Fábrica de mentiras – Viagem ao mundo das fake news, de Paulo Pena, é um livro de leitura urgente, publicado pela Objectiva. Jornalista premiado e investigador do Diário de Notícias, o autor nasceu em Lisboa em 1973, foi editor da revista Visão, e conduziu uma investigação cuidada em que disseca notícias falsas, que são usualmente as mais amplamente difundidas e comentadas nas redes sociais, e denuncia alguns sítios electrónicos que se dedicam à desinformação.
Hoje aquilo que é considerado viral no mundo digital significa que é um êxito, o que não deixa de ser curioso se considerarmos estes tempos estranhos em que é decretada uma pandemia. E o que Paulo Pena faz é justamente demonstrar como as notícias falsas são, também elas, uma epidemia global, capaz de destabilizar sistemas democráticos e alimentar o ódio que engrossa as fileiras da extrema-direita. Essa é aliás uma das prioridades que deveria ser em conta actualmente pelos governos: controlar a desinformação viral, que pode ser fatal, sobre este novo vírus. Até porque fenómenos como o Brexit, a eleição de Trump ou de Bolsonaro são justamente sintomas do efeito da desinformação e das mentiras propagadas como verdades, determinantes para decidir eleições e provocar resultados inimagináveis.
Em Portugal, onde 63% das pessoas afirmam manter-se informadas consultando as notícias disseminadas nas redes sociais, existem mais de 40 sites especialmente destinados a produzir informação falsa, além de também se dedicam a copiar o que outros jornais escrevem. Mas para que as fake news se propaguem e cheguem a um número estimado em 2,5 milhões de utilizadores de redes sociais é preciso que esta informação seja partilhada pelas massas. A publicidade já era a principal fonte de receitas do jornalismo, além do público que paga e subscreve o acesso à informação, mas hoje qualquer anunciante pode recorrer directamente ao Facebook ou à Google para chegar ao público específico que lhe interessa, e por isso, uma mentira eficaz, ou um título inexacto e enganoso numa notícia é o melhor garante para um maior número de clicks que, por conseguinte, se traduzem em mais dinheiro para os autores.
Os nossos dados privados são hoje mercadoria valiosa, uma espécie de novo petróleo. E estão disponíveis online, podendo ser analisados por algoritmos que trabalham num sistema de inteligência artificial que filtram a informação que “sabem” que nos pode interessar, enredando-nos nas malhas desta rede digital: «o negócio somos nós. Ao entregarmos a estas plataformas, gratuitamente, os nossos dados, informação não editada sobre nós e sobre a vida que levamos, permite-lhes oferecer-nos, em troca, os serviços que elas criaram. Pode parecer justo e inconsequente, mas, na verdade, é o equivalente moderno daqueles encontros comerciais entre europeus e nativos americanos no século XVI: um colar de contas de vidro em troca de ouro.» (p. 16) Ver artigo
Se há livro cuja leitura se revelou bastante adequada a estes estranhos tempos que vivemos, não hesito em apontar este livro que é já um clássico. O último livro de Italo Calvino publicado em vida (cuja obra é editada entre nós pela Dom Quixote) parece representar uma indagação filosófica em torno de um sentido para o mundo, para as coisas do mundo, para o sentido de nós próprios no mundo. Com uma estrutura rigorosamente delineada, a narrativa reparte-se em 3 partes, que por sua vez se subdividem em 3 secções ou capítulos, que por conseguinte também se dividem de forma tripartida.
O senhor Palomar é um homem nervoso, tenso e inseguro, ou não vivesse ele num «mundo frenético e congestionado» (p. 15), apesar de tentar manter as suas sensações sob controlo e reduzir ao máximo as suas relações com o mundo exterior. Mas é também no mundo exterior que ele procura um sentido para o mundo – e não é por acaso que tem o nome de um famoso observatório da Califórnia, hoje conhecido como telescópio Hale – a partir da observação dos mais variados elementos: uma onda; a espada de luz solar que cai no mar; um seio feminino (a que ele tenta mostrar indiferença); o eros no choque de carapaças de duas tartarugas; os planetas e estrelas, vistos a olho nu; uma osga ou uma revoada de estorninhos; um prado; banha de ganso; queijos; etc.; etc…
E conforme Palomar procura deter-se apenas na superfície das coisas, observando-as do lado de fora, a sua observação conduz-nos às suas próprias indagações e meditações: «Palomar está distraído, deixou de arrancar as ervas daninhas, já não está a pensar no prado: pensa no universo. Está a tentar aplicar ao universo tudo aquilo que pensou a propósito do prado. O universo como cosmos regular e ordenado ou como proliferação caótica. O universo que talvez seja finito mas que é inumerável, instável nos seus confins, que se abre dentro de si a outros universos. O universo, conjunto de corpos celestes, nebulosas, poeiras, campos de força, interseções de campos, conjunto de conjuntos…» (p. 45)
O senhor Palomar é, muito certamente, o autor Italo Calvino – como se afirma aliás na contracapa do livro –, podendo este livro ser uma espécie de testemunho das suas mais ousadas e prementes inquietações existenciais ou meras reflexões levadas ao sabor do vento. Ver artigo
Gabriel planeia celebrar o octagésimo aniversário da mãe e, para isso, terá de contactar as suas duas irmãs Sonia e Andrea, com o propósito de reunir a família para este evento que deveria ser motivo de celebração e alegria. Depois de tanto tempo, um almoço de aniversário afigura-se a ocasião perfeita para se voltarem a juntar todos. Mas esta não é uma família dessa natureza. Se todas as famílias são felizes à sua maneira, esta sabe foçar particularmente bem na infelicidade e no rancor. Por isso mesmo esta sinopse enganosamente simples não pode dar conta da complexidade e singularidade deste romance.
Luis Landero constrói um poderoso romance polifónico, cuja maioria dos capítulos constitui diálogos, sempre por telefone, em que a conversa telefónica do momento alterna ainda, por vezes de modo sobreposto, com conversas anteriores que estão a ser agora relatadas ou recontadas ao telefone, pois quer Sonia quer Andrea, assim que ficam a par da intenção do irmão, ligam para a cunhada Aurora, a mulher de Gabriel, com quem desabafam as suas mágoas e os seus rancores. E é nesses telefonemas de Sonia, Andrea e, por vezes, até da mãe delas para Aurora, a confidente, sempre atenciosa e atenta, que estas mulheres destilam a peçonha que, décadas depois, continuam a conseguir extrair de velhos episódios familiares, retratados conforme a perspectiva de cada uma: «cada qual com a sua história, horas e horas de histórias intermináveis, quase todas cheias de minúcias mil vezes ouvidas e que elas nunca se cansavam de repetir, com as suas versões contraditórias, onde não havia episódio, por mais pequeno que fosse, que não tivesse variantes, que não rebatessem ou negassem entre elas, que não admitissem os mais prolixos e tortuosos comentários, de modo que Aurora tinha a esgotante impressão de estar imersa num pesadelo de que era impossível despertar.
E assim, ano após ano, todos os dias de todos os meses, a qualquer hora, foi ficando a saber o argumento exato das vidas deles.» (p. 195)
Um só acontecimento origina assim várias versões, relatos antagónicos, sentimentos díspares, conforme é lembrado por cada uma das personagens. A narrativa abre e fecha com Aurora, que pelo seu sorriso bonito e triste, o seu ar terno e melancólico, sempre se revelou uma boa confidente para as histórias dos que com ela convivem. Mas Aurora coloca em risco a sua própria inocência e paz de espírito quando finalmente percebe que não há histórias inocentes, enquanto se deixa enredar nas teias de aranha destas histórias familiares: «(…) todas as versões de todas as histórias acabam por confluir em Aurora. Ela é, na verdade, a única dona absoluta da história, aquela que sabe tudo, o enredo e o avesso do enredo, porque só confiam nela e só falam com ela, com todo o tipo de detalhes, sem vergonha nem reparos, todos e cada um dos implicados nesta história, que começou por ser trivial e até festiva e que acabou em ruína e em desastre, como ela intuiu desde o primeiro momento.» (p. 13)
Uma forte particularidade do romance é o modo como a vida das personagens é sempre tratada como uma história, em que todas elas são autoras das suas próprias narrativas, mesmo quando essa é uma narrativa vazia: «Nunca, nunca, mesmo que não aconteça nada, as pessoas param de contar a sua história e, se o Inferno existir, também nele continuarão a contá-la ao longo de séculos e mais séculos, dando corda uma e outra vez ao brinquedo das palavras, tentando compreender minimamente o mundo apalpando o absurdo da vida em busca talvez de um botão que abra o seu fecho cego, como a gruta de Ali Babá ante o conjuro da palavra mágica, revelando-nos o grande tesouro da razão, da luz, do real sentido das coisas…» (p. 199)
A acção decorre ao longo de seis dias apenas, em que os segredos familiares são desenterrados, até que se desvela uma história particularmente macabra em torno de um homem que tem em casa um museu de brinquedos e que trata a mulher como se fosse a sua criança…
Luis Landero, considerado um dos nomes essenciais da literatura espanhola, nasceu em Badajoz, em 1948. Licenciado em Filologia Hispânica pela Universidad Complutense, lecionou Literatura na Escuela de Arte Dramática de Madrid e foi professor convidado em Yale. Estreou-se na literatura em 1989, com o romance Jogos da Idade Tardia (Prémio da Crítica e Prémio Nacional de Narrativa 1990). Chuva Miúda, agora publicado pela Porto Editora e com tradução de Miguel Filipe Mochila, foi considerado pela crítica o Melhor Romance do Ano em Espanha. Ver artigo
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