Lyra Silvertongue, outrora Lyra Belacqua, é conhecida no mundo dos espíritos. Ao contrário do mundo de Harry Potter não há uma profecia ou uma cicatriz distintiva, mas Lyra Silvertongue é reconhecida e demarca-se no mundo em que se move, com o novo nome que lhe foi concedido por Iorek Byrnison, rei dos ursos. Numa Inglaterra entre o clássico e o fantástico, Lyra, agora uma estudante em Oxford, ainda sem saber tudo aquilo que enreda o seu destino pouco comum, vê-se obrigada a partir agora em direcção ao deserto, em demanda do que lhe é mais precioso… Num mundo que é tão familiar como extraordinário, onde hordas de refugiados tentam chegar à Europa enquanto o mundo parece entrar em guerra por uma questão de rosas, pois há fundamentalistas que acreditam que os óleos e perfumes agradam ao Diabo e ofendem a Deus, a jovem Lyra persegue a miragem de uma cidade habitada apenas por génios e pretende desvendar o mistério do Pó.
Philip Pullman, nascido em Norwich, Inglaterra, em 1947, foi catapultado para o sucesso em 1995 com Mundos Paralelos (His Dark Materials no original), trilogia constituída pelos volumes Os Reinos do Norte, A Torre dos Anjos e O Telescópio de Âmbar, publicados pela Editorial Presença e relançados com novas capas em 2018, quando o autor decidiu regressar a este fantástico universo com La Belle Sauvage, primeiro volume da nova série intitulada O Livro Do Pó. O que surpreendeu na nova trilogia foi a acção reportar ao período em que Lyra era apenas bebé, sendo portanto anterior às aventuras de Mundos Paralelos, além de que se previa que os próximos livros poderiam saltar para outro tempo distinto. O leitor abre então a medo o Volume 2 de O Livro do Pó: A Aliança Secreta, sabendo que a intriga se situa agora quando Lyra tem 20 anos. Mas rapidamente se percebe que Philip Pullman consegue a dupla proeza de contar uma história tão cativante quanto imaginativa ao mesmo tempo que pega em algumas pontas soltas das narrativas anteriores. Reencontramos assim o jovem Malcolm de La Belle Sauvage, que aos 11 anos salvou Lyra num barco, agora com 30 anos, ainda um protector bem como um espião, como ainda ficamos a saber que a vida de Lyra e do seu génio Pantalaimon tem sido muito pouco pacífica desde a sua aventura, 10 anos antes, no Ártico, numa luta contra o mal que envolveu feiticeiras, espectros, crianças ciganas e ursos blindados.
Esta saga, traduzida em mais de 40 línguas, com vendas superiores a 18 milhões de exemplares, foi selecionada uma das 100 melhores obras de todos os tempos pela revista Newsweek. Houve uma adaptação cinematográfica com o título A Bússola Dourada que não teve o sucesso que se esperava. Entretanto a HBO e a BBC lançaram uma série que readapta, mais fielmente, os livros. His Dark Materials vai agora na segunda temporada – referente ao segundo volume da primeira trilogia – que estreou justamente esta semana.
Esta narrativa imaginativa, numa prosa límpida e erudita, agarra o leitor sem abrandar o ritmo por mais de 500 páginas, num livro que consegue a fabulosa proeza de apelar a leitores de todas as idades, em que Philip Pullman se revela exímio a contar uma história à criança em nós que queremos manter desperta. O escritor recebeu aliás, entre outras distinções literárias, o Prémio Whitbread, atribuído pela primeira vez a um autor de obras infantojuvenis. A própria linguagem é, por vezes, pouco adequada a crianças, talvez porque Pullman escreve, na verdade, para os leitores dos seus primeiros livros de há cerca de 20 anos, hoje adultos. A Bertrand Editora publicou também, recentemente, Contos de Grimm para todas as idades deste mesmo autor onde Philip Pullman reconta os seus cinquenta contos favoritos dos irmãos Grimm, obra que iremos apresentar em breve. Ver artigo
A Suitable Boy estreou muito recentemente na Netflix, uma série de 6 episódios com uma hora cada, realizada por Mira Nair e produzida pela BBC. É aliás a primeira produção da BBC onde não entra um único actor branco. Esta série adapta o livro Um Bom Partido, de Vikram Seth, publicado entre nós pela Editorial Presença em 3 volumes – embora não se trate verdadeiramente de uma trilogia porque, como era muito habitual em tempos, o que aconteceu foi dividirem o livro original em vários na tradução portuguesa, o que até se compreende visto que cada volume tem cerca de 600 páginas. A série de Mira Nair adapta portanto em 6 horas o equivalente a 1800 páginas – falamos de páginas impressas com um tamanho de letra razoável.
Um bom partido, ou mais adequadamente, A suitable boy, de Vikram Seth (um dos nomes mais representativos da literatura pós-colonial) não pode ser confundido com um romance de cordel. Trata-se de um imenso fresco que por vezes me recorda o Em Busca do Tempo Perdido, talvez pela forma como agarra em vários fios narrativos e diversas personagens que depois vai entretecendo em nós mais apertados. Traça-se assim um amplo retrato da Índia pós-independência a partir da história muitas vezes cruzada de 4 famílias. O autor parece focar-se numa média aristocracia mas o quadro que nos apresenta é cativante, bastante realista, até quando trata de devaneios românticos das personagens, cheio de humor (dei várias gargalhadas com certas passagens) e uma fina ironia. Destaca-se a personagem da jovem Lata, que está em idade de ingressar nos estudos universitários ou, segundo a mãe, em idade de ser rapidamente casada com um rapaz que seja um bom partido, até porque desde a morte do pai de Lata, a sra. Rupa Mehra, tem sempre dependido da bondade de estranhos. O problema é que, entretanto, Lata comete o inimaginável… apaixonar-se por um rapaz sem querer saber o seu apelido. O que leva a catástrofes inimagináveis: o rapaz é muçulmano…
Casamentos prometidos e feitos por conveniência; noivas obedientes que nunca conheceram o noivo; mães de 4 filhos que uma vez perdido o marido ficam sem um lar e vivem da caridade da família, alternando o poiso; jovens que apesar da independência da Índia continuam a idolatrar o regime e a cultura britânica; o sistema de castas; os inomináveis; a influência duradoura de Gandhi; a poesia; a literatura; a política; as leis; as sessões do Parlamento; a reencarnação (ou “Que mal é que eu fiz na minha vida passada para merecer isto?”); os banhos no Ganges que apesar da poluição se acredita lavarem os pecados até à sexta geração de descendentes…
Por vezes perdemo-nos nas personagens, mas além de Lata (interpretada pela jovem estreante Tanya Maniktala) há outras que se destacam, como Maan, o jovem playboy de boas famílias (interpretado justamente por uma estrela de Bollywood, Ishaan Khatter) que se perde de amores por uma cantora e cortesã, prostituta nas horas vagas.
A tradução é cuidada e a tradutora Fernanda Pinto Rodrigues premiada, mas é interessante como o romance é fiel ao original e mantém uma profusão de termos indianos, em hindi e urdu, cujo glossário consta logo do início. Não consultei o glossário ao longo da leitura mas os termos na sua generalidade tornam-se familiares e é possível manter o ritmo da leitura sem desfazer da compreensão da mesma.
Deixo como remate a perspectiva de um inglês sobre o país: «Mas, apesar de tudo, é um povo encantador: lisonjeiro pela frente, caluniador pelas costas, alardeador de nomes sonantes para se dar ares, omnisciente, gabarola, rábula, venerador do poder, empata nas estradas, dado a cuspir para o chão… Em tempos, a minha litania contava com mais alguns títulos, mas esqueci-os.» (pág. 508).
Tem havido diversas críticas à série, como o ser uma visão romântica da Índia típica dos britânicos ou todas as personagens falarem inglês – mas ouve-se de facto urdu e hindi, além de que já o livro, na verdade, foi escrito em inglês. É, além disso, um dos romances mais extensos da língua inglesa. Acusa-se ainda Mira Nair de não fazer um bom filme desde o Casamento debaixo de Chuva ou O Bom Nome (2006), igualmente adaptado de um livro, de Jhumpa Lahiri, ou A Feira das Vaidades (2004), com Reese Witherspoon, e que eu particularmente adoro, justamente pela forma como cruzava o classicismo britânico, frio e formal, com o exotismo indiano. Por falar nisso, a banda sonora de Alex Heffes e Anoushka Shankar traz-nos o usual som do sitar. Pode não ser o retrato pós-colonial da Índia que se desejaria, mas não deixa de ser entretenimento deslumbrante e culturalmente rico, ainda que, como sempre, a série não consiga fazer justiça ao livro, cuja trama é tão complexa quanto cativante. Ver artigo
Tempos Duros, de Mario Vargas Llosa, publicado pela Quetzal, é um thriller histórico e político que se demarca bastante dos livros mais recentes deste autor, configurando um regresso aos temas dos seus livros mais importantes, apresentando episódios e singularidades da vida da América Latina.
O novo romance do escritor peruano, nascido em 1936, Prémio Nobel da Literatura em 2010, decorre na Guatemala, em 1954, e assume maioritariamente a natureza de uma reconstituição histórica, traçando o golpe militar orquestrado pelos Estados Unidos, através da CIA, que conduziu à queda do governo reformista eleito. Ao compor livremente esta recriação ficcional, com personagens que muitas vezes se fundem com figuras históricas, ainda que a narrativa assuma sobretudo um carácter documental, Vargas Llosa mostra como a verdade foi sacrificada, pelo que este romance é, tão somente, o recontar da história que já era, em si, uma ficção, uma mentira capaz de mudar o rumo de um país e de todo o continente da América Central. Tudo por uma questão de bananas.
A United Fruit, companhia que nos anos 50 estende a sua rede pelas Honduras, Guatemala, Nicarágua, El Salvador, Costa Rica, Colômbia e várias ilhas das Caraíbas, produzirá mais dólares que a maioria das empresas dos Estados Unidos e até mesmo do resto do mundo. Conhecida como a Fruteira, ou com a alcunha de «o Polvo» em toda a América Central, Gabriel García Márquez já nos dava uma ideia da sua acção determinante na América Latina numa passagem de Cem Anos de Solidão – onde se narra um massacre. E uma das ameaças à Fruteira é justamente a alegada influência que a União Soviética tem na Guatemala, cujo governo democrático estaria infiltrado por comunistas que pregam contra a propriedade privada, o pan-americanismo, o mercado livre…
Ao longo do livro, Vargas Llosa traça como os tentáculos de uma conspiração, manietada de forma por vezes bastante desajeitada por um embaixador norte-americano, apertam o cerco a Jacobo Árbenz, presidente moderado e democraticamente eleito, que será destituído sob ameaça de um golpe militar (ao jeito latino-americano), acusado de encorajar o comunismo soviético na Guatemala. Para, por fim, quando se reconhece que afinal ele não tinha sido comunista, mas tão somente vítima de uma «publicidade reivindicatória», «um homem incauto e bem-intencionado que só quis trazer o progresso, a democracia e a justiça social ao seu país» (p. 283), os Estados Unidos, incomodados com a campanha internacional desencadeada contra Washington, tentam que esta história seja rapidamente esquecida. Ver artigo
Sempre Estrangeira, de Claudia Durastanti, finalista do Prémio Strega, publicado pela Dom Quixote, com tradução de Vasco Gato, é «a história de uma educação sentimental contemporânea, desorientada pelo passado e pela consciência das diferenças físicas, das distinções sociais, da pertença a um lugar»:
«A incapacidade de fazer coisas que deveríamos saber fazer, a impossibilidade de ver, sentir, recordar ou andar não é uma exceção, antes um destino.
Todos nos tornamos deficientes, mais tarde ou mais cedo.»
A mãe, a «muda», «pobre coitada», ficou surda em consequência de uma meningite e «aprendeu a exprimir-se através da tortura» que as freiras no colégio lhe infligiam, com uma faca na língua ou a tocar em fios eléctricos, conforme também lhe ensinavam linguagem gestual. «Ao ler os lábios dos outros para decifrar o que estavam a dizer até consumir os olhos e os nervos, ao falar com a sua voz alta e carregada e com os acentos irregulares, parecia simplesmente uma imigrante cheia de erros gramaticais, uma estrangeira.»
O pai nasceu surdo por causa de um susto que a mãe apanhou e nem o ter sido tocado pelo Padre Pio o curou.
Numa narrativa que é também memória, entre Basilicata, em Itália, e Nova Iorque, a autora-narradora redefine a sua vida e, para tal, tem de começar pela infância e adolescência dos pais: «viviam a quilómetros de distância, mas tinham adotado as mesmas estratégias de dissimulação»; «ele era surdo, ela também, e a relação entre eles teria algo de mais íntimo e profundo do que o amor»; «os meus pais encontraram-se por intermédio de reverberações semelhantes às de uma floresta antes de um incêndio (…), uma vibração particular no ar, um alarme invisível a convidar à sobrevivência»; «O amor entre surdos não existe, essa é uma fantasia de ouvintes. (…) A semelhança vem antes de tudo o mais.»
A autora procura entretecer os vários fios narrativos do seu álbum de família, mesmo quando as histórias aqui cristalizadas ganhavam variantes de cada vez que eram contadas, da mesma forma que ela e o pai inventavam “mentiras majestosas” – como ter apanhado pedras da Lua ou pedaços de algodão das nuvens – enquanto parece inclusivamente ir revisitando, fisicamente, os locais por onde essas histórias se escreveram. Até porque esta narrativa, como as demais, representa as mil e uma formas que a arte tem de «resgatar um indivíduo à diferença, e a diferença à solidão».
Nascidos na diferença, os seus pais parecem encontrar no desafio às normas e convenções a sua forma de expressão, sendo cada uma destas vidas muito pouco convencional. Em contraposição, a protagonista deste livro procura «criar uma ordem com a escrita» assim como uma via para a auto-afirmação: «Quando me perguntam quem é que me ensinou a exprimir-me, entre avós imigrantes que usavam uma língua toda avariada e pais que não sabiam corrigir os meus erros de pronúncia, apercebo-me de que a primeira língua que falei foi a da primeira pessoa que amei: o italiano de um rapazinho seis anos mais velho do que eu, melódico e isento de soluços, defendido com obstinação quando ninguém à nossa volta o falava sem uma inflexão carregada, numa região em que o uso do dialeto coincidia com a cidadania. A língua de um adolescente tomada por empréstimo dos telefilmes dobrados em italiano, ainda fresca, ingénua e doce, a voz do meu irmão, que de vez em quando ainda coincide com a minha.»
Claudia Durastanti apresentará este seu romance em Lisboa hoje, terça-feira, dia 3 de Novembro, às 19h00, em conversa com o seu tradutor. Ver artigo
Mumtazz, de Alexandra Lucas Coelho (agraciada com o Grande Prémio de Literatura de Viagens da APE por Cinco Voltas na Bahia e um Beijo para Caetano Veloso), foi publicado pela Caminho. A autora-jornalista-repórter-editora-cronista é convidada por Mumtazz a ver «a sua primeira grande exposição, talvez escrever sobre ela». Ficou para «outra vez» que não chegou em vida… Mumtazz morrerá pouco depois, aos 49, com um cancro no colo do útero, e é cremada em Lisboa, «coberta de flores, entre próximos e poemas». A primeira versão do texto deste livro será escrito para um «encontro-performance», a convite do curador da exposição, num tributo a Mumtazz, mulher com nome de lenda e vida de estória que «escolheu ser quem queria». Ambas nasceram em Dezembro com 3 anos de diferença. Conheciam-se há mais de 20 anos.
E da mesma forma que o Taj Mahal é o túmulo da Mumtaz Mahal persa, este livro-tributo eterniza Mumtazz, artista portuguesa «quase secreta», «grande construtora de chapéus» que, ao jeito pós-moderno, começa a sua arte recriando-se a si mesma, como quando muda de nome: «Como as colagens, essa espécie de cinema, montagem, edição: magia a operar, surf num material passado». Este livro, na senda da homenageada Mumtazz, é «arte do movimento, desenho-escrita-mão», como acontece com um itinerário num mapa que, esbatendo fronteiras e continentes, se torna uma linha traçada a vermelho (que figurará na capa): «E no branco que tudo recomeça, onde terras e mares já são só a memória de um vinco no papel, galoparíamos enfim, livres.»
Essa Rota da Seda, hoje cheia de senhores da guerra, de «desertos milenares metidos em sacos» para proteger milhares de militares americanos. Território que a América pretende dominar, apesar de o Afeganistão a anteceder em 5 séculos. Porque este é também um livro sobre doenças globais, como a poluição que ameaça as fundações do Taj Mahal e o mármore que escurece das chuvas ácidas. Sobre as mil e uma noites da «violência de género contínua», onde as raparigas engravidam mal saem da infância. Ver artigo
Cláudia Andrade, autora publicada pela Elsinore – editora que discretamente tem vindo a apostar em autores inéditos, novas vozes literárias no panorama literário português numa prosa singular com assinatura de estilo –, venceu recentemente o Prémio Autores 2020 da Sociedade Portuguesa de Autores na categoria de Melhor Livro de Ficção Narrativa, com o seu Quartos de Final e Outras Histórias. Já aqui se escreveu a propósito do seu primeiro romance, Caronte à Espera, recenseado no Cultura.Sul de Julho deste ano. Mas compete-nos agora traçar o furor causado pelo seu livro de contos, publicado em Setembro de 2019, considerado um dos melhores livros do ano pela crítica.
O romance Caronte à Espera é capaz de deixar o leitor tão agarrado quanto desconcertado, mas convém esclarecer que o livro de contos Quartos de Final e Outras Histórias é-lhe superior, ainda que os una essa mesma prosa burilada cujas frases se distendem e emaranham, ao jeito das acções das próprias personagens, tão complexas e enigmáticas quanto marginalmente desamparadas. Estas 18 histórias distendem-se ora num sopro de 3 páginas, ora em 20 páginas, como é o caso de «O Exilado», o conto mais extenso desta colectânea. O primeiro conto, que dá nome ao livro, conta-nos a história de uma noiva desesperada, no dia do casamento, por chamar a atenção do seu noivo, mais preocupado com ver os quartos de final do campeonato de futebol, até que decide entrar numa das casas-de-banho com um dos empregados. Sabemos que a noiva traz consigo uma lâmina com a qual se corta, mas não nos é inteiramente revelado como no desfecho dessa história o casamento acaba em sangue. E assim, logo na primeira história deste livro, o leitor é deixado no fio da navalha, enquanto nele se sucedem momentos de vida de protagonistas tão díspares quanto excluídos. A existência murcha destas personagens apenas parece palpitar fugazmente com vida quando dilaceradas por certas pulsões, viscerais como o sexo, intensas como a paixão, capazes de toldar de vermelho «o seu interior» (p. 119), num mosaico de histórias quase sempre desconcertantes: uma prostituta que recebe num sofá na berma de uma estrada e se liberta ao salvar uma cadela abandonada; uma moribunda que da cama, no prenúncio do seu estertor final, lança diatribes reveladoras dos mais infames segredos das mulheres que em seu redor oram por ela; um violador de viúvas e que depois de ter provado um menino por acidente, decide agarrar um anjo; um poeta que leva uma vida sem máculas nem pecados e por isso decide reescrever com algum acto incauto a sua futura biografia, para que não seja demasiado sensaborona. Estas personagens e situações têm, entre si, muito pouco em comum, mas compõem indubitavelmente um universo tão insólito quanto fracturante numa ficção que rasga o véu da vida, essa «marcha ridiculamente longa» (p. 108), e abala qualquer desejo de conforto num leitor que procure nestes contos uma prosa fácil, delicodoce, que embeleze a vida, nalgum compasso de espero de fuga ao mundo. A escrita desta autora coloca o dedo na ferida, num mundo muito pouco tranquilizador, descrito, a dada altira, como um «grotesco circo» (p. 61), capaz de suscitar revolta «contra a natureza das coisas. Não há nada de claro ou justificado nesta trapalhice universal, nenhuma coordenada» (p. 62), sendo «aquele outro inferno, tão redundante em relação a este» (p. 64). E nesse inferno que é o quotidiano, o insólito anda a par e passo do absurdo da existência humana, entre homens que esfacelam anjos e viúvas que ocupam as mãos para evitar serem visitadas pelo fantasma do marido. A existência, para a qual somos catapultados, arrancados «a um muito confortável nada», é, afinal, uma «camarazinha de horrores» (p. 129), onde a vida tem, ainda assim, o frémito indomável de se replicar, sempre pronta a «fazer um outro morto para nascer dali a nove meses, com um crédito de mil anos para se desiludir com a existência» (p. 50). Mas, um pouco ao jeito do realismo mágico e de um certo pós-expressionismo pictórico, o mundo, como a vida que nele pulula, pode também revelar-se um prodígio, onde até os objectos quotidianos podem perder a sua domesticidade, «removida a patina de quotidianidade», ganhando vida própria e «interesse novo ao olhar» (p. 117). Até a vida pode ganhar ambiência fantasmática, como acontece no funeral de «As Mãos»: «A natureza esmerava-se em participar no espírito da coisa: o dia estava frio, pálido e pétreo. Assim que o cortejo começou, uma névoa leitosa começou por mover-se rente ao chão, apagando as pernas e dando a todos a impressão de que flutuavam. A certa altura, a névoa subiu, esfumando as arestas das coisas, depois adensou-se e submergiu tudo.» (p. 94)
Pode ler-se em «O Exilado» como «o escritor» «pegava nessa coisa insossa e informe que era a vida e a decantava no laboratório da memória, do raciocínio e da boa vontade poética, para conseguir sentir um amor às coisas que seria impossível enquanto confrontado com elas, para delas conseguir espremer então qualquer coisa sobre a qual valesse a pena escrever» (p. 113). São particularmente curiosos os contos desta compilação que mais se debruçam sobre a arte da escrita, em que pode o leitor querer deslindar uma explicação possível para o espírito que anima estas páginas, como em «Requerimento» onde se pode ler como o autor dessa carta «inadvertida e compulsivamente» levou a tarefa de pensar «demasiado a sério e, à custa de observar, ponderar e coleccionar tanto e tão circunstanciado absurdo, matéria-prima do mundo, tomei amor ao desalento e arruinei a minha alegria para sempre» (p. 60). Podíamos até rematar que a prosa de Claúdia Andrade entra no panteão dos «escritores merecedores desse epíteto» que «deambularam por ruelas escuras em sofrimento pelas suas obras, esfolaram os narizes contra as paredes da labiríntica e incerta intuição literária. Era uma obra sólida, a sua, densa e trapalhona como a vida» (p. 117).
Cláudia Andrade nasceu em Lisboa. Autora ainda do livro de contos Elogio da Infertilidade, vencedor do Prémio Ferreira de Castro 2017 (sob o pseudónimo que lhe era habitual de Vitória F., entretanto abandonado), considera-se sobretudo contista, embora esteja a trabalhar num segundo romance. Ver artigo
Fica uma amostra de um artigo a partir de uma comunicação sobre Olhos de Coruja, Olhos de Gato Bravo, de Luis Cardoso de Noronha – um livro extraordinário (em todas as acepções da palavra) publicado em 2001 pela Dom Quixote: Ver artigo
A Pantera-das-Neves, de Sylvain Tesson, publicado pela Bertrand Editora, é mais um excelente título a integrar o universo dessa literatura de viagens que alia o relato da expedição à lírica.
Durante a projecção do seu filme sobre o lobo-abissínio, Vincent Munier, fotógrafo da vida selvagem, desafia Sylvain Tesson a praticar consigo essa «arte frágil e delicada» da espera: «camuflar-se na natureza e ficar à espera de um animal, sem nenhuma certeza de que ele aparecesse» (p. 15). Esse animal que Munier persegue há 6 anos nos planaltos do Tibete, no Inverno, a mais de quatro mil metros de altitude, é a pantera-das-neves – animal avistado tão raramente que levou a crer estar extinto (em português designa-se leopardo-das-neves, mas por razões adiante explicadas optou-se na edição portuguesa pelo nome que dá título à edição francesa da obra).
A viagem aos Himalaias desacelera o ritmo de Sylvain Tesson, que considerava a imobilidade «um ensaio geral da morte» e vivia os dias num frenesi, como quem enfrenta a brevidade da vida. Sem saber ao certo a sua função, encarregue apenas de não atrasar o grupo da expedição e de não espirrar se avistassem o mítico animal, o autor-narrador dá por si a viver os dias repartidos em pequenas etapas, a contemplar a natureza e, por conseguinte, a incorrer numa exploração interior da alma – ressalve-se que o cenário do relato é o Tibete – enquanto simultaneamente reflecte, quase sempre de forma irónica, sobre a existência humana: «Definição de homem: a criatura mais próspera da história dos seres vivos. Enquanto espécie, nada a ameaça: desbrava, edifica, dissemina-se. Depois de se ter disseminado, acumula.» (p. 81)
Nesse espaço inóspito de onde até os deuses se haviam retirado, o avistamento tão desejado quanto impossível da pantera-das-neves ganha conotações metafísicas, como se a pantera fosse o único deus possível naquele reino fora do mundo. Mas avistá-la pode também ser o equivalente a reencontrar um amor perdido ou platónico, incorporado nessa elegante fera: «A pantera, como o pensamento pagão, circula no labirinto. Dificilmente compreensível, palpita, outorgada ao mundo, engalanada. A sua beleza vibra na fúria. Estendida entre as coisas mortas, plácida e perigosa, macho de nome feminino, ambígua como a mais elevada poesia, imprevisível e sem conforto, multicolor, sinuosa» (p. 143)
Sylvain Tesson, francês, nascido em 1972, é escritor, poeta, ensaísta, explorador. Escalou, entre outros, a Notre-Dame de Paris, a Torre Eiffel e o Monte Saint-Michel – por vezes para apoiar causas, como a defesa do Tibete. A Pantera-das-Neves, distinguido com o Prémio Renaudot 2019, é o seu primeiro livro publicado em Portugal. Ver artigo
Colson Whitehead venceu o Prémio Pulitzer e o National Book Award com A estrada subterrânea, e num feito incomum na história da literatura americana venceu novamente o Pulitzer com o romance Os rapazes de Nickel, agora traduzido por Hugo Gonçalves e publicado pela Alfaguara.
O autor traça um retrato da América do séc. XIX, em A estrada subterrânea (2017), em que a história individual de Cora representa a condição do escravo e da luta pela liberdade e dignidade humanas. Uma narrativa baseada em factos reais que era uma resposta necessária aos tempos incertos que ainda se vivem na América e no mundo. Os rapazes de Nickel é, uma vez mais, uma narrativa sobre o racismo, igualmente baseada num caso real – um reformatório da Flórida que destruiu a vida de milhares de jovens.
Elwood Curtis, deixado pelos pais aos 6 anos, é criado por Harriet, uma avó extremamente protectora, que amaldiçoa o dia em que comprou um disco com discursos de Martin Luther King pois nele havia demasiadas ideias e o que esta avó, que tem o medo como combustível, menos quer é que o seu neto, um rapaz negro a viver no Sul dos Estados Unidos, na década de 60, conheça o destino que parece irremediavelmente fadado a atingir a sua família (e todos os negros): o pai de Harriet morreu na cadeia, injustamente acusado por uma branca; o marido de Harriet é encontrado enforcado na cela onde aguardava audiência, tendo sido preso por tentar defender um empregado negro numa escaramuça provocada por brancos.
Elwood Curtis demarca-se dos demais jovens de Tallahassee que se metem permanentemente em sarilhos: é educado, trabalhador, lê como quem recita. E num sítio onde são inclusivamente poucos os rapazes brancos que pensam ir para a universidade, Elwood tem a oportunidade de frequentar um curso especial para os melhores alunos de liceu – como prenúncio de um promissor futuro numa universidade. Não fosse um golpe do destino – que atinge o leitor como um murro no estômago – tolher-lhe todos os planos e conduzi-lo para o reformatório Nickel, uma instituição que à primeira vista parece a escola perfeita:
«Nickel não devia ser assim tão má. Esperava muros de pedra, bem altos, e arame farpado, mas não havia muros. O campus estava meticulosamente cuidado, uma fartura exuberante de verde e edifícios de tijolo vermelho, com dois e três andares. Os cedros e as faias, altos e antigos, desenhavam sombras. Era a propriedade mais bonita que Elwood alguma vez vira – uma escola a sério, e boa, não o reformatório ameaçador que ele imaginara nas últimas semanas.» (p. 57)
Mas mais uma vez a ingenuidade desarmante e a bondade intrínseca de Elwood será posta à prova e rapidamente descobre que aquela fachada esconde uma câmara de horrores.
Colson Whitehead, nascido em 1969 em Nova Iorque, tem leccionado em instituições como a Universidade de Columbia e Princeton e foi distinguido com as bolsas Guggenheim e MacArthur. Segundo o júri do Pulitzer, este livro é uma «poderosa história sobre a perseverança, dignidade e redenção», «uma exploração avassaladora e devastadora dos abusos». Ver artigo
A Vida Extraordinária do Português que Conquistou a Patagónia, de Mónica Bello, publicado pela Temas e Debates e Círculo de Leitores, livro de não-ficção que tem mais de romance do que de biografia, é a reescrita de uma vida, com a poética inventiva e a prosa pujante próprias da literatura. Ainda que suportada por documentos oficiais, cartas, relatos, fotografias, biografias de seus contemporâneos e entrevistas de viva voz com aventureiros que ainda se terão cruzado em vida com José Nogueira, Mónica Bello reinventa a seu bel-prazer a vida do (segundo) português mais conhecido na Patagónia, terra de fim do mundo a que Fernão de Magalhães emprestou o seu nome ao atravessar o estreito.
Como tantos portugueses desta e de outras épocas, José, nascido em 1845, parte (aos 12 anos) um pouco por acidente pelo mundo fora, e era (até à publicação deste livro) mais conhecido no Chile do que em Portugal, como um dos fundadores da Patagónia. Neste documento historiográfico – pontuado por «Terá sido», «Pode ser», «Pode até ser», «Talvez» – «todas as hipóteses e outras ainda podem ser verdadeiras» (p. 45). Indiscutivelmente verdade é que, após anos em alto-mar, terá desembarcado em 1866 «para assentar casa a meio-caminho entre dois oceanos, nove minutos a sul do paralelo 53, na margem norte do estreito de Magalhães – Punta Arenas, então o lugar mais austral do Planeta habitado em permanência» (p. 52).
O nosso explorador instala-se nessa colónia penal, dominando a caça de lobos-marinhos no Pacífico Sul por mais de 15 anos, com uma média anual de 4 mil peles que exportará para Londres; às peles, junta o negócio ocasional de salvados e fretes-marítimos, constituíndo uma frota que o torna o primeiro armador da zona; abre um pequeno armazém que se converte na casa de comércio mais próspera de Punta Arenas; descobre ouro; e quando o governo chileno lhe entrega um milhão de hectares na Terra do Fogo, área deserta e gelada onde nada cresce, mas que José Nogueira teria de pôr a produzir sob risco de a perder, lembra-se de criar ovelhas – que se transformam numa «fonte inesgotável de lã pura que a Europa pagava a bom peso de ouro» (p. 19).
Alternando entre o presente e o passado, a autora perde-se muitas vezes nas malhas de outras histórias que com esta se cruzam, fazendo deste livro o testemunho de vida de um extraordinário lusitano, mas também um relato fundacional da Patagónia, num amplo quadro dessa desolada terra de estrangeiros, aventureiros, índios, deserdados, marinheiros e caçadores.
«Os homens que vivem no Sul dizem que para lá do paralelo 40 não há lei. E que para além dos 50 graus, nem Deus existe.» (p. 51) Ver artigo
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