Comprei os quatro volumes de uma vez há meses, emprestei, ouvi relatos de que não conseguiam parar a leitura por muito grande que fosse a azáfama do dia-a-dia, continuei a deixá-los na prateleira, olhei-os com frequência, continuei a preteri-los por outros mais urgentes. Li finalmente nestes últimos 3 dias o primeiro volume da tetralogia. Claro que depois de já se ter lido e ouvido falar tanto de um livro que vários amigos estavam a ler, aliás, a devorar, sinto que não adianta dizer muito. Mas aqui vai: esta história da menina de oito ou nove anos de seu nome Elena começou primeiro por me surpreender. Não esperava a narrativa de uma infância passada nesse bairro popular de Nápoles onde a violência é usual e estas várias famílias organizadas ao estilo medieval por ofícios se aliam e desunem por incidentes extrapolados, quase como se assistíssemos às tricas de várias famílias da Camorra. Depois de um prólogo enigmático, que anuncia o que se segue nos próximos livros, a história é uma longa reminiscência, relembrada a partir do fim de uma vida, narra o início da amizade de duas crianças desse bairro, Elena e Lila, e acompanha a sua infância e depois a juventude, até aos 16 anos, terminando com o casamento de uma delas. Se bem que Lila começa por se revelar como a maria-rapaz e de espírito indomável, enquanto Elena é mais inocente e discreta, a natureza díspar desta amizade, onde por vezes os interesses de cada uma estão em conflito, revela como a união dos contrários faz a força e como cada uma das jovens pode beber da natureza da outra para se tornar mais forte e vingar na vida. Elena Greco, como o nome de certa forma indica, de alguma forma, vai ser a miúda do bairro que tem a oportunidade de prosseguir estudos, pois é tão inteligente (ou quase) como Lila, mas é ela que tem a oportunidade de prosseguir os estudos, nomeadamente os de cultura clássica, como o grego e o latim. No início, Elena parece admirar cegamente a amiga mas, na verdade, há quase uma paixão de Elena por Lila, que vê em si um modelo, primeiro, mas indicia-se também uma amizade de natureza estranha que raia a possessividade de um jovem amor, até à cena em que Elena vê Lila nua e que nos é descrita com certos laivos sáficos (corrijam-me se estou enganado!). Se de início há esse seguimento cedo da amiga, e qual delas será afinal a Amiga Genial, Elena depois procura demarcar-se mais claramente de Lila, numa rivalidade inofensiva, mas que lhe serve de ímpeto, conforme nos aproximamos do final do livro, para fazer carreira nas letras e escapar àquele bairro que começa a observar de forma cada vez mais desencantada, à medida que no princípio do fim do livro sentimos como as duas seguem caminhos cada vez mais divergentes. A escrita é ligeira, límpida, despida de grandes floreados, mas com momentos de maior aprimoramento e enlevo, com frases curtas incisivas, e daí que o ritmo de leitura que imprime seja vertiginoso, mesmo que me pareça que a história a certa altura se irá começar a arrastar um pouco. Note-se, nesta passagem emblemática, que parece descrever o próprio estilo de escrita da autora Elena Ferrante, que tão discutido tem sido, como o estilo de escrita de Elena parece ser tomado a partir do de Lila: «ela exprimia-se através de frases tão bem construídas (…) mas – além disso – não deixava qualquer sinal de falta de naturalidade, não se sentia o artifício da palavra escrita. Eu lia, e ao mesmo tempo via-a e ouvia-a. A sua voz era como um fluxo que me arrebatava e me fascinava como quando conversávamos uma com a outra, no entanto estava perfeitamente depurada das escórias da linguagem coloquial (…).» (pág. 179). No final deste primeiro volume temos ainda a confirmação do que se sentia desde o início, que é uma narradora madura, agora uma mulher, a recontar a sua vida, a sua formação, o desabrochar da sua identidade, estreitamente ligada à da amiga.

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Paulo Nóbrega Serra
Written by Paulo Nóbrega Serra
Sou doutorado em Literatura com a tese «O realismo mágico na obra de Lídia Jorge, João de Melo e Hélia Correia», defendida em Junho de 2013. Mestre em Literatura Comparada e Licenciado em Línguas e Literaturas Modernas, autor da obra O Realismo Mágico na Literatura Portuguesa: O Dia dos Prodígios, de Lídia Jorge e O Meu Mundo Não É Deste Reino, de João de Melo, fruto da minha tese de mestrado. Tenho ainda três pequenas biografias publicadas na colecção Chamo-me: Agostinho da Silva, Eugénio de Andrade e D. Dinis. Colaboro com o suplemento Cultura.Sul e com o Postal do Algarve (distribuídos com o Expresso no Algarve e disponíveis online), e tenho publicado vários artigos e capítulos na área dos estudos literários. Trabalhei como professor do ensino público de 2003 a 2013 e ministrei formações. De Agosto de 2014 a Setembro de 2017, fui Docente do Instituto Camões em Gaborone na Universidade do Botsuana e na SADC, sendo o responsável pelo Departamento de Português da Universidade e ministrei cursos livres de língua portuguesa a adultos. Realizei um Mestrado em Ensino do Português e das Línguas Clássicas e uma pós-graduação em Ensino Especial. Vivi entre 2017 e Janeiro de 2020 na cidade da Beira, Moçambique, onde coordenei o Centro Cultural Português, do Camões, dois Centros de Língua Portuguesa, nas Universidades da Beira e de Quelimane. Fui docente na Universidade Pedagógica da Beira, onde leccionava Didáctica do Português a futuros professores. Resido agora em Díli, onde trabalho como Agente de Cooperação e lecciono na UNTL disciplinas como Leitura Orientada e Didáctica da Literatura. Ler é a minha vida e espero continuar a espalhar as chamas desta paixão entre os leitores amigos que por aqui passam.