Ao fechar este livro a frase que ressoa é: nunca devemos voltar ao lugar onde fomos felizes.
Neste magnífico exercício literário, publicado pela Sextante e com tradução de José Lima, Philippe Besson revela-nos um narrador mentiroso, que facilmente cria histórias e situações em torno das pessoas com que se cruza, pelo que o leitor fica prevenido desde logo para a possibilidade de toda a narrativa ser, também, uma mentira. Mas uma invenção que ainda que falsa nos arrebata completamente, que nos aperta o coração, e cujo final pode provocar lágrimas. Um sentimento de perda tão forte quanto o que o narrador experiencia.
Em França, no ano de 1984, dois jovens de mundos completamente distintos no Liceu acabam por se aproximar, atraídos pela sincronia de olhares fugidios e desencontrados, e apaixonam-se. Vinte e três anos depois, o narrador, agora um conhecido escritor, encontra um jovem que é estranhamente parecido com Thomas, o objecto da sua paixão adolescente.
As mentiras do título parecem adquirir um duplo sentido, conforme prosseguimos a leitura. Se, por um lado, a mãe do narrador, inquieta, o advertia: «deixa-te de mentiras, dizia mentiras em vez de histórias, pois ele sempre gostara de «inventar vidas a desconhecidos» com quem se cruza (p. 9), por outro lado, a mentira pode representar a própria história que alguns homens criam para si próprios, ao seguir os preceitos e expectativas ditados pela família – herdam o seu legado, casam, constituem a sua própria família.
«Penso naqueles com quem me cruzei por ocasião de alguns encontros em livrarias, esses homens que me confessam terem mentido a si próprios durante anos e anos (…).
Aqueles que não deram esse passo, que não procuraram pôr-se de acordo com a sua natureza profunda, não são forçosamente medrosos, serão talvez desamparados, desorientados; perdidos como se está perdido no meio de uma floresta demasiado vasta ou demasiado densa ou demasiado escura.» (p. 155)
Evitando confundir o narrador, também ele escritor, com o autor, Philippe Besson é um romancista francês de renome, nascido em 1967. Este livro, a ser adaptado para o cinema, venceu o Prémio Maison de la Presse, Melhor Livro LGBTQ da Oprah Magazine, Escolha do Editor da New York Times Book Review e Melhor Romance Gay da The Advocate. Ver artigo
O Silêncio das Mulheres, da autoria de Pat Barker, vencedora do Booker Prize, com tradução de Tânia Ganho, foi recentemente publicado pela Quetzal.
Pat Barker dá voz na primeira pessoa a Briseida, rainha de Lirnesso – cidade tomada anos antes de Tróia –, que é reclamada como troféu de guerra por Aquiles, tornando-se sua escrava, e reconta no feminino a Ilíada dos guerreiros gregos e troianos, que conta os feitos e façanhas dos heróis masculinos sobejamente conhecidos, como Aquiles, Pátroclo, Ájax, Odisseu (Ulisses), Páris, Agamémnon, Menelau ou Heitor: «diz-me a experiência que os homens são estranhamente cegos à agressividade nas mulheres. Eles é que são os guerreiros, com os seus elmos e couraças, as suas espadas e lanças, e parecem não ver as nossas batalhas; ou preferem não as ver. Se tomassem consciência de que não somos as criaturas brandas por que nos tomam, talvez isso lhes perturbe a paz de espírito.» (p. 18)
A narrativa flui como se se tratasse de um depoimento prestado por Briseida, em que a interpelam e questionam, e onde não faltam interjeições, como «Ai» e «Oh». Em alguns capítulos, contudo, percebemos que a perspectiva descentra-se de Briseida e centra-se em Aquiles, ainda que a narração seja na terceira pessoa.
A prosa foca-se mais na narração do que na descrição, mas há passagens absolutamente arrebatadoras, mesmo quando se trata de descrever o grotesco da guerra: «Durante uns momentos, os cães arreganhariam os dentes e rosnariam aos pássaros negros, que descreviam círculos no céu,e aos abutres desajeitados e expectantes. De quando em vez, os pássaros erguer-se-iam todos no ar e, depois, pousariam lentamente, assentando como farrapos de tecido queimado, restos carbonizados das sumptuosas tapeçarias que antes forravam as paredes do palácio. Os cães empaturrar-se-iam até vomitarem e, em seguida, escapulir-se-iam da cidade, fugindo dos incêndios a cidade, e então seria a vez dos pássaros.» (p. 30)
Guerra essa que tem tanto de desumano como de entediante, também feita de momentos raros, mesmo quando se arrastam por 10 anos: «Por vezes, em plena batalha, há um momento de acalmia, em que o tempo abranda, os gritos e o clamor esmorecem e uma pessoa vê as veias vermelhas nos olhos de um inimigo e sabe – não é acredita, nem tem esperança – sabe que é impossível falhar. Esses momentos são raros. Nos restantes noventa e cinco por cento do tempo, a guerra não passa de uma labuta entediante e sangrenta, composta em partes iguais de tédio e horror, mas depois surge novamente esse momento brilhante, em que o estridor da batalha se esbate e o corpo se torna uma vara que liga céu e terra.» (p. 234)
O Silêncio das Mulheres reescreve a Guerra de Tróia no feminino. Esta reconstrução de uma das histórias basilares da civilização ocidental, contada a partir da perspectiva da mulher, não é todavia inédita. Tal como fez em As Brumas de Avalon, ao reescrever a lenda do Rei Artur a partir da perspectiva de Morgana, a bruxa, Marion Zimmer Bradley também recontou o mito da guerra de Tróia, em Presságio de Fogo – um romance de grande fôlego, centrando a narrativa em Cassandra, a profetisa, irmã de Páris, o que raptou Helena e desencadeou a guerra dos mil navios, provocando a ruína da cidade de Tróia, que se achava inexpugnável. Ver artigo
Para agradar a um público mais exigente há que ler e conhecer de tudo um pouco, pelo que me aventurei por um género praticamente novo para mim – o romance policial – com Lisboa Reykjavík, da autora islandesa Yrsa Sigurdardóttir – com tradução de Miguel Freitas da Costa. Reeditado pela Quetzal, inicialmente editado com o título O Silêncio do Mar em 2016, é considerado o seu melhor romance – e o mais assustador.
Tudo me cativou no livro: a ambiência misteriosa, a qualidade da prosa, e ter Lisboa como cenário de partida.
O romance reparte-se em 2 planos temporais. Começa pelo fim, quando um iate de luxo chega à marina de Reykjavík sem ninguém a bordo, abalroando a proa contra o pontão, e Thóra, uma advogada, é contratada pelos pais de Ægir, um dos passageiros, a bordo do iate por mero acaso, para tratar da sua apólice de seguro, que é, aliás, bastante avultada. Contudo o valor do seguro é apenas a ponta do icebergue e o interesse de Thóra pelo caso rapidamente ultrapassa o da polícia, enquanto investiga o que aconteceu à tripulação e à família que seguia no Lady K, que zarpou de Lisboa com destino à Islândia com 7 passageiros, mas chega sem um único sobrevivente. Em capítulos alternados, ficamos ainda a conhecer a incrível viagem pela perspectiva de Ægir (na mitologia nórdica, curiosamente, representa o filho dos mares e oceanos).
O policial rapidamente se assemelha a um thriller psicológico ou de terror, conforme, um a um, os passageiros vão aparecendo mortos, e onde não faltam elementos sobrenaturais para desconcertar o leitor, como visões de fantasmas, perfumes fortes no ar, e a criança de dois anos, logo nas primeiras páginas, que ao ver o iate anuncia instintivamente que os pais e as irmãos morreram. A sequência alternada do romance confere-lhe uma natureza cinematográfica, especialmente quando salta certas partes, para surpreender o leitor, ou quando um capítulo da narrativa da investigação de Thóra termina com uma pista que será explicada no capítulo seguinte da narrativa da viagem. Mas vinga a qualidade da prosa, a complexidade das personagens, e uma fina ironia e humor na escrita. Talvez por isso mesmo, o romance foi galardoado com o Prémio Petrona 2015, que distingue literatura policial escandinava (islandesa, norueguesa e sueca). E são mais de 400 páginas de puro deleite e mistério.
Yrsa Sigurdardóttir vive com a família em Reykjavík, diretora de uma das maiores empresas de engenharia da Islândia, e os seus livros estão no topo das listas de bestsellers em todo o mundo, muitos deles adaptados ao cinema e televisão. A Quetzal tem ainda publicados mais 5 romances da autora. Ver artigo
Se já deu por si a olhar uma sala cheia de gente em que subitamente todos estão a olhar para o telemóvel, ou a sentir ansiedade assim que o telefone toca enquanto está no banho, ou a entrar numa torrente de mensagens com uma conversa que se podia resolver com um telefonema de 1 minuto, ou a achar que não precisa de visitar aquele amigo doente ou o bebé recém-nascido de uma amiga, porque afinal estão em contacto nas redes sociais e já viu fotos e deixou um comentário banal, então este pode ser o livro certo para si. Com o selo da Actual (Grupo Almedina), Minimalismo Digital – Viver melhor com menos tecnologia, de Cal Newport, é um estudo que prossegue a senda de Deep Work – A concentração máxima num mundo de distrações, onde o autor faz uma análise premente de como a tecnologia interfere actualmente com o nosso comportamento e interacção social. Baseado em diversa bibliografia, em estudos de caso e numa experiência que o próprio autor orientou enquanto escrevia este livro, em que 1600 pessoas se comprometeram a uma redução ou «desatafulhar digital», Cal Newport apresenta-nos pedaços de informação preocupante ao mesmo tempo que nos deixa algumas práticas de desintoxicação digital. Por exemplo, quando se verificou que a ansiedade cresceu entre os jovens a única variável que o podia explicar era o aumento do número de jovens com smartphone, sendo que a comunicação digital persistente está a perturbar a sua química cerebral. Quando damos por nós a deslizar o polegar ao longo dos ecrãs estamos no fundo a adquirir vícios comportamentais tão nocivos como o uso de substâncias químicas ou a agir como um jogador num casino agarrado a uma slot machine, sempre à espera de mais qualquer coisa, mais um gosto, mais um vídeo, mais uma distracção ou um reforço emocional vazio. O Homem é, por natureza, um animal social (Aristóteles dixit) e evoluiu ao longo dos tempos até conseguir fazer uma leitura atenta da mente do outro, pois os nossos cérebros são capazes de processar «enormes quantidades de informação acerca de pistas analógicas subtis como a linguagem corporal, as expressões faciais e o tom de voz» (p. 126». Paradoxalmente, nunca o Homem esteve tão ligado ao mundo como agora, o que torna impossível difícil viver momentos de solidão com tudo o que ela acarreta de regenerativo.
O objectivo deste livro não é fazê-lo voltar atrás no tempo e viver como um amish mas sim ajudá-lo a tirar o máximo partido do imenso potencial das novas tecnologias sem se deixar governar por estas. Até porque quando olhamos para o ecrã do telefone não o fazemos apenas como resposta reflexa ao tédio, mas também porque temos vindo a ser subtilmente manietados pelos interesses dos conselhos de administração de empresas de um grupo restrito de investidores em tecnologia digital. Ver artigo
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