Se o disseres na montanha foi o romance de estreia de James Baldwin, publicado em 1953 e só agora traduzido por Isabel Lucas e publicado entre nós pela Alfaguara. O autor nasceu em 1924 em Nova Iorque, cresceu no bairro de Harlem, e viajou para Paris em busca de liberdade para se poder encontrar como homem negro e homossexual.
A narrativa centra-se no dia do décimo quarto aniversário de John Grimes, dia em que se cumpre também o vaticínio de que John um dia quando crescesse seria pregador tal como o seu pai (na verdade, o padrasto), que lhe diz ser feio, o mais baixo da turma, o rapaz que não tem amigos.
«A John, que se destacava na escola – mas não em matemática nem em basquetebol, como Elisha -, foi dito que teria um grande futuro. Que poderia tornar-se o Grande Líder do Povo de Deus. John não estava assim tão interessado no seu povo e menos ainda em liderá-lo no que quer que fosse, mas a frase tantas vezes repetida surgiu na sua mente como um grande portão de ferro que se abre para ele e dá para um mundo onde as pessoas não viviam na escuridão do pai (…)» (p. 22)
Na manhã de um sábado de Março, em 1935, John reflecte na admoestação pública que o seu amigo Elisha e Ella Mae receberam num sermão de domingo, acusados de corporizarem o pecado entre a congregação. No momento dessa denúncia pública termina a possibilidade de estes dois jovens continuarem a encontrar-se, ainda que de forma inocente, a não ser um dia mais tarde ao abrigo do casamento, para terem filhos e educá-los na igreja. E é também nesse domingo, dias antes do seu aniversário, que «John percebeu que aquela era a vida que o esperava – que teve realmente consciência de alguma coisa não muito distante, mas iminente, a aproximar-se de dia para dia» (p. 20).
Inspirada na sua própria vida, esta história retrata a luta interior de um jovem que teme e odeia o padrasto, ele próprio um homem imperfeito e violento, enquanto simultaneamente o encara como um modelo a seguir. Aliado a esse dilema, persiste ainda outra clivagem maior, um segredo ainda inominável mas que é já perceptível ao longo deste romance, mas que apenas irrompe numa outra obra do autor, que será publicada ainda neste ano de 2020 pela Alfaguara – O Quarto de Giovanni. Nunca é expresso de forma absoluta e incontornável, mas ao longo deste livro, especialmente na primeira parte, mais centrada na perspectiva de John, os indícios homoeróticos na relação entre John e Elisha são vários. John pensa em Elisha «que era alto e belo, que jogava basquetebol e que aos onze anos tinha sido salvo das impensáveis plantações do Sul» (p. 20). John assume que pecou. «Apesar dos santos, do pai e da mãe, dos avisos que ouviu desde o princípio dos seus dias. Pecara com as suas mãos um pecado difícil de perdoar. Na casa de banho da escola, a pensar em rapazes, mais velhos, maiores, valentes, que faziam apostas uns com os outros sobre quem conseguia o maior arco de urina, e viu acontecer em si uma transformação de que não se atrevia a falar.» (p. 21) Porém, a par da consciência de John do pecado que o marca, e que o diminui aos olhos dos outros, em particular do padrasto, reside também em si a percepção de que se demarca dos outros por motivos diferentes, como aconteceu um dia quando aos 5 anos a directora da escola vê a sua caligrafia no quadro e lhe diz «És um rapaz muito esperto, John Grimes» (p. 23)
Um rapaz esperto num mundo de brancos, em que para combater a injustiça, como a falsa acusação que recai sobre Richard, o verdadeiro pai de John, Elizabeth, a sua mãe, mantinha «a cabeça levantada, o olhar em frente e sentia a pele assentar sobre os ossos como se usasse uma máscara» (p. 189).
«Olhou para as ruas calmas e soalheiras e, pela primeira vez na vida, odiou aquilo tudo – a cidade branca, o mundo branco. Naquele dia, não foi capaz de pensar numa única pessoa decente no mundo inteiro. Sentou-se ali e esperou que um dia Deus, através de torturas inconcebíveis, os levasse à humilhação total e lhes fizesse saber que os rapazes negros e as raparigas negras, que tratavam com tanta condescendência, tanto desdém, e tão bom humor, tinham corações como os seres humanos, corações mais humanos do que os deles.» (p. 193)
Um mundo fechado, em que um homem não pode fugir ao isolamento e à diferença que a cor da sua pele lhe impõe, John carrega ainda essa outra cruz, a de amar o seu semelhante.
Go tell it on the mountain é o nome de uma música gospel, sobre o nascimento de Cristo, aqui possivelmente associada à conversão de John, ao seu renascimento em Cristo. E como é próprio de um sermão, como o Sermão da Montanha que disserta sobre os valores e princípios de uma vida cristã, a prosa de James Baldwin entretece simbolismo e lirismo. E, neste caso, a fúria sexual de um jovem a desabrochar é temperada pelo erotismo da sublimação do desejo. Ver artigo
Voar no Quarto Escuro parece ter começado como um livro de contos. Conta a história de Eduarda, uma viúva que se casa segunda vez como forma de refazer a vida, a sua e a da filha de 11 anos. Alice, que prepara o funeral da mãe e procura esconder desejos que há muito se tornaram óbvios. Celeste, que gosta de ser admirada, por homens e por mulheres, mas prefere manter-se à distância. Catarina, que coloca no afã da limpeza e do desvelo pelo senhor Antero um chamamento de amor não-correspondido. Adelaide, a médica que recorre ao prostituto de vinte anos para encontrar a intimidade que o marido lhe nega. Ema, a mulher de poder que gera uma criança morta, prenúncio de um casamento em ruína. Beatriz, dilacerada entre o não-sentir dos antidepressivos e a necessidade de sentir demasiado para poder escrever. Célia, a ama e testemunha de um casamento de revista entre duas vidas desencontradas. Cada trecho narrativo corresponde a uma personagem feminina. Cada texto designado pelo nome da personagem central. Mas Voar no Quarto Escuro, romance de estreia de Márcia Balsas, publicado pela Minotauro, não é um livro de contos. Assim o acusa o encadeamento temporal entre as micronarrativas que se complementam e iluminam reciprocamente, refractando a realidade destas mulheres a partir de várias perspectivas; os nomes que começam a transitar de capítulo para capítulo; a forma como gradualmente na narrativa de uma das personagens se faz ouvir a voz de outra das oito mulheres, como se a narrativa começasse a oscilar entre a multitude de personagens e admitisse a impossibilidade de continuar a prender cada história num espaço estanque. Um romance que tem muito pouco de romântico, pois as relações interpessoais entre mulheres e homens são sempre desencontradas, áridas, impessoais. Até a relação meramente transaccional de Adelaide, talvez a personagem mais central de todas as oito, chega ao fim quando o jovem prostituto parece envolver-se amorosamente com o marido de outra das personagens. E quando há espaço para um canto de amor, este subsume-se a uma breve passagem quando Celeste sente que pode vir a apaixonar-se por Alice: «talvez prefira as mulheres, é maior a cumplicidade partilhada, os carinhos são mais compensadores, há uma meiguice que o corpo do homem não consegue dar» (p. 68).
A unir estas mulheres atravessa-se uma vida de solidão, de dor psicológica e física, de silente desespero, em que o final enigmático do primeiro capítulo sobre Eduarda pode simbolizar o catalisador que desencadeia uma reacção em cadeia na vida de todas estas mulheres, cujas vidas se tocam sem elas sequer o sentirem. Entre o clarão de um relâmpago e o disparo de uma bala, a morte de Eduarda, vítima de violência doméstica, e do seu agressor, no que se afigura um acto divino, pode revelar-se o fim de uma era de submissão e de convencionalismos mudos e simbolizar o sacrifício salvífico das vidas destas mulheres que restam para contar aquela que é também a sua história. Talvez nem todas as oito mulheres, Eduarda inclusive, consigam alcançar a salvação. Muitas vezes sentindo-se invisíveis, outras vezes transparentes, como uma «mulher-vidro» (p. 21), cada uma destas mães, filhas, amigas, colegas, amantes, profissionais, carrega a sua própria cruz e o seu segredo. Contudo, cada história é única e por isso não há aqui lugar nem sequer para o conforto de uma irmandade partilhada: «Poderá haver paralelismos nas suas vidas, pensa Adelaide, mas nenhuma se sente melhor por o ter percebido (…). Não há utilidade nessa informação, mais uma coincidência escusada. Noutras alturas, seria uma bandeira a perseguir, a amizade que teria de nascer, apenas por acreditar nessas inevitabilidades. Agora, inevitabilidade é outra coisa, para ela. É deixar correr, como o tempo» (p. 135).
Márcia Balsas nasceu em Coimbra em 1977, autora do blogue literário Planeta Márcia, e venceu o Prémio Novos Talentos Fnac em 2018 com o conto «Ponto de Fuga». Ver artigo
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