Atlas Histórico da Escrita, de Marco Neves, é o primeiro volume na colecção de Atlas da editora Guerra e Paz assinado pela pena de um autor português. Um livro tão ambicioso quanto acessível que toca a escrita, de diversas formas, nas suas várias manifestações, ao longo dos últimos cinco milénios. Um guia tão lúdico quanto didáctico em que é palpável o prazer que o próprio autor terá sentido nesta expedição arqueológica. Um atlas absolutamente inédito, baseado numa rigorosa investigação, de escrita fácil e ligeira, onde há até espaço para brincar e piscar o olho ao leitor: “Passamos o dia a ler e a escrever – e a queixarmo‑nos da língua. A escrita também permitiu desenvolver uma relação neurótica com a linguagem, que já se notava na velha Suméria, em que os escribas se queixavam dos jovens, esses malandros a maltratar a língua.” (p. 7)
O texto deste Atlas é ainda profusamente ilustrado com imagens e fotografias, e acompanhado por mapas e infografias também com assinatura nacional, de Nuno Costa.
Atlas Histórico da Escrita está dividido em 6 partes principais, com algumas subsecções. Começando pela proto-escrita, faz-se um percurso visual pelas várias origens da escrita; faz-se um rastreio das origens das quatro tradições escritas mais importantes, com as primeiras inscrições em argila na Suméria, assim como a escrita hieroglífica no Egipto, os sistemas de caracteres na China, que foi importado para o Japão, passando ainda pela Mesoamérica e a civilização maia; na terceira parte, procura-se perceber como foram inventados os sistemas consonantais e alfabéticos; compreender os principais sistemas de escrita hoje utilizados um pouco por todo o mundo e descobrir ainda aqueles que até hoje não foram decifrados; a evolução do nosso alfabeto, o latino; e, por fim, na sexta parte, uma análise global da atual revolução tecnológica, digital e do peso que a palavra continua a ter perante a imagem. O autor deixa-nos ainda as suas principais fontes de referência, como sugestões de leitura.
Os primeiros capítulos evidenciam a destreza do autor em explicar temas complexos de forma simples, nomeadamente na forma como demonstra o Princípio de Rébus que é, afinal, a chave do nascimento da escrita, um sistema de registo da nossa oralidade que surgiu “através de truques e aproximações”, uma “tecnologia improvisada ao longo de muito tempo – e tão útil que quem com ela contactava rapidamente a copiava e adaptava à sua língua” (p. 21).
Este livro de leitura rápida e aprazível é uma viagem no tempo e no espaço, que nos leva a dimensões tão remotas como o primeiro livro da história da humanidade para depois nos trazer de regresso à actual era digital, em que mais depressa estabelecemos comunicação por escrito. Mesmo com a possibilidade de estabelecer chamadas ou enviar áudios, as pessoas continuam a preferir enviar mensagens escritas. Escrevemos hoje mais do que nunca antes e muitas vezes em situações inimagináveis. A escrita acompanha-nos diariamente. Um funcionário pode até levar o dia todo a escrever, sem nunca ter de recorrer à oralidade. A palavra escrita tem hoje indiscutivelmente mais peso do que um acordo oral; e por isso mesmo é muitas vezes importante assegurarmo-nos de que assuntos importantes ou delicados ficam registados por escrito. Encontramo-la nos livros, em documentos, na televisão, em anúncios na rua, em murais grafitados. Encontramo-la muito especialmente no meio digital – do computador ao telefone, passando pelos relógios.
Contudo, e é assim que inicia esta viagem, a Humanidade viveu a maior parte do seu percurso sem escrita. O nosso cérebro, afirma o autor, está “habituado a processar e a transmitir informação através de histórias” (p. 146). O problema residiu na necessidade de uma administração mais eficaz, em vários pontos do planeta, de se criar uma contabilidade e um comércio mais práticos e eficazes. Sendo mais difícil o uso de números e quantidades, por parte do nosso cérebro, a Humanidade deu um salto evolutivo para a criação de sinais gravados, como estratégias gradualmente mais complexas que visavam registar informação sobre números, quantidades e calendários. Como se sabe é com a escrita – a «segunda maior invenção da Humanidade», depois da linguagem humana – que se dá o salto da Pré-História para a História. Hoje vivemos tempos inéditos, conclui o autor, com a terceira grande revolução, a da escrita, depois da invenção da escrita desde há cinco milénios passando pela expansão da imprensa (que não foi descoberta por Gutenberg). Depois de nos anos 60 do século XX a alfabetização ter chegado a mais de metade da população mundial, a tecnologia provoca hoje uma explosão da palavra escrita entre as várias sociedades, levando a capacidade de ler e escrever até, quase, aos 100 % da população (p. 138). Ainda assim, entre a invenção nos dois últimos séculos de uma nova comunidade de grande dimensão, a dos leitores, e a dificuldade dos jovens com a escrita, enquanto modo quotidiano de linguagem humana, continua a haver muito a explorar, a perceber, a aprender: “Daqui a 10 000 anos, os historiadores do futuro considerarão o nosso tempo como uma fase dos primórdios, quando a Humanidade se aproximava – ainda sem a ter atingido – da universalidade do conhecimento da escrita.” (p. 6)
Conhecido por ser um crítico do excessivo policiamento da língua, Marco Neves é autor de mais de uma dezena de livros sobre temas linguísticos. Nasceu em Peniche e vive em Lisboa. É professor na FCSH e investigador no CETAPS. Mantém uma coluna sobre o tema no Sapo 24 e escreve regularmente na sua página Certas Palavras.
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