O livro recentemente lançado de Teolinda Gersão, O regresso de Júlia Mann a Paraty, autora publicada pela Porto Editora, celebra os seus 40 anos de vida literária, em simultâneo com a publicação da 7.ª edição da colectânea de contos A mulher que prendeu a chuva e outras histórias.
Este pequeno grande livro compõe-se de três novelas que se entrecruzam, de modo surpreendente, e que parecem ressoar o período em que Teolinda Gersão foi leitora de português na Universidade Técnica de Berlim (a autora viveu três anos na Alemanha), e professora catedrática da Universidade Nova de Lisboa onde ensinou Literatura Alemã e Literatura Comparada.
(…)
O virtuosismo na arte da novela de O regresso de Júlia Mann a Paraty reside sobretudo na forma como assenta em cartas, diálogos mudos que se estabelecem com interlocutores ausentes, como Mann que escreve a Freud em pensamento e vice-versa, ou na forma como Júlia escreve mentalmente ao pai cartas nunca enviadas. Virtuosismo narrativo que culmina num volte-face, presente e insinuado, mas revelado apenas no final. Ver artigo
Zalatune, o mais recente livro de Nuno Gomes Garcia, publicado em Janeiro deste ano pela Manuscrito (Grupo Editorial Presença), é um thriller de fôlego capaz de prender o leitor mais renitente – pois é certo que nos dias que correm nem sempre é fácil termos a concentração necessária à leitura.
Apesar de correr o ano não muito distante de 2034, e de o cenário ser Ínsula, ilha insulada algures no Mediterrâneo, de onde se avista por vezes o continente meridional, há diversos pontos de ligação com a actualidade que tornam este livro menos uma distopia do que um mundo possível terrivelmente próximo: Ínsula foi o único país do planeta a sobreviver a uma pandemia em 2029 que dizimou os mais velhos; a ilha confinou-se ao mundo assim que se percebeu que o povo era imune; a procriação é uma missão patriótica e as relações homossexuais são crime; reinstaurou-se a pena capital; os estrangeiros que vêm do Sul são inimigos; os refugiados que conseguem aportar à ilha (sem serem exterminados no mar) são colocados em «campos de acolhimento» quando, na verdade, se preparam para serem tomados como escravos em troca do acolhimento prestado; o Primeiro-Ministro governa numa espécie de Big Brother, em que toda a sua vida é filmada; cada decisão política que urge é tomada pela população com base num referendo; a Internet foi substituída por uma Intranet; prepara-se, por fim, a construção de um muro protector que proteja a ilha de novas invasões.
Ínsula configura assim uma espécie de alegoria de tudo o que vai mal no mundo: «Se Deus não estivesse morto e enterrado, dir-se-ia sermos o povo eleito.» (p. 198)
A narrativa é construída de modo bastante cinematográfico, com algumas personagens centrais, cuja vida nos vai sendo desvelada em analepses que alternam com o ritmo da acção que se torna cada vez mais tenso, até que, a partir de metade do livro, o mistério adensa-se ainda mais quando a ilha começa a sacudir-se e um a um os habitantes da ilha começam a desaparecer, volatilizando-se no ar, o que relembraria a trama da série The Leftovers (HBO), não fosse o facto de cada uma destas pessoas parecer partir num acto consciente e de vontade plena, deixando antes um bilhete: «Parti para Zalatune».
Nuno Gomes Garcia nasceu em Matosinhos em 1978, estudou História e foi arqueólogo. Vive em Paris, onde é consultor editorial e divulgador da literatura lusófona na rádio e na imprensa escrita. Ver artigo
1984, de George Orwell, foi publicado pela Livros do Brasil na colecção Dois Mundos em simultâneo com a Quinta dos Animais. Dois clássicos fundamentais agora reeditados por uma boa parte das grandes editoras (a capa da Porto Editora conta ainda com ilustrações de Vhils), assinalando a entrada da obra de Orwell em domínio público, que procuram novos leitores ou simplesmente uma releitura, uma vez que parece ter chegado o tempo das distopias, entre pandemia, desgovernação, novas tecnologias, e a ascensão de regimes neofascistas. Note-se que logo em 2017, com a eleição de Trump, as vendas de 1984 (originalmente publicado em 1949) dispararam.
Winston Smith, de 39 anos, é um funcionário do Ministério da Verdade cuja função é reescrever a História. Vive em Londres, a principal cidade de Pista Um, terceira província mais populosa da Oceânia, onde a filosofia dominante é o Socing. O mundo está dividido em três grandes superestados, Oceânia, Estásia, Eurásia, em guerra permanente há 25 anos.
Corre o ano de 1984, se bem que Winston não tem já a certeza, pois ao reescrever a História falsifica-se todo o passado e apesar de ele próprio contribuir para tal não tem como o provar: «Todos os registos foram destruídos ou falsificados, todos os livros foram reescritos, todos os quadros foram repintados, todas as estátuas e ruas foram renomeadas, todas as datas foram alteradas. E esse processo continua, dia após dia, minuto após minuto. A história parou. Nada existe a não ser um presente sem fim no qual o Partido tem sempre razão.» (p. 160)
A reescrita da verdade, aliada à ideia de se viver numa guerra permanente, permite a uma sociedade completamente hierarquizada, descendente dos antigos regimes totalitários, manter a sua estrutura intocável. Os habitantes da Oceânia, cuja vestimenta foi em tempos uma farda dos trabalhadores manuais, vivem na pobreza e ignorância, o que se tornou fácil com a manipulação da ordem pública pela imprensa e uma vigilância permanente por parte do Grande Irmão, figura que parece viver nos telecrãs omnipresentes que tudo registam e tudo emitem, num escrutínio que parece até capaz de ler pensamentos. Por isto, acções simples como Winston registar os seus pensamentos num diário ou amar Julia revelam-se actos criminosos:
«Antigamente, pensou, um homem olhava para o corpo de uma mulher e sentia desejo, ponto final. Mas, hoje em dia, não era possível ter um amor puro, nem desejo puro. Nenhuma emoção era pura, porque estava tudo misturado com medo e ódio. O abraço tinha sido uma batalha, o clímax uma vitória. Tinha sido um golpe contra o Partido. Tinha sido um ato político.» (p. 131) Ver artigo
Uma Paixão Simples, de Annie Ernaux, com tradução de Tereza Coelho, publicado na coleção Miniatura da editora Livros do Brasil, é um pequeno mas controverso livro de 72 páginas, uma narrativa que quebra os estereótipos do romance sentimental, adaptada ao cinema por Danielle Arbid.
Depois de ter ficado surpreso e maravilhado com a técnica narrativa da autora em Os Anos, publicado também em 2020 pela Livros do Brasil (talvez um dos melhores livros do ano passado, e apresentado no Postal do Algarve), li este livro com expectativa.
A história de uma mulher culta, independente, divorciada, com filhos adultos, que vive numa completa suspensão a viver uma paixão cheia de regras (que a si própria impõe), à espera dos momentos livres de um homem casado, estrangeiro, mais jovem (quando o reencontra, finda a paixão, ele terá então 38 anos): «Tudo era uma carência interminável, a não ser o momento em que estávamos juntos a fazer amor. E, além disso, obcecava-me o momento seguinte, em que ele se ia embora. Vivia o prazer como uma dor futura.» (p. 41)
Podemos supor que a narradora escreve como se dirigisse uma carta a um eu mais jovem, sem admoestar ou zombar a sua cegueira de então, mas na verdade, naquele que parece ser um texto assumidamente autobiográfico tão honesto quanto intenso, ela escreve para reviver essa mesma paixão pois quando começou a escrever era «para continuar nesse tempo» (p. 55). Da mesma forma que ao vivê-la tinha a impressão de estar «a escrever um livro, a mesma necessidade de não falhar nenhuma cena, a mesma preocupação com todos os pormenores» (pp. 17-18). Uma paixão que pode ser simples, mas nem por isso menos plena de significado ao ponto de nela se consumir: «E até pensei que não me importava de morrer depois de ter ido até ao fim desta paixão – sem dar um sentido preciso a «até ao fim» -, da mesma maneira que poderia morrer depois de ter acabado de escrever isto, daqui a uns meses.» (p. 18)
Para esta narradora, corajosa e contida, não se trata de «explicar» a sua paixão, mas de «expô-la», advertindo o leitor de que «é um erro comparar aquele que escreve sobre a sua vida com um exibicionista, porque um exibicionista só quer uma coisa, mostrar-se e ser visto no mesmo instante» (p. 37). Mas escrever, ainda que não o assuma plenamente, vai além de um acto egoísta e privado, e é também uma forma de comunicar com o mundo: «Pergunto a mim própria se não escrevo para saber se os outros fizeram ou disseram coisas idênticas, ou então para eles acharem normal sentir essas coisas. Ou mesmo para que as vivam, esquecendo-se de que leram aquilo um dia em qualquer parte.» (p. 59)
E a autora-narradora está ciente do que publicar este texto implica: «Quando eu começar a passar este texto à máquina, e ele me aparecer em caracteres públicos, a minha inocência acabou.» (p. 63) Ver artigo
O terceiro volume da tetralogia publicada pela Dom Quixote José e os seus irmãos, intitulado José no Egito, de Thomas Mann, retoma, sem pausas nem saltos temporais, a narrativa do volume anterior, no ponto em que ficámos, momentos depois de José ser socorrido do fundo do poço em que os irmãos o deixaram para morrer durante dias. Ver artigo
Num período em que o mundo vive novo confinamento, com uma vaga ainda mais avassaladora de casos, e em que eu, pessoalmente, estou fechado numa casa estranha a cumprir a quarentena requerida àqueles chegam de viagem, com quase nenhum contacto com o mundo exterior (a não ser o virtual), este livro não podia ter chegado em melhor altura. Imagine: Relatos de um tempo estranho, atípico e extraordinário, publicado pela Arranha-céus (editora chancela da abysmo), é um livro feito por pessoas que nasce da partilha de testemunhos online entre amigos e clientes da Mercer Portugal sobre como foi vivida a pandemia, o que mudou e moldou a nossa vida, assim como a nossa forma de trabalhar. Esta ideia nasceu de um momento de partilha durante as noites de confinamento instituído em março de 2020 em que a Mercer “juntou” por Zoom amigos e conhecidos, em grupos de 5 a 7 pessoas para, em tom informal e descontraído, falarem sobre si e as suas experiências. Estas conversas decorreram às «5 para as 10 da noite» com o requisito obrigatório de se fazerem acompanhar por um copo de vinho e culminam neste livro que reúne 28 testemunhos de profissionais das áreas de Recursos Humanos, Marketing e Direcção de empresas, isto é, «Pessoas de Pessoas» (p. 41) das mais diversas áreas, como a hotelaria, seguradoras, banca, ensino, etc.
De março a agosto viveu-se a Guerra do Medo, como escreve Diogo Alarcão (CEO da Mercer Portugal), inclusive Medo do Futuro, pois «esta guerra que nos surpreendeu em 2020 tem esta capacidade de destruir parte das nossas certezas sobre o amanhã» (p. 16).
Um testemunho com base em 6 meses de pandemia e confinamento, sem ser técnico pois é sobretudo baseado na vivência pessoal permite desvelar como o mundo (as empresas, as pessoas) aprendem a reinventar-se para poder prosseguir. Ana Guimarães, dá-nos alguns exemplos disso mesmo, de como a empresa procurou proteger os seus, alterando a dinâmica do trabalho em equipa (mais “emocional”, mais conciso) e oferecendo-lhes soluções viáveis num tempo em que as certezas ruíram e o mundo deixou de ser redondo. Mas o importante é compreender que a vida é sobretudo mudança, e «mudar não é um drama», ou não deveria ser, mesmo quando temos de aprender a tentar ver o sorriso das pessoas nos olhos, pois nestes «tempos de máscara (…) anulando o sorriso, onde fica uma das maiores expressões humanas?», pergunta-nos Ricardo Aguiar (p. 37).
«Esta partilha é escrita a pensar nos netos» (p. 31), como afirma Teresa Nascimento, e também apresenta caminhos possíveis num tempo em que casa e escritório se tornaram uma «mistura agridoce» (p. 26), nas palavras de Paula Carneiro, ao mesmo tempo que muitos de nós, obrigados a parar, aprenderam a valorizar o tempo, sempre escasso porque muitas vezes não sabíamos como efectivamente o viver. E o tempo revela-se agora tanto mais rentável quanto mais criativos e imaginativos nos (re)criamos.
Numa história que ainda não acabou, espera-se um impacto brutal a nível económico, humano, social, com este vírus «anti-humano» ou «antitoque» (p. 38) que se propaga à mesma velocidade com que conduzíamos os nossos segundos de vida, mas sobrevivem algumas certezas, como a de que a nossa união permite vislumbrar um horizonte. As últimas páginas do livro mostram-nos, em números e imagens, o que mudou no mundo e no país, além de conter citações pertinentes de algumas personalidades.
Fechamos com as palavras do prefácio de Diogo Alarcão: «acredito que muitos leitores se irão rever nestas partilhas e já que estamos a voltar ao confinamento também aprender com elas. Este livro servirá também para avaliarmos se o que pensávamos e defendíamos em 2020 vai acontecer de facto: os modelos híbridos ficaram para durar? As empresas tornaram-se mais humanas? A comunicação foi elemento chave para o processo de transformação organizacional? Os investimentos na saúde e bem-estar tiveram um incremento significativo?» Ver artigo
Um Tambor Diferente, de William Melvin Kelley («o gigante esquecido da literatura americana»), a ser traduzido e reeditado um pouco por todo o mundo, foi editado pela Quetzal Editores em Portugal, com tradução e prefácio de Salvato Teles de Menezes. É o primeiro romance deste escritor afroamericano, publicado em 1962 quando William Melvin Kelley tinha apenas cerca de 23 anos, e que o equiparou a autores como Faulkner. Esse é outro dos aspectos curiosos do livro, cuja publicação original remonta há sessenta anos: não só a temática é claramente actual e oportuna, como a prosa ágil e envolvente tem um toque moderno e original. Thomas Merton afirmou: «é mais do que um brilhante primeiro romance de um jovem escritor negro. Trata-se de uma parábola que estuda algumas das profundas implicações espirituais da luta dos negros por direitos civis completos e por um estatuto humano integral no mundo de hoje».
O livro inicia quando tudo já terminou, para depois nos conduzir a um passado em que uma história pode ter forjado uma lenda, no instante em que um negro desembarca de um navio de escravos. Dewitt Willson que tinha ido tão somente esperar um relógio que vinha da Europa, apesar de se saber que dá azar transportar objectos em navios negreiros, fica obcecado quando vê o Africano, um negro possante como Sansão, cujos bramidos conseguem expandir os costados do navio. Willson compra o Africano por mil dólares mas este consegue fugir, com um bebé debaixo do braço, tornando-se o protector de outros escravos. Mas Dewitt Willson não descansará enquanto não o capturar.
Gerações depois, os habitantes de Sutton assistem à chegada de um camião que transporta sal para a casa de Tucker Caliban, descendente do Africano. Depois de salgar a terra e destruir um relógio, Tucker deita fogo à sua propriedade e parte com a mulher. Sucede-se, seguidamente, que todos os negros de Sutton, num êxodo massivo, começam a partir em autocarros, comboios e carros.
Todos estes acontecimentos, aparentemente desconexos, são narrados numa certa inversão cronológica, através da perspectiva de diversas personagens – homem, mulher, criança –, todas elas brancas. Entre a tensão dialógica das várias vozes que nos dão conta da intriga, destaca-se o ponto de vista de uma criança, o Senhor Leland, que se torna fundamental para a narrativa, e que é reconhecido pelos negros por estar a ser educado para um ser humano decente…
O ano ainda agora começou mas talvez não se peque por excesso ao afirmar que este é provavelmente um dos grandes livros deste ano. Não por aquilo que se escreveu já sobre o livro, e que pode ser lido na sinopse e comentários, mas pela sensação que se tem logo ao começar o livro: o maravilhamento de uma história de outros tempos que se torna lenda, a elegância da prosa, a trama bem urdida em que se revelam estranhos fenómenos que só gradualmente iremos compreendendo como se encadeiam. Ver artigo
As Mulheres da Minha Alma, de Isabel Allende, publicado simultaneamente pela Porto Editora e pelo Círculo de Leitores em Novembro de 2020, com o subtítulo Sobre o amor impaciente, a vida longa e as bruxas boas, é o mais recente livro de Isabel Allende, pouco menos de um ano depois do seu retorno à ficção histórica em Longa pétala de mar, poderoso romance ao nível dos melhores livros da autora. Isabel Allende tem agora quase 80 anos, mais de 20 livros publicados, cerca de 70 milhões de exemplares vendidos um pouco por todo o mundo e é a autora de língua espanhola mais lida.
Este não é o primeiro livro de não-ficção da autora, mas é certamente dos mais complexos, construído num palimpsesto. Apesar de começar com um tom memorialista, num registo autobiográfico da infância à idade madura, converte-se depois num manifesto feminista, onde não faltam números, estatísticas, citações, situações experienciadas em primeira mão e dados preocupantes que revivificam a jornalista que Isabel Allende era antes de se dedicar à escrita por inteiro. Allende criou aliás uma Fundação destinada ao empoderamento das mulheres e meninas de alto risco com as receitas provenientes do livro Paula, uma memória e uma carta de celebração da vida da sua filha – não lhe podemos chamar despedida pois para Allende a sua filha Paula, tal como outros espíritos amigos, nunca partiu completamente.
Este livro, escrito para as suas leitoras, é também uma declaração de amor para essas mulheres extraordinárias que compuseram a sua vida – Paula, a agente literária Carmen Balcells, a mãe Panchita – e que nós já conhecemos tão bem como as suas personagens de papel, como a omnipresente Eliza Sommers (heroína de Filha da Fortuna), além de outras mulheres cuja vida tem sido dedicada a tornar o mundo um lar para todas as mulheres, e ainda escritoras companheiras de percurso que Allende vai evocando e citando, como Margaret Atwood ou Virginia Woolf. Mas além do feminismo este é também um livro sobre envelhecer com graciosidade e sobre o amor, mesmo em tempos de pandemia. Ver artigo
O Último Verão de Klingsor, de Hermann Hesse, publicado pela Dom Quixote em Junho de 2020 com tradução de Patrícia Lara (a partir da edição mais antiga da Guimarães), foi escrito pouco depois do fim da I Grande Guerra e narra o último verão da vida de um famoso pintor, Klingsor, que vive uma explosão final de criatividade.
A julgar pela capa com base num quadro de Van Gogh, percebemos que Klingsor é um pintor expressionista, e ao longo desta narrativa, nem sempre linear, desfila a reflexão de uma vida vivida no extremo. Se bem que é, ainda assim, superado pelo seu velho amigo (e alter ego?) Louis, o Cruel, «o viajante, o imprevisível, que vivia no comboio e tinha uma mochila como atelier».
«Só pintamos por faute de mieux, meu caro. Se tivesses sempre no colo a rapariga que te agrada de momento e a sopa que te apetece no prato, não te incomodarias com esta brincadeira infantil e disparatada. A natureza tem milhares de cores, e nós metemos na cabeça reduzir a escala a vinte. A pintura é isto. Nunca se está contente, e ainda por cima temos de ajudar a sustentar os críticos.» (p. 21)
O livro tem laivos autobiográficos, pois Hesse começou a pintar por volta de 1917 e este livro é escrito dois anos depois, no Verão de 1919, quando o autor se instala numa aldeia nas montanhas para iniciar uma nova fase, sem a família, provavelmente, tal como o protagonista do livro, a viver um «amor serôdio de um quarentão por uma rapariga de vinte anos» (p. 38). Além disso, um pormenor curioso e de somenos relevância, também Li Tai Pe, outra personagem que parece ser, afinal, mais um alter ego do protagonista, nasceu a 2 de Julho tal como Hermann Hesse (e que é também o meu dia de aniversário). Conforme se pode ler na badana do livro, uma das personagens, Hermann, o poeta, pode ainda ser confundido com o próprio autor, e Louis por Louis Moilliet, um artista seu amigo.
Um romance breve e incontornável de um dos autores que mais aprecio, e que tal como outros livros de Hesse narra o percurso singular de uma vida eivada de espiritualidade e conhecimento, como Demian, Siddhartha ou Goldmundo. Ver artigo
Já está no ar a adaptação a mini-série do livro A Vida Mentirosa dos Adultos, de Elena Ferrante, com tradução de Margarida Periquito e publicado pela Relógio d’Água. Esta leitura foi um agradável regresso a Ferrante. Apesar de ter comprado a tetralogia logo quando começou a ser badalada, fiquei-me apenas pelo primeiro volume – estou actualmente suspenso a meio do segundo volume, pois retomei a leitura da saga napolitana quando estreou a segunda temporada da série da HBO que também ainda não terminei.
«Dois anos antes de sair de casa, o meu pai disse à minha mãe que eu era muito feia» é a frase inicial deste romance e é nela que se encerra quase toda a trama do livro.
Giovanna, protagonista e narradora, tinha uma boa relação com os pais, até ao momento em que por acidente ouve o pai dizer à mãe que a filha está a ficar com a cara da Tia Vittoria. Primeiramente, a reacção inicial de Giovanna será descobrir quem é afinal a Tia Vittoria que nunca viu, mas limita-se a descobrir fotos riscadas. Depois disso, a narrativa corre numa espiral ascendente (descendente?) que é, afinal, a perda da inocência da jovem Giovanna e a sua entrada na plena adolescência. E quando finalmente entra na zona pobre de Nápoles, nunca antes frequentada, e a tia lhe abre a porta, a verdade sobre Vittoria não é afinal aquela se esperava.
«Esta foi a última etapa da longa crise da minha casa e, ao mesmo tempo, um momento importante da fatigante aproximação ao mundo adulto. Soube (…) que era impossível parar de crescer.» (p. 234)
E conforme continua a crescer, a desvendar os segredos e mentiras dos adultos, a começar pelos dos pais, correndo aliás o risco de assumir o papel da tia ao trair a sua melhor amiga quando se apaixona pelo namorado desta, Giovanna passa a mover-se entre duas famílias, conforme a sua própria família se desagrega, e deambula entre duas zonas da mesma cidade, cujos habitantes não se “tocam”, em busca da sua própria identidade, na passagem da adolescência para a idade adulta, ao mesmo tempo que percebe que entrar na idade adulta é afinal incorrer num mundo de ilusões, de conveniências, e de enganos. Só a sua Tia Vittoria, uma criada, uma mulher espampanante, sem tento na língua, e com uma personalidade digna de um furacão, parece manter-se igual a si mesma.
Este livro é uma verdadeira viagem e a prosa de Ferrante agarra-nos desde a primeira frase. A mim deu-me foi vontade de regressar à Amiga Genial e parar de adiar a leitura dos restantes volumes.
«O tempo da minha adolescência é lento, feito de grandes blocos cinzentos e inesperadas gibosidades de cor verde, vermelha ou roxa. Os blocos não têm horas, dias, meses, anos, e as estações são incertas, está calor e frio, chove e faz sol. (…) De resto, o próprio colorido que certas emoções adotam é de duração irrelevante, quem escreve estas linhas sabe-o. Assim que procuras as palavras, a lentidão transforma-se em vórtice e as cores confundem-se, como as de diferentes frutos numa batedeira. Não só «passou o tempo» se torna uma expressão vazia, como também «uma tarde», «uma manhã», «uma noite» passam a ser indicações oportunas.» (p. 219) Ver artigo
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