até tomar as proporções de um monstro, pois é assim que os perigos enfrentados surgem representados, como gigantes sempre prestes a apanhar a mãe e os filhos. Mas a escuridão também pode ser benigna e ajudar os nossos fugitivos a encontrar um novo lar, como se verá…
É um livro altamente recomendável para pais e educadores, a que não falta um Guião de Exploração da obra criado pela Amnistia Internacional do Reino Unido; multipremiado, com excelentes críticas internacionais, e cuja edição tem o apoio do Alto Comissariado para as Migrações (ACM) e da Amnistia Internacional (AI). Podíamos até apontar A Viagem, de Francesca Sanna, como uma belíssima obra de ficção, não fosse o facto de continuar a haver milhares de refugiados a procurar refúgio em países como Portugal, cuja cooperação internacional está fortemente empenhada na protecção, assistência, acolhimento e integração de refugiados e migrantes. Aliás, a autora deste livro inspirou-se na história de duas jovens refugiadas que conheceu em Itália e entrevistou inúmeras famílias de refugiados na Europa. Ver artigo
Os Anos, de Annie Ernaux, publicado pela Livros do Brasil não é um romance convencional. Se nas primeiras páginas, que constituem como que um primeiro capítulo, nos surge um género de inventário de imagens, de instantâneos, como um dicionário que vai do berço à morte, a partir daí as restantes quase 200 páginas do romance desdobram-se como uma crónica dos tempos. Listam-se fotografias, resgatadas a um arquivo familiar, começando pela primeira foto de um bebé, em 1941; recuperam-se, seguidamente, narrativas familiares que são, como se refere, indissociáveis das narrativas sociais; citam-se ocasionalmente frases retiradas de um diário; existem inclusive passagens que desenham o plano do livro que intenta «captar o reflexo projetado pela história coletiva no ecrã da memória individual» (p. 43). Mas a narração destas memórias, que vai de 1941 a 2006, é sempre apresentada na 3.ª pessoa, referindo-se a uma «ela», tecendo uma narrativa distanciada e exterior por ser uma história colectiva e transpessoal, mas também, possivelmente, por ser essa a ideia central representada no romance: a ideia do que realmente fica de nós, ao passar pelo mundo, e o pouco que conseguimos lembrar da pessoa que fomos, conforme passam os anos, tal como «ela» (essa mulher nunca nomeada) não se consegue reencontrar na pessoa que foi e já mal consegue lembrar.
«Gostaria de reunir múltiplas imagens dela própria, separadas, sem relação entre si, ligadas por um fio narrativo, o da sua existência, desde a Segunda Guerra Mundial até aos dias de hoje. Uma existência particular, portanto, mas também incorporada no movimento de uma geração.» (p. 144)
Definir, portanto, esta reconstrução dos 60 anos da vida de uma mulher, que por sua vez se inscreve na história de um país, França, como um romance biográfico seria bastante simplista. Este livro inédito em Portugal, agora publicado na coleção Dois Mundos, recupera mais de meio século da história do mundo, em décadas decisivas, detendo-se muito particularmente no Maio de 68.
Os Anos foi editado em França em 2008, no mesmo ano em que a autora foi galardoada com o Prémio de Língua Francesa pelo conjunto da sua obra. Esta obra confirma Annie Ernaux como uma das mais importantes vozes da literatura francesa, recebeu várias distinções, como o Prémio Marguerite Duras 2008 e o Prémio Strega 2016, e foi finalista do Prémio Man Booker Internacional de 2019. Ver artigo
“[Recensão crítica a ‘Autópsia de Um Mar de Ruínas’, de João de Melo]” / Paulo Serra. In: Revista Colóquio/Letras. Recensões Críticas, n.º 198, Maio 2018, p. 246-249 Ver artigo
«Ouvi dizer que a avó tem pássaros na cabeça.
Não é de estranhar que as aves se aproximem dela, pensando que é uma nuvenzinha.»
Assim inicia a história deste belíssimo livro infantil, a ser lido não só pelos pais mas especialmente pelos avós, cuja sinopse lê: «Dizem que não temos os pés bem assentes na terra. Dizem que eu tenho a cabeça nas nuvens e que a avó tem nuvens na cabeça.»
Nuvens na Cabeça, de Elena Val, é um livro poético, onde o jogo de palavras começa logo com as nuvens e os pássaros na cabeça (diz-nos a autora que desenha «também com palavras»), pois enquanto esta menina tem uma imaginação muito fértil – e um leão como amigo imaginário –, a avó vive no seu próprio mundo de fantasia, conforme a sua saúde mental se esvanece como uma nuvem no céu. Este «álbum ilustrado» permite-nos assim abordar temas delicados, como a demência ou o Alzheimer na terceira idade, com crianças de tenra idade, pois a autora dá-nos também a ver o mundo com olhos de criança:
«Explicaram-me que não tem nada a ver com os seus cabelos brancos e fofinhos; simplesmente, às vezes parece que a cabeça dela começa a voar, como quando eu me distraio e trepo aos troncos mais altos e longínquos da imaginação.»
E para nós, crianças leitoras presas em corpos desajeitados de adultos, treparmos com esta menina até aos confins da imaginação basta observar como as ilustrações deste livro se repartem entre imagens «cheias de força e muito sugestivas, que alter¬nam o lápis (para representar o mundo confuso da avó) com o guache colorido (para representar o mundo de fantasia da criança)». Mas além da cor associada ao mundo da menina e dos traços a lápis, isto é, o preto e branco do mundo da avó, outro belíssimo pormenor do livro é o modo como uma paisagem ou cenário urbano, mesmo quando peca pela fealdade, podem ser transfigurados na nossa cabeça para passar a ser vistos como um animal escondido. Escreve-nos Elena Val, autora que nasceu e vive em Barcelona, que lhe interessam «os mundos oníricos como reflexo do comportamento humano» e, nas palavras da menina do livro, podemos escolher ver o fumo como aquilo que ele é ou imaginar que são nuvens.
Este livrinho delicioso, da autora e ilustradora Elena Val, com tradução de Catarina Sacramento, incluído na colecção Akialbum, é mais um título da editora Akiara (já aqui apresentada e cujo catálogo completo pode ser consultado no site da editora, https://akiarabooks.com/pt/editora/, com livros em português, espanhol e catalão). Ver artigo
Se a biografia de Agustina (aqui apresentada o ano passado com entrevista à autora) pode ser lida com o enlevo de um romance, e se no romance anterior (também aqui recenseado) se cruzava ficção e ensaio, Isabel Rio Novo dá agora um novo passo no seu percurso romanesco, confirmando-a uma vez mais como uma nova voz da literatura portuguesa contemporânea, e presenteia-nos com o que poderíamos tentar definir como um romance biográfico, mas que se esquiva, como os livros anteriores, a ser classificado numa só categoria. Ver artigo
«Era uma vez, numa grande floresta, uma pobre lenhadora e um pobre lenhador.
Não, não, não, não, tenham calma, isto não é O Pequeno Polegar! De modo nenhum. Tal como vocês, também detesto essa história ridícula. Onde e quando já se viu pais a abandonarem os filhos por não terem o que lhes dar de comer? Vá lá…
Recomeçando: nessa grande floresta reinavam a fome e o frio.»
Assim começa esta breve narrativa, como um conto de fadas.
Era uma vez um casal de lenhadores muito pobres que vivia numa floresta, por onde passava um comboio de mercadorias. Tinham frio, porque se estava no Inverno, e tinham sempre fome, porque grassava uma guerra.
E assim continua a história como um conto de fadas, apesar do narrador que a conta na primeira pessoa, com um registo muito próximo da oralidade, a mesma oralidade que lhe permite brincar com as palavras e com a musicalidade de uma prosa próxima do registo encantatório.
A Mais Preciosa Mercadoria é uma fábula sobre Auschwitz e inspirada num episódio real.
Recorrendo sempre e apenas a alusões, todos os símbolos estão lá, mais ou menos translúcidos, mais ou menos fulgentes: os comboios que circulam sem parar, o xaile precioso com fios de ouro e prata, os gémeos separados, os sem-coração com a sua marca, o bosque proibido, a raça maldita nascida sob a boa estrela amarela, os países ocupados pelos carrascos devoradores de gente estrelada, a ajuda concedida com uma contrapartida… O autor reconta assim a velha história do Holocausto (mas tão presente e angustiante), esse momento da história tão horrível que é sempre reconhecível em que o impossível se fez real.
«Os dias sucederam aos dias, os comboios aos comboios. Nos vagões selados agonizava a humanidade. E a humanidade fazia de conta que não sabia.» (pág. 91)
O autor Jean-Claude Grumberg é um conhecido dramaturgo, nasceu em França em 1939, e assistiu ao momento em que o pai foi levado pelos nazis para o comboio que tinha como destino o seu extermínio, assim como o de um número assombrosamente incontável de judeus. Este livro publicado pela Dom Quixote, com formato de bolso e tradução de Luísa Benvinda Álvares, finalista de vários prémios literários e a ser adaptado a filme de animação, deve ser lido em todas as idades. Ver artigo
Já tinha visto a 1.ª temporada quando saiu. E já tinha sido avisado, assim como lido algures por aqui, que a 2.ª temporada tinha um final de arromba além de ser das melhores séries da actualidade. Claro que uma afirmação destas peca por efemeridade, uma vez que dentro de alguns meses há sempre novas séries que se impõem. Mas sim, é verdade. Succession, série da HBO, é uma excelente série. Retrata a vida dos Roy, aquele 1 % a que uma grande parte dos outros 99 % pretende ou fantasia chegar, com a sobriedade e um certo voyeurismo de reality show – a forma como a câmara por vezes se foca, tremida, atabalhadoamente, nas personagens, despindo-as para o espectador mais atento, revelando-as num esgar, num relance súbito. Um crescendo lento, em dez episódios de uma hora, em que um pai temperamental e tempestuoso se desvela em frieza e ambição. Uma Holly Hunter, frágil e delicada, com um humor irreverente, como um passarinho pousado nesse rinoceronte que é Brian Cox, numa excelente representação de um Midas sem coração. 4 filhos, quase todos perfeitos inúteis, mas com um senso absoluto de triunfo e desdém. Um deles, passa pela segunda temporada inteira como um zombie, um ser catatónico, que parece sempre à beira do abismo e pronto a saltar ou a disparar sobre todos. Kendall Roy, o mais sensível, o mais vulnerável – e talvez daí as suas dependências, pois é cocainómano; como escape, como compensação química a um amor que a mãe (que também entra em cena por breves momentos) se revela incapaz de partilhar (na cena em que mesmo quando não vê os filhos ao longo de anos evita ficar e ouvir o filho que claramente precisa de conforto, de desabafar, de algum afecto). Se observarmos a própria foto do cartaz da série podemos perceber como o que parecem veios na mesa de mármore são rachas, que se estendem como uma árvore genealógica.
O final, honestamente, não me surpreendeu completamente. Até porque os símbolos, as pistas, estavam lá – os elementos míticos, do sacrifício do filho pelo pai; os elementos religiosos, inclusive, com um beijo dado na face como despedida… Brilhante. E mais não digo. Agora vou voltar aos bilionários, com a série Billions, que tem a feliz surpresa de contar com Julianna Margulies no elenco, ao lado do Paul Giamati. Mas sobre isso falarei depois. Ver artigo
A segunda obra de Eleanor Catton, Os Luminares, publicada pela Bertrand Editora, confirmou o seu talento ficcional, que arriscou com um livro denso de 888 páginas, cuja originalidade foi reconhecida com o Man Booker Prize 2013, e faz de si a mais jovem autora de sempre a receber o prémio, ao que acresce que o prémio foi conferido ao romance mais extenso até à data. Ver artigo
Sete Casas Vazias, de Samanta Schweblin, da Elsinore, é um pequeno livro de contos, tão breves quanto tensos, deixando o leitor com o coração na boca. Sete contos, a condizer com o título, que pouco parecem ter em comum, não fosse o vazio destas personagens, confinadas às suas pequenas casas, enredadas nos seus muros de insegurança. Mas mesmo entre quatro paredes, nessas casas onde «com apenas três passos largos atravesso a sala, saio de casa e fecho a porta» (p. 112), estas personagens, mulheres, raramente se sentem seguras. Nessas sete casas vazias, despidas de sentimento, apesar dos objectos, dos móveis, das estantes e louceiros arrumados nos seus lugares, atravancando as vidas de quem ali dorme. Quarenta centímetros quadrados de espaço para viver, pois quando as casas são demasiado grandes perde-se o controlo sobre elas, essas casas despojadas de emoções e vibrações humanas, onde a vida é absorvida numa voragem e se cava um abismo profundo como a morte. Vidas vazias de quem não tem sequer alguém para quem morrer, de seres cuja existência nem enche uma caixa. Essas habitações vivas com a sua própria respiração, onde o vazio ressoa como um vácuo e ameaça tragá-las: «ouviu um som rouco atrás de si. Silencioso, mas percetível para ela, que estava alerta e conhecia o seu espaço. Voltou a ouvi-lo, desta vez vinha do teto, e ouviu outra vez, muito mais perto, rodeando-a totalmente. Ia e vinha, como um ronco áspero e profundo, como a respiração de um grande animal dentro de casa.» (p. 87) O seu estado, esse «insólito estado de alerta» (p. 112) que atravessa as personagens, é também o sentimento com que o leitor vira as páginas, quase a medo, pois predomina, conto a conto, um «receio que alguma coisa se quebre irremediavelmente» (p. 117). Sete narrativas cuja intriga é sempre enigmática, insólita, quase nunca clarificada.
Samanta Schweblin, cujos livros de contos e romances estão publicados na Elsinore, nasceu na Argentina, em 1978, e é uma das vozes mais originais da literatura contemporânea em língua espanhola. Sete Casas Vazias e Pássaros na Boca (2018) venceram prémios internacionais como Casa de las Américas e Juan Rulfo, e em 2017 esteve entre os finalistas para o Prémio Internacional Man Booker com o romance «Distância de Segurança» (2017), a ser adaptado a série pela Netflix. Ver artigo
Elogio do Amor, de Alain Badiou e Nicolas Truong, publicado pela Edições 70, chancela das Edições Almedina, é aquilo que o próprio título revela: uma elegia do amor. E cumprindo o espírito dos primórdios da filosofia, conforme aos diálogos socráticos, este elogio ao amor surgiu sob a forma de uma conversa pública, pois o texto do livro reelabora o discurso do autor proferido em Julho de 2008, no âmbito do Teatro das Ideias, um ciclo de encontros intelectuais e filosóficos do Festival de Avinhão. A discussão filosófica aqui reproduzida corre com a espontaneidade e clareza de um diálogo entre amigos, e bebe da energia complexa e profunda de uma conversa que brota entre a mente de dois intelectuais: Alain Badiou, licenciado em Filosofia, um dos fundadores da Faculdade de Filosofia da Universidade de Paris VIII com Gilles Deleuze, Michel Foucault e Jean François Lyotard, e Nicolas Truong, interrogador-sábio e jornalista (dirige a secção «Ideias – debates» do jornal Le Monde), e organizador do Teatro das Ideias.
Alain Badiou cita Platão, defendendo que «quem não começar pelo amor nunca saberá o que é a filosofia», até porque, como se sabe, o sentido etimológico da palavra Filosofia é amor à sabedoria.
A definição de amor permanece fugidia e ilusória. Curiosamente, a conversa do autor inicia pela noção enganosa de que seja possível um amor seguro, sem riscos, como acontece com certas redes sociais que prometem a união perfeita entre pessoas com o mínimo de dor e de desilusão. O autor defende então como o amor vive do acaso e de encontros fortuitos, sendo «aquilo que dá intensidade e significado à vida» (p. 16), pelo que uma pesquisa cuidadosa na internet em demanda do parceiro perfeito é tão passível de resultar como quando um país anuncia uma guerra sem mortos. Parece extrema a comparação entre amor e guerra (ainda que não seja inédita), mas para este filósofo compete também à filosofia manter a necessidade de um amor em que o risco e a aventura se reinventam, pois só isso traz sentido à vida e à milagrosa união entre duas pessoas. Se a sexualidade é egoista e solitária – mesmo que implique vislumbrar no corpo do outro a ideia do Belo –, o amor concentra-se sobretudo nesse outro, tal como ele nos aparece, invadindo-nos o ser, reformulando e subvertendo a nossa vida: «o que é o mundo quando o experienciamos a partir de dois e não a partir de um? O que é o mundo, analisado, praticado e vivido a partir da diferença e não a partir da identidade?» (p. 29) Ver artigo
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