Depois do seu primeiro romance, Meio homem metade baleia (2018), finalista do Prémio Oceanos, chegou em fevereiro às livrarias A melhor máquina viva, o novo romance de José Gardeazabal, com o selo da Companhia das Letras, mas no contexto pandémico que então se vivia tem passado bastante despercebido. Este seu segundo romance é também o primeiro volume da Trilogia dos Pares. A título de curiosidade, José Gardeazabal é o pseudónimo de José Tavares, e o autor é irmão de Gonçalo M. Tavares.
Um livro difícil, romance muito pouco convencional, onde conflui (fazendo eco das palavras da crítica de José Riço Direitinho ao seu anterior livro) um discurso político, alegórico e aforístico, conforme passa em revista a história e memória do século XX, do Holocausto ao 11 de setembro, ao mesmo tempo que parodia o discurso bíblico, como quando compara a queda das Twin Towers à queda da Torre de Babel:
«Aconteceu uma segunda queda. Porquê uma segunda queda, não bastou a primeira? Aquele chão seco de paraíso, aquele enjoo de dilúvio. Protegidas por uma poeira cinzenta e fina, as pessoas mascararam-se de desconhecidas, de palhaço, na certeza de este ser um susto novo. Aprenderam rapidamente a respirar lentamente, invocando ao telefone uma salvação impessoal. Ninguém os ouviu. Estavam entre a realidade e a verdade, e a realidade ganhava. A realidade ferro, cimento e vidro transparente, a realidade simultânea de dois desastres, tão improváveis como uma má aposta. Deuses distraídos tinham jogado aos dados e o nosso deus tinha perdido.» (p. 129-130)
Na prosa perpassa ainda a noção da metaliteratura ou da metaficcionalidade, pois a escrita pensa-se a si mesma conforme se plasma no papel, num jogo com a linguagem, onde entram aforismos e, muito especialmente, títulos de livros que nos servem de referências culturais no labirinto em que a história se pode tornar.
Anders Kopf é um jovem aspirante a escritor que decide mergulhar na pobreza por um ano e afastar-se de um passado doloroso. Toma essa decisão no dia seguinte a uma tragédia familiar mas adia por uns tempos a sua execução, enquanto passa por um orfanato. Nesse seu intento de se tornar pobre o protagonista parece evocar os grandes autores russos (lembremo-nos tão somente de Crime e Castigo), numa fuga ao capitalismo e excessos da literatura norte-americana. Nesse exercício temporário da fome e do despojamento Kopf aspira a melhorar a literatura – a «ciência dos pobres» (p. 36) – pelo que faz um batismo de pobreza – «pobreza é reflexão» (p. 197): «abandonará pão, paz, saúde, habitação. Vestuário.» (p. 35)
Em torno de si, reúne 3 pobres a quem se atribui nomes esclarecedores: Prejworski, o Subjetivo; o antiamericano Gilles; cidadão Elias Kane, um «negro enorme, de literatura», de cinema. Com esses novos companheiros acabará por cometer um roubo num matadouro –que aqui representa um símbolo do tempo histórico do século XX e, muito particularmente, do capitalismo –, mas aquilo que rouba será essencialmente quantidades astronómicas de papel branco.
Mas o projecto de Kopf, o de ser pobre para poder alimentar-se da escrita, pode vir a ser gorado quando Eeva Wiseman, a bela capitalista herdeira do matadouro, decide, na ressaca de um acidente, que quer ser amiga de um pobre.
O autor nasceu em Lisboa, onde vive actualmente. Viveu, trabalhou e estudou em Luanda, Aveiro, Boston e Los Angeles. O seu livro de poesia, história do século vinte, distinguido com o Prémio INCM/Vasco Graça Moura, foi editado em 2016, ano em que publicou também Dicionário de ideias feitas em literatura, colectânea de prosa curta escrita em 176 entradas, uma espécie de dicionário. Em 2017, editou três peças de teatro, reunidas na obra Trilogia do olhar. Ver artigo
A Alma Perdida, publicado pela Fábula, é um álbum ilustrado com texto de Olga Tokarczuk, vencedora do Prémio Nobel de Literatura em 2019, e ilustrações da premiada artista polaca Joanna Concejo, distinguido com uma Menção Especial do Bologna Ragazzi Award e Livro do Ano pelo IBBY (2013).
«Se alguém pudesse olhar para nós lá do alto, veria que o mundo está repleto de pessoas que correm apressadas, transpiradas e muito cansadas, e que atrás delas correm, atrasadas, as suas almas perdidas…»
Pelo tema versado e pelas ilustrações sombrias, não se confunda este belíssimo livro de capa dura, com 48 páginas, com uma obra infantil ou um breve conto. O texto é mais breve do que a história contada pelas imagens, que ganham cor perto do final, conforme o próprio Jan recupera o que perdeu algures pelo caminho ao largo da vida.
«Sem alma, vivia até muito bem — dormia, comia, trabalhava, conduzia o automóvel e até jogava ténis. Às vezes, porém, tinha a impressão de que, em seu redor, tudo era plano; parecia-lhe que se deslocava sobre uma folha lisa de papel de um caderno de matemática, folha essa toda ela coberta de quadrados iguaizinhos.»
É também sobre essas folhas quadriculadas de um caderno de matemática que Joanna Concejo assenta as suas ilustrações, até que a cor irrompe pelas páginas do álbum e se apodera de todo o espaço livre, da mesma forma que do tempo parado nos relógios enterrados por Jan vieram a nascer «belas flores, semelhantes a campânulas de várias cores».
A filosofia (espiritualidade?) de Olga Tokarczuk e a melancolia das imagens interligam-se harmoniosamente, com pistas subtis (será a alma de Jan aquela criança que surge aqui e ali?) que irrompem de recantos esquivos de página para página e reclamam a atenção plena do leitor, a sua própria paragem no tempo para se conseguir maravilhar com uma história. Ver artigo
A Biblioteca Municipal de Loulé, Sophia de Mello Breyner Andresen, volta a receber a rubrica “Livros Abertos”, com a apresentação do romance Eliete, de Dulce Maria Cardoso. A sessão realiza-se no próximo dia 25 de novembro, quarta-feira, pelas 19:30 horas, conduzida por Sandra Boto, docente e investigadora auxiliar do CIAC/Universidade do Algarve. Ver artigo
Walter Benjamin: Melancolia e Revolução, ensaio publicado pela Editora Exclamação, recentemente distinguido com o Prémio PEN Ensaio 2020 (ex-aequo com João Barrento), resulta da tese de doutoramento de Maria João Cantinho, onde a autora torna claro, numa linguagem límpida e em subtil crescendo – não isenta da «perplexidade» que por vezes o pensamento de Walter Benjamin lhe provoca –, o percurso das «ideias iniciais que constituem o fermento messiânico do pensamento benjaminiano» que conhecem um inopinado desenvolvimento através do contacto com as leituras do materialismo dialéctico e que conduzem ao seu «pessimismo», que «consiste num olhar advertido contra todos os “falsos optimismos” da história (…) que se inspiram na ilusão do progresso».
«Visionário, o jovem Benjamin esteve sempre na dianteira da sua época, diagnosticando o mal-estar generalizado que crescia lentamente e se insinuava no coração de uma Europa atingida pela catástrofe» (p. 91)
As teses do pensamento benjaminiano, como a autora demonstra logo a partir das suas obras iniciais, são desenvolvidas num contexto político e social onde já se pressente o terror que se avizinha, com a chegada da II Guerra Mundial (que empurra este intelectual na direcção de Portugal em fuga ao nazismo) pelo que este pensamento messiânico é também uma última esperança no futuro da Humanidade, ou um «último gesto que nos salve ainda da catástrofe» (p. 225), a começar pelos estudos em que procura definir uma teoria da linguagem «cuja essência proporcione o ponto de abertura para uma experiência superior, messiânica» (p. 221). O conceito de messianismo não remete, ressalve-se, para a figura de um Messias-Salvador, mas sobretudo de um tempo (não o fim dos tempos, mas o tempo do fim), que respeita ao «acontecimento histórico» e à «interrupção».
A filosofia de Walter Benjamim, como a autora lembra bem, é ainda hoje «um quadro teórico incontornável» (p. 24), inclusivamente nas artes como fotografia e cinema, âmbito aliás em que é mais abordada nas faculdades portuguesas.
Apresentei aqui, no ano passado, uma recensão sobre o romance biográfico A Travessia de Benjamin, de Jay Parini, publicada pela Elsinore, que narra os últimos dias da vida deste alemão de origem judaica, que se fazia acompanhar de uma mala onde transporta a sua obra, um manuscrito com cerca de 100 páginas e outros textos. Ver artigo
A Sociedade dos Sonhadores Involuntários, de José Eduardo Agualusa, foi publicado em maio de 2017 pela Quetzal
Numa sátira política que é, ao mesmo tempo, uma homenagem, inspirado pela prisão dos 17 jovens angolanos, onde se destacava Luaty Beirão, que a 20 de Junho de 2015 foram presos em Luanda, quando se reuniam para discutir um livro de filosofia política, intitulado Da ditadura à democracia de Gene Sharp. Os jovens foram acusados, na vida real, de preparar um golpe de Estado e foram presos. Escrito na altura em que começaram a surgir as primeiras manifestações em Angola pró-democracia, Agualusa escreve este romance como arma crítica.
O autor usa a sua relação pessoal com os sonhos e a situação política angolana para criar uma fábula dos nossos tempos (no livro há elementos próximos do fantástico, como o homem que consegue entrar nos sonhos das pessoas). O sonho aqui não é fuga ao real nem é libertação dos nossos desejos inconscientes, mas sim uma utopia, um desejo, uma aspiração a uma sociedade melhor.
José Eduardo Agualusa recupera uma personagem sua, do seu livro Teoria Geral do Esquecimento, Daniel Benchimol, um jornalista que investiga desaparecimentos, José Eduardo Agualusa explora o papel dos sonhos na vida das pessoas, através de várias personagens: Hossi Kaley é um antigo guerrilheiro da Unita que continua assombrado pelos traumas da guerra; Moira Fernandez, artista plástica que usa os seus sonhos como principal matéria-prima (e que Daniel já conhecia dos seus sonhos); Hélio de Castro, neurocientista que desenvolveu uma técnica capaz de filmar sonhos.
A Sociedade dos Sonhadores Involuntários é uma homenagem a todos os que lutam pelo cumprimento do processo democrático angolano. É também uma crítica à geração que lutou pela independência do país mas depois se resignou, desistindo de concretizar o seu sonho de democracia e liberdade plena. Por outro lado, o livro presta tributo àqueles que, não tendo vivido o conflito armado, não desistem de lutar, questionando o status quo, neste caso a geração mais jovem, como a filha do narrador.
Um livro poderoso, com uma crítica feroz e ousada à democracia reinante em Angola. Daí que a palavra sonho tenha uma forte carga valorativa neste livro, em que as personagens sonham recorrentemente e há personagens capazes de entrar no sonhos de outros. Ver artigo
Os Vivos e os Outros é o novo romance do autor angolano José Eduardo Agualusa que pode, e deve, ser lido no seguimento do anterior A Sociedade dos Sonhadores Involuntários, publicado em maio de 2017 também pela Quetzal. Três anos depois o autor regressa uma segunda vez a uma personagem sua, o Daniel Benchimol de Teoria Geral do Esquecimento, jornalista que investiga desaparecimentos, e que foi também o protagonista do romance A Sociedade dos Sonhadores Involuntários, onde o autor explora o papel dos sonhos na vida das pessoas. Entre estes dois romances, Os Vivos e os Outros e A Sociedade dos Sonhadores Involuntários, há pontos em comum ainda que não imediatamente reconhecíveis.
Em Os Vivos e os Outros abandona-se o tom satírico e a questão política, e há uma divertida – mas nada leviana – exploração da literatura e do seu papel na vida dos leitores e na vida dos escritores, dos temas (por vezes saturados) que hoje são caros à crítica e à moderação de tertúlias literárias, a mesa dos escritores negros, etc.
Há ainda, claramente, como que uma elegia a diversos autores, ora mencionados, ora indirectamente evocados: «Camões, Alberto de Lacerda, Rui Knopfli, Luís Carlos Patraquim, Nelson Saúte» (p. 88)
A própria escritora Cornelia lembra a autora nigeriana Chimamanda (p. 88)
Tal como no romance anterior, mas de forma ainda mais complexa, esta narrativa encaixa diversas histórias, a começar pelo facto de o próprio livro ter tido origem num conto do autor, «O construtor de castelos» publicado em 2012 e que terá continuado a crescer dentro do autor – esta explicação surge numa nota do autor no final do livro, se bem que um leitor atento estranhará as várias páginas que essa história efectivamente ocupa dentro do romance. E com as várias histórias entram no romance várias personagens, a começar por Moira Fernandez, artista plástica que usava (no romance anterior) os seus sonhos como principal matéria-prima, e que Daniel já conhecia em sonhos.
Este romance é também um memorial da ilha de Moçambique, da sua história e riqueza cultural, e dos ilhéus que lá vivem e que acolheram o autor – Agualusa vive há alguns na ilha. Penso que se não fosse assim também não teria feito uma crítica tão feroz à política angolana no seu anterior romance. Ver artigo
Lyra Silvertongue, outrora Lyra Belacqua, é conhecida no mundo dos espíritos. Ao contrário do mundo de Harry Potter não há uma profecia ou uma cicatriz distintiva, mas Lyra Silvertongue é reconhecida e demarca-se no mundo em que se move, com o novo nome que lhe foi concedido por Iorek Byrnison, rei dos ursos. Numa Inglaterra entre o clássico e o fantástico, Lyra, agora uma estudante em Oxford, ainda sem saber tudo aquilo que enreda o seu destino pouco comum, vê-se obrigada a partir agora em direcção ao deserto, em demanda do que lhe é mais precioso… Num mundo que é tão familiar como extraordinário, onde hordas de refugiados tentam chegar à Europa enquanto o mundo parece entrar em guerra por uma questão de rosas, pois há fundamentalistas que acreditam que os óleos e perfumes agradam ao Diabo e ofendem a Deus, a jovem Lyra persegue a miragem de uma cidade habitada apenas por génios e pretende desvendar o mistério do Pó.
Philip Pullman, nascido em Norwich, Inglaterra, em 1947, foi catapultado para o sucesso em 1995 com Mundos Paralelos (His Dark Materials no original), trilogia constituída pelos volumes Os Reinos do Norte, A Torre dos Anjos e O Telescópio de Âmbar, publicados pela Editorial Presença e relançados com novas capas em 2018, quando o autor decidiu regressar a este fantástico universo com La Belle Sauvage, primeiro volume da nova série intitulada O Livro Do Pó. O que surpreendeu na nova trilogia foi a acção reportar ao período em que Lyra era apenas bebé, sendo portanto anterior às aventuras de Mundos Paralelos, além de que se previa que os próximos livros poderiam saltar para outro tempo distinto. O leitor abre então a medo o Volume 2 de O Livro do Pó: A Aliança Secreta, sabendo que a intriga se situa agora quando Lyra tem 20 anos. Mas rapidamente se percebe que Philip Pullman consegue a dupla proeza de contar uma história tão cativante quanto imaginativa ao mesmo tempo que pega em algumas pontas soltas das narrativas anteriores. Reencontramos assim o jovem Malcolm de La Belle Sauvage, que aos 11 anos salvou Lyra num barco, agora com 30 anos, ainda um protector bem como um espião, como ainda ficamos a saber que a vida de Lyra e do seu génio Pantalaimon tem sido muito pouco pacífica desde a sua aventura, 10 anos antes, no Ártico, numa luta contra o mal que envolveu feiticeiras, espectros, crianças ciganas e ursos blindados.
Esta saga, traduzida em mais de 40 línguas, com vendas superiores a 18 milhões de exemplares, foi selecionada uma das 100 melhores obras de todos os tempos pela revista Newsweek. Houve uma adaptação cinematográfica com o título A Bússola Dourada que não teve o sucesso que se esperava. Entretanto a HBO e a BBC lançaram uma série que readapta, mais fielmente, os livros. His Dark Materials vai agora na segunda temporada – referente ao segundo volume da primeira trilogia – que estreou justamente esta semana.
Esta narrativa imaginativa, numa prosa límpida e erudita, agarra o leitor sem abrandar o ritmo por mais de 500 páginas, num livro que consegue a fabulosa proeza de apelar a leitores de todas as idades, em que Philip Pullman se revela exímio a contar uma história à criança em nós que queremos manter desperta. O escritor recebeu aliás, entre outras distinções literárias, o Prémio Whitbread, atribuído pela primeira vez a um autor de obras infantojuvenis. A própria linguagem é, por vezes, pouco adequada a crianças, talvez porque Pullman escreve, na verdade, para os leitores dos seus primeiros livros de há cerca de 20 anos, hoje adultos. A Bertrand Editora publicou também, recentemente, Contos de Grimm para todas as idades deste mesmo autor onde Philip Pullman reconta os seus cinquenta contos favoritos dos irmãos Grimm, obra que iremos apresentar em breve. Ver artigo
A Suitable Boy estreou muito recentemente na Netflix, uma série de 6 episódios com uma hora cada, realizada por Mira Nair e produzida pela BBC. É aliás a primeira produção da BBC onde não entra um único actor branco. Esta série adapta o livro Um Bom Partido, de Vikram Seth, publicado entre nós pela Editorial Presença em 3 volumes – embora não se trate verdadeiramente de uma trilogia porque, como era muito habitual em tempos, o que aconteceu foi dividirem o livro original em vários na tradução portuguesa, o que até se compreende visto que cada volume tem cerca de 600 páginas. A série de Mira Nair adapta portanto em 6 horas o equivalente a 1800 páginas – falamos de páginas impressas com um tamanho de letra razoável.
Um bom partido, ou mais adequadamente, A suitable boy, de Vikram Seth (um dos nomes mais representativos da literatura pós-colonial) não pode ser confundido com um romance de cordel. Trata-se de um imenso fresco que por vezes me recorda o Em Busca do Tempo Perdido, talvez pela forma como agarra em vários fios narrativos e diversas personagens que depois vai entretecendo em nós mais apertados. Traça-se assim um amplo retrato da Índia pós-independência a partir da história muitas vezes cruzada de 4 famílias. O autor parece focar-se numa média aristocracia mas o quadro que nos apresenta é cativante, bastante realista, até quando trata de devaneios românticos das personagens, cheio de humor (dei várias gargalhadas com certas passagens) e uma fina ironia. Destaca-se a personagem da jovem Lata, que está em idade de ingressar nos estudos universitários ou, segundo a mãe, em idade de ser rapidamente casada com um rapaz que seja um bom partido, até porque desde a morte do pai de Lata, a sra. Rupa Mehra, tem sempre dependido da bondade de estranhos. O problema é que, entretanto, Lata comete o inimaginável… apaixonar-se por um rapaz sem querer saber o seu apelido. O que leva a catástrofes inimagináveis: o rapaz é muçulmano…
Casamentos prometidos e feitos por conveniência; noivas obedientes que nunca conheceram o noivo; mães de 4 filhos que uma vez perdido o marido ficam sem um lar e vivem da caridade da família, alternando o poiso; jovens que apesar da independência da Índia continuam a idolatrar o regime e a cultura britânica; o sistema de castas; os inomináveis; a influência duradoura de Gandhi; a poesia; a literatura; a política; as leis; as sessões do Parlamento; a reencarnação (ou “Que mal é que eu fiz na minha vida passada para merecer isto?”); os banhos no Ganges que apesar da poluição se acredita lavarem os pecados até à sexta geração de descendentes…
Por vezes perdemo-nos nas personagens, mas além de Lata (interpretada pela jovem estreante Tanya Maniktala) há outras que se destacam, como Maan, o jovem playboy de boas famílias (interpretado justamente por uma estrela de Bollywood, Ishaan Khatter) que se perde de amores por uma cantora e cortesã, prostituta nas horas vagas.
A tradução é cuidada e a tradutora Fernanda Pinto Rodrigues premiada, mas é interessante como o romance é fiel ao original e mantém uma profusão de termos indianos, em hindi e urdu, cujo glossário consta logo do início. Não consultei o glossário ao longo da leitura mas os termos na sua generalidade tornam-se familiares e é possível manter o ritmo da leitura sem desfazer da compreensão da mesma.
Deixo como remate a perspectiva de um inglês sobre o país: «Mas, apesar de tudo, é um povo encantador: lisonjeiro pela frente, caluniador pelas costas, alardeador de nomes sonantes para se dar ares, omnisciente, gabarola, rábula, venerador do poder, empata nas estradas, dado a cuspir para o chão… Em tempos, a minha litania contava com mais alguns títulos, mas esqueci-os.» (pág. 508).
Tem havido diversas críticas à série, como o ser uma visão romântica da Índia típica dos britânicos ou todas as personagens falarem inglês – mas ouve-se de facto urdu e hindi, além de que já o livro, na verdade, foi escrito em inglês. É, além disso, um dos romances mais extensos da língua inglesa. Acusa-se ainda Mira Nair de não fazer um bom filme desde o Casamento debaixo de Chuva ou O Bom Nome (2006), igualmente adaptado de um livro, de Jhumpa Lahiri, ou A Feira das Vaidades (2004), com Reese Witherspoon, e que eu particularmente adoro, justamente pela forma como cruzava o classicismo britânico, frio e formal, com o exotismo indiano. Por falar nisso, a banda sonora de Alex Heffes e Anoushka Shankar traz-nos o usual som do sitar. Pode não ser o retrato pós-colonial da Índia que se desejaria, mas não deixa de ser entretenimento deslumbrante e culturalmente rico, ainda que, como sempre, a série não consiga fazer justiça ao livro, cuja trama é tão complexa quanto cativante. Ver artigo
Tempos Duros, de Mario Vargas Llosa, publicado pela Quetzal, é um thriller histórico e político que se demarca bastante dos livros mais recentes deste autor, configurando um regresso aos temas dos seus livros mais importantes, apresentando episódios e singularidades da vida da América Latina.
O novo romance do escritor peruano, nascido em 1936, Prémio Nobel da Literatura em 2010, decorre na Guatemala, em 1954, e assume maioritariamente a natureza de uma reconstituição histórica, traçando o golpe militar orquestrado pelos Estados Unidos, através da CIA, que conduziu à queda do governo reformista eleito. Ao compor livremente esta recriação ficcional, com personagens que muitas vezes se fundem com figuras históricas, ainda que a narrativa assuma sobretudo um carácter documental, Vargas Llosa mostra como a verdade foi sacrificada, pelo que este romance é, tão somente, o recontar da história que já era, em si, uma ficção, uma mentira capaz de mudar o rumo de um país e de todo o continente da América Central. Tudo por uma questão de bananas.
A United Fruit, companhia que nos anos 50 estende a sua rede pelas Honduras, Guatemala, Nicarágua, El Salvador, Costa Rica, Colômbia e várias ilhas das Caraíbas, produzirá mais dólares que a maioria das empresas dos Estados Unidos e até mesmo do resto do mundo. Conhecida como a Fruteira, ou com a alcunha de «o Polvo» em toda a América Central, Gabriel García Márquez já nos dava uma ideia da sua acção determinante na América Latina numa passagem de Cem Anos de Solidão – onde se narra um massacre. E uma das ameaças à Fruteira é justamente a alegada influência que a União Soviética tem na Guatemala, cujo governo democrático estaria infiltrado por comunistas que pregam contra a propriedade privada, o pan-americanismo, o mercado livre…
Ao longo do livro, Vargas Llosa traça como os tentáculos de uma conspiração, manietada de forma por vezes bastante desajeitada por um embaixador norte-americano, apertam o cerco a Jacobo Árbenz, presidente moderado e democraticamente eleito, que será destituído sob ameaça de um golpe militar (ao jeito latino-americano), acusado de encorajar o comunismo soviético na Guatemala. Para, por fim, quando se reconhece que afinal ele não tinha sido comunista, mas tão somente vítima de uma «publicidade reivindicatória», «um homem incauto e bem-intencionado que só quis trazer o progresso, a democracia e a justiça social ao seu país» (p. 283), os Estados Unidos, incomodados com a campanha internacional desencadeada contra Washington, tentam que esta história seja rapidamente esquecida. Ver artigo
Sempre Estrangeira, de Claudia Durastanti, finalista do Prémio Strega, publicado pela Dom Quixote, com tradução de Vasco Gato, é «a história de uma educação sentimental contemporânea, desorientada pelo passado e pela consciência das diferenças físicas, das distinções sociais, da pertença a um lugar»:
«A incapacidade de fazer coisas que deveríamos saber fazer, a impossibilidade de ver, sentir, recordar ou andar não é uma exceção, antes um destino.
Todos nos tornamos deficientes, mais tarde ou mais cedo.»
A mãe, a «muda», «pobre coitada», ficou surda em consequência de uma meningite e «aprendeu a exprimir-se através da tortura» que as freiras no colégio lhe infligiam, com uma faca na língua ou a tocar em fios eléctricos, conforme também lhe ensinavam linguagem gestual. «Ao ler os lábios dos outros para decifrar o que estavam a dizer até consumir os olhos e os nervos, ao falar com a sua voz alta e carregada e com os acentos irregulares, parecia simplesmente uma imigrante cheia de erros gramaticais, uma estrangeira.»
O pai nasceu surdo por causa de um susto que a mãe apanhou e nem o ter sido tocado pelo Padre Pio o curou.
Numa narrativa que é também memória, entre Basilicata, em Itália, e Nova Iorque, a autora-narradora redefine a sua vida e, para tal, tem de começar pela infância e adolescência dos pais: «viviam a quilómetros de distância, mas tinham adotado as mesmas estratégias de dissimulação»; «ele era surdo, ela também, e a relação entre eles teria algo de mais íntimo e profundo do que o amor»; «os meus pais encontraram-se por intermédio de reverberações semelhantes às de uma floresta antes de um incêndio (…), uma vibração particular no ar, um alarme invisível a convidar à sobrevivência»; «O amor entre surdos não existe, essa é uma fantasia de ouvintes. (…) A semelhança vem antes de tudo o mais.»
A autora procura entretecer os vários fios narrativos do seu álbum de família, mesmo quando as histórias aqui cristalizadas ganhavam variantes de cada vez que eram contadas, da mesma forma que ela e o pai inventavam “mentiras majestosas” – como ter apanhado pedras da Lua ou pedaços de algodão das nuvens – enquanto parece inclusivamente ir revisitando, fisicamente, os locais por onde essas histórias se escreveram. Até porque esta narrativa, como as demais, representa as mil e uma formas que a arte tem de «resgatar um indivíduo à diferença, e a diferença à solidão».
Nascidos na diferença, os seus pais parecem encontrar no desafio às normas e convenções a sua forma de expressão, sendo cada uma destas vidas muito pouco convencional. Em contraposição, a protagonista deste livro procura «criar uma ordem com a escrita» assim como uma via para a auto-afirmação: «Quando me perguntam quem é que me ensinou a exprimir-me, entre avós imigrantes que usavam uma língua toda avariada e pais que não sabiam corrigir os meus erros de pronúncia, apercebo-me de que a primeira língua que falei foi a da primeira pessoa que amei: o italiano de um rapazinho seis anos mais velho do que eu, melódico e isento de soluços, defendido com obstinação quando ninguém à nossa volta o falava sem uma inflexão carregada, numa região em que o uso do dialeto coincidia com a cidadania. A língua de um adolescente tomada por empréstimo dos telefilmes dobrados em italiano, ainda fresca, ingénua e doce, a voz do meu irmão, que de vez em quando ainda coincide com a minha.»
Claudia Durastanti apresentará este seu romance em Lisboa hoje, terça-feira, dia 3 de Novembro, às 19h00, em conversa com o seu tradutor. Ver artigo
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