O Silêncio das Mulheres, da autoria de Pat Barker, vencedora do Booker Prize, com tradução de Tânia Ganho, foi recentemente publicado pela Quetzal.
Pat Barker dá voz na primeira pessoa a Briseida, rainha de Lirnesso – cidade tomada anos antes de Tróia –, que é reclamada como troféu de guerra por Aquiles, tornando-se sua escrava, e reconta no feminino a Ilíada dos guerreiros gregos e troianos, que conta os feitos e façanhas dos heróis masculinos sobejamente conhecidos, como Aquiles, Pátroclo, Ájax, Odisseu (Ulisses), Páris, Agamémnon, Menelau ou Heitor: «diz-me a experiência que os homens são estranhamente cegos à agressividade nas mulheres. Eles é que são os guerreiros, com os seus elmos e couraças, as suas espadas e lanças, e parecem não ver as nossas batalhas; ou preferem não as ver. Se tomassem consciência de que não somos as criaturas brandas por que nos tomam, talvez isso lhes perturbe a paz de espírito.» (p. 18)
A narrativa flui como se se tratasse de um depoimento prestado por Briseida, em que a interpelam e questionam, e onde não faltam interjeições, como «Ai» e «Oh». Em alguns capítulos, contudo, percebemos que a perspectiva descentra-se de Briseida e centra-se em Aquiles, ainda que a narração seja na terceira pessoa.
A prosa foca-se mais na narração do que na descrição, mas há passagens absolutamente arrebatadoras, mesmo quando se trata de descrever o grotesco da guerra: «Durante uns momentos, os cães arreganhariam os dentes e rosnariam aos pássaros negros, que descreviam círculos no céu,e aos abutres desajeitados e expectantes. De quando em vez, os pássaros erguer-se-iam todos no ar e, depois, pousariam lentamente, assentando como farrapos de tecido queimado, restos carbonizados das sumptuosas tapeçarias que antes forravam as paredes do palácio. Os cães empaturrar-se-iam até vomitarem e, em seguida, escapulir-se-iam da cidade, fugindo dos incêndios a cidade, e então seria a vez dos pássaros.» (p. 30)
Guerra essa que tem tanto de desumano como de entediante, também feita de momentos raros, mesmo quando se arrastam por 10 anos: «Por vezes, em plena batalha, há um momento de acalmia, em que o tempo abranda, os gritos e o clamor esmorecem e uma pessoa vê as veias vermelhas nos olhos de um inimigo e sabe – não é acredita, nem tem esperança – sabe que é impossível falhar. Esses momentos são raros. Nos restantes noventa e cinco por cento do tempo, a guerra não passa de uma labuta entediante e sangrenta, composta em partes iguais de tédio e horror, mas depois surge novamente esse momento brilhante, em que o estridor da batalha se esbate e o corpo se torna uma vara que liga céu e terra.» (p. 234)
O Silêncio das Mulheres reescreve a Guerra de Tróia no feminino. Esta reconstrução de uma das histórias basilares da civilização ocidental, contada a partir da perspectiva da mulher, não é todavia inédita. Tal como fez em As Brumas de Avalon, ao reescrever a lenda do Rei Artur a partir da perspectiva de Morgana, a bruxa, Marion Zimmer Bradley também recontou o mito da guerra de Tróia, em Presságio de Fogo – um romance de grande fôlego, centrando a narrativa em Cassandra, a profetisa, irmã de Páris, o que raptou Helena e desencadeou a guerra dos mil navios, provocando a ruína da cidade de Tróia, que se achava inexpugnável. Ver artigo
Para agradar a um público mais exigente há que ler e conhecer de tudo um pouco, pelo que me aventurei por um género praticamente novo para mim – o romance policial – com Lisboa Reykjavík, da autora islandesa Yrsa Sigurdardóttir – com tradução de Miguel Freitas da Costa. Reeditado pela Quetzal, inicialmente editado com o título O Silêncio do Mar em 2016, é considerado o seu melhor romance – e o mais assustador.
Tudo me cativou no livro: a ambiência misteriosa, a qualidade da prosa, e ter Lisboa como cenário de partida.
O romance reparte-se em 2 planos temporais. Começa pelo fim, quando um iate de luxo chega à marina de Reykjavík sem ninguém a bordo, abalroando a proa contra o pontão, e Thóra, uma advogada, é contratada pelos pais de Ægir, um dos passageiros, a bordo do iate por mero acaso, para tratar da sua apólice de seguro, que é, aliás, bastante avultada. Contudo o valor do seguro é apenas a ponta do icebergue e o interesse de Thóra pelo caso rapidamente ultrapassa o da polícia, enquanto investiga o que aconteceu à tripulação e à família que seguia no Lady K, que zarpou de Lisboa com destino à Islândia com 7 passageiros, mas chega sem um único sobrevivente. Em capítulos alternados, ficamos ainda a conhecer a incrível viagem pela perspectiva de Ægir (na mitologia nórdica, curiosamente, representa o filho dos mares e oceanos).
O policial rapidamente se assemelha a um thriller psicológico ou de terror, conforme, um a um, os passageiros vão aparecendo mortos, e onde não faltam elementos sobrenaturais para desconcertar o leitor, como visões de fantasmas, perfumes fortes no ar, e a criança de dois anos, logo nas primeiras páginas, que ao ver o iate anuncia instintivamente que os pais e as irmãos morreram. A sequência alternada do romance confere-lhe uma natureza cinematográfica, especialmente quando salta certas partes, para surpreender o leitor, ou quando um capítulo da narrativa da investigação de Thóra termina com uma pista que será explicada no capítulo seguinte da narrativa da viagem. Mas vinga a qualidade da prosa, a complexidade das personagens, e uma fina ironia e humor na escrita. Talvez por isso mesmo, o romance foi galardoado com o Prémio Petrona 2015, que distingue literatura policial escandinava (islandesa, norueguesa e sueca). E são mais de 400 páginas de puro deleite e mistério.
Yrsa Sigurdardóttir vive com a família em Reykjavík, diretora de uma das maiores empresas de engenharia da Islândia, e os seus livros estão no topo das listas de bestsellers em todo o mundo, muitos deles adaptados ao cinema e televisão. A Quetzal tem ainda publicados mais 5 romances da autora. Ver artigo
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