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As Minhas Estúpidas Intenções, de Bernardo Zanonni

As Minhas Estúpidas Intenções, de Bernardo Zanonni, publicado em outubro de 2023 pela Dom Quixote, com tradução de Vasco Gato, era uma das leituras há muito adiadas/desejadas.

Um romance de estreia original que arrecadou uma série de distinções na altura em que foi publicado: Prémio Campiello 2022, Prémio Baguitta Opera Prima 2022, Prémio Salerno de Literatura 2022, Prémio Fiesole Narrativa (Menos de 40 anos).

As Minhas Estúpidas Intenções é a história fascinante de Archy, um fuinha macho nascido na miséria, por uma mãe cruel e sem nunca ter conhecido o pai. Quando ainda novo se tenta fazer à vida e provar que já consegue caçar a sua própria comida, acaba mutilado por um acidente. Coxo para a vida, inutilizado, é vendido como escravo pela mãe a um raposo usurário chamado Solomon e que é escoltado por um cão. Solomon maltrata Archy mas, dissimuladamente, apercebendo-se que Archy apesar de perdido, choroso, desamparado, é um animal esperto, resolve ensiná‑lo a ler. E para lhe desvendar os mistérios da palavra escrita, Solomon toma como cartilha a Bíblia, o único livro que tem, ao mesmo tempo que incute em Archy uma estranha e confusa religiosidade, em torno dessa entidade ambígua chamada Deus.

“Estava danado com Deus (…). Se calhar, se não o conhecesse, não me queixaria tanto, aceitaria cada coisa tal qual viesse, como um verdadeiro animal. Mas, sabendo de quem era o mundo, via-me obrigado a ter um inimigo, era instintivo para mim.” (p. 85)

E é também esse processo, o de se adentrar no mundo da palavra e da religião, que confere a Archie uma certa inteligência ou o dom da razão:

“Uma profunda tristeza deixou-me abatido. Já não me sentia um animal: trocara os meus instintos por dúvidas e perguntas, pelo exercício da razão, pela falsificação da minha natureza.” (p. 115)

E embora o fuinha seja salvo pelo dom da leitura e da escrita, é também igualmente condenado, pois torna-se um ser estranho e inadaptado.

Como não podia deixar de ser, a narrativa conta-se pelas próprias palavras do protagonista fuinha, atravessando toda a sua desgraçada e venturosa vida num mundo animal desumano. Todas as personagens animais que por aqui desfilam falam, menos as galinhas. Vivem em tocas que, ainda assim, estão mobiladas e equipadas à semelhança das casas de pessoas, com pratos, mesas, camas.

Uma fábula prodigiosamente imaginada, sobre o que é afinal a natureza humana, e a maldade, com uma prosa escorreita muito sólida, que, pontualmente, se desvia para reflexões que deixam antever um abismo existencial.

Bernardo Zanonni nasceu em 1995, e mora em Sarzana, em Itália. Começou a escrever este seu primeiro romance com 21 anos. Considera a crítica que esta obra, com ecos de Pinóquio, de Collodi, e de O Estrangeiro, de Camus, ou de O Vento nos Salgueiros, de Kenneth Grahame, constitui uma das obras de estreia mais originais da literatura italiana atual. Ocupou o 5.º lugar no top de vendas de livros, e o 2.º lugar no top de ficção narrativa italiana. Vendeu já mais de 35.000 exemplares e foi traduzido em várias línguas e publicado nos EUA pela prestigiada New York Review of Books.

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Paulo Nóbrega Serra
Paulo Nóbrega Serra
Sou doutorado em Literatura com a tese «O realismo mágico na obra de Lídia Jorge, João de Melo e Hélia Correia», defendida em Junho de 2013. Mestre em Literatura Comparada e Licenciado em Línguas e Literaturas Modernas, autor da obra O Realismo Mágico na Literatura Portuguesa: O Dia dos Prodígios, de Lídia Jorge e O Meu Mundo Não É Deste Reino, de João de Melo, fruto da minha tese de mestrado. Tenho ainda três pequenas biografias publicadas na colecção Chamo-me: Agostinho da Silva, Eugénio de Andrade e D. Dinis. Colaboro com o suplemento Cultura.Sul e com o Postal do Algarve (distribuídos com o Expresso no Algarve e disponíveis online), e tenho publicado vários artigos e capítulos na área dos estudos literários. Trabalhei como professor do ensino público de 2003 a 2013 e ministrei formações. De Agosto de 2014 a Setembro de 2017, fui Docente do Instituto Camões em Gaborone na Universidade do Botsuana e na SADC, sendo o responsável pelo Departamento de Português da Universidade e ministrei cursos livres de língua portuguesa a adultos. Realizei um Mestrado em Ensino do Português e das Línguas Clássicas e uma pós-graduação em Ensino Especial. Vivi entre 2017 e Janeiro de 2020 na cidade da Beira, Moçambique, onde coordenei o Centro Cultural Português, do Camões, dois Centros de Língua Portuguesa, nas Universidades da Beira e de Quelimane. Fui docente na Universidade Pedagógica da Beira, onde leccionava Didáctica do Português a futuros professores. Resido agora em Díli, onde trabalho como Agente de Cooperação e lecciono na UNTL disciplinas como Leitura Orientada e Didáctica da Literatura. Ler é a minha vida e espero continuar a espalhar as chamas desta paixão entre os leitores amigos que por aqui passam.

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