Sempre Estrangeira, de Claudia Durastanti, finalista do Prémio Strega, publicado pela Dom Quixote, com tradução de Vasco Gato, é «a história de uma educação sentimental contemporânea, desorientada pelo passado e pela consciência das diferenças físicas, das distinções sociais, da pertença a um lugar»:
«A incapacidade de fazer coisas que deveríamos saber fazer, a impossibilidade de ver, sentir, recordar ou andar não é uma exceção, antes um destino.
Todos nos tornamos deficientes, mais tarde ou mais cedo.»
A mãe, a «muda», «pobre coitada», ficou surda em consequência de uma meningite e «aprendeu a exprimir-se através da tortura» que as freiras no colégio lhe infligiam, com uma faca na língua ou a tocar em fios eléctricos, conforme também lhe ensinavam linguagem gestual. «Ao ler os lábios dos outros para decifrar o que estavam a dizer até consumir os olhos e os nervos, ao falar com a sua voz alta e carregada e com os acentos irregulares, parecia simplesmente uma imigrante cheia de erros gramaticais, uma estrangeira.»
O pai nasceu surdo por causa de um susto que a mãe apanhou e nem o ter sido tocado pelo Padre Pio o curou.
Numa narrativa que é também memória, entre Basilicata, em Itália, e Nova Iorque, a autora-narradora redefine a sua vida e, para tal, tem de começar pela infância e adolescência dos pais: «viviam a quilómetros de distância, mas tinham adotado as mesmas estratégias de dissimulação»; «ele era surdo, ela também, e a relação entre eles teria algo de mais íntimo e profundo do que o amor»; «os meus pais encontraram-se por intermédio de reverberações semelhantes às de uma floresta antes de um incêndio (…), uma vibração particular no ar, um alarme invisível a convidar à sobrevivência»; «O amor entre surdos não existe, essa é uma fantasia de ouvintes. (…) A semelhança vem antes de tudo o mais.»
A autora procura entretecer os vários fios narrativos do seu álbum de família, mesmo quando as histórias aqui cristalizadas ganhavam variantes de cada vez que eram contadas, da mesma forma que ela e o pai inventavam “mentiras majestosas” – como ter apanhado pedras da Lua ou pedaços de algodão das nuvens – enquanto parece inclusivamente ir revisitando, fisicamente, os locais por onde essas histórias se escreveram. Até porque esta narrativa, como as demais, representa as mil e uma formas que a arte tem de «resgatar um indivíduo à diferença, e a diferença à solidão».
Nascidos na diferença, os seus pais parecem encontrar no desafio às normas e convenções a sua forma de expressão, sendo cada uma destas vidas muito pouco convencional. Em contraposição, a protagonista deste livro procura «criar uma ordem com a escrita» assim como uma via para a auto-afirmação: «Quando me perguntam quem é que me ensinou a exprimir-me, entre avós imigrantes que usavam uma língua toda avariada e pais que não sabiam corrigir os meus erros de pronúncia, apercebo-me de que a primeira língua que falei foi a da primeira pessoa que amei: o italiano de um rapazinho seis anos mais velho do que eu, melódico e isento de soluços, defendido com obstinação quando ninguém à nossa volta o falava sem uma inflexão carregada, numa região em que o uso do dialeto coincidia com a cidadania. A língua de um adolescente tomada por empréstimo dos telefilmes dobrados em italiano, ainda fresca, ingénua e doce, a voz do meu irmão, que de vez em quando ainda coincide com a minha.»
Claudia Durastanti apresentará este seu romance em Lisboa hoje, terça-feira, dia 3 de Novembro, às 19h00, em conversa com o seu tradutor. Ver artigo
Mumtazz, de Alexandra Lucas Coelho (agraciada com o Grande Prémio de Literatura de Viagens da APE por Cinco Voltas na Bahia e um Beijo para Caetano Veloso), foi publicado pela Caminho. A autora-jornalista-repórter-editora-cronista é convidada por Mumtazz a ver «a sua primeira grande exposição, talvez escrever sobre ela». Ficou para «outra vez» que não chegou em vida… Mumtazz morrerá pouco depois, aos 49, com um cancro no colo do útero, e é cremada em Lisboa, «coberta de flores, entre próximos e poemas». A primeira versão do texto deste livro será escrito para um «encontro-performance», a convite do curador da exposição, num tributo a Mumtazz, mulher com nome de lenda e vida de estória que «escolheu ser quem queria». Ambas nasceram em Dezembro com 3 anos de diferença. Conheciam-se há mais de 20 anos.
E da mesma forma que o Taj Mahal é o túmulo da Mumtaz Mahal persa, este livro-tributo eterniza Mumtazz, artista portuguesa «quase secreta», «grande construtora de chapéus» que, ao jeito pós-moderno, começa a sua arte recriando-se a si mesma, como quando muda de nome: «Como as colagens, essa espécie de cinema, montagem, edição: magia a operar, surf num material passado». Este livro, na senda da homenageada Mumtazz, é «arte do movimento, desenho-escrita-mão», como acontece com um itinerário num mapa que, esbatendo fronteiras e continentes, se torna uma linha traçada a vermelho (que figurará na capa): «E no branco que tudo recomeça, onde terras e mares já são só a memória de um vinco no papel, galoparíamos enfim, livres.»
Essa Rota da Seda, hoje cheia de senhores da guerra, de «desertos milenares metidos em sacos» para proteger milhares de militares americanos. Território que a América pretende dominar, apesar de o Afeganistão a anteceder em 5 séculos. Porque este é também um livro sobre doenças globais, como a poluição que ameaça as fundações do Taj Mahal e o mármore que escurece das chuvas ácidas. Sobre as mil e uma noites da «violência de género contínua», onde as raparigas engravidam mal saem da infância. Ver artigo
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