Os Anos, de Annie Ernaux, publicado pela Livros do Brasil não é um romance convencional. Se nas primeiras páginas, que constituem como que um primeiro capítulo, nos surge um género de inventário de imagens, de instantâneos, como um dicionário que vai do berço à morte, a partir daí as restantes quase 200 páginas do romance desdobram-se como uma crónica dos tempos. Listam-se fotografias, resgatadas a um arquivo familiar, começando pela primeira foto de um bebé, em 1941; recuperam-se, seguidamente, narrativas familiares que são, como se refere, indissociáveis das narrativas sociais; citam-se ocasionalmente frases retiradas de um diário; existem inclusive passagens que desenham o plano do livro que intenta «captar o reflexo projetado pela história coletiva no ecrã da memória individual» (p. 43). Mas a narração destas memórias, que vai de 1941 a 2006, é sempre apresentada na 3.ª pessoa, referindo-se a uma «ela», tecendo uma narrativa distanciada e exterior por ser uma história colectiva e transpessoal, mas também, possivelmente, por ser essa a ideia central representada no romance: a ideia do que realmente fica de nós, ao passar pelo mundo, e o pouco que conseguimos lembrar da pessoa que fomos, conforme passam os anos, tal como «ela» (essa mulher nunca nomeada) não se consegue reencontrar na pessoa que foi e já mal consegue lembrar.
«Gostaria de reunir múltiplas imagens dela própria, separadas, sem relação entre si, ligadas por um fio narrativo, o da sua existência, desde a Segunda Guerra Mundial até aos dias de hoje. Uma existência particular, portanto, mas também incorporada no movimento de uma geração.» (p. 144)
Definir, portanto, esta reconstrução dos 60 anos da vida de uma mulher, que por sua vez se inscreve na história de um país, França, como um romance biográfico seria bastante simplista. Este livro inédito em Portugal, agora publicado na coleção Dois Mundos, recupera mais de meio século da história do mundo, em décadas decisivas, detendo-se muito particularmente no Maio de 68.
Os Anos foi editado em França em 2008, no mesmo ano em que a autora foi galardoada com o Prémio de Língua Francesa pelo conjunto da sua obra. Esta obra confirma Annie Ernaux como uma das mais importantes vozes da literatura francesa, recebeu várias distinções, como o Prémio Marguerite Duras 2008 e o Prémio Strega 2016, e foi finalista do Prémio Man Booker Internacional de 2019. Ver artigo
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