Se não leu Manual para Mulheres de Limpeza ou Anoitecer no Paraíso, é possível que este livro lhe pareça incompleto, até porque é uma colação de fragmentos. Mas se conhece os contos desta autora nascida no Alasca em 1936 e que alcançou notoriedade 11 anos após a sua morte, com a publicação em 2015 dos seu contos escolhidos em Manual para Mulheres de Limpeza, vai gostar de devassar um pouco da intimidade desta autora, cuja vida, percebe-se aqui, serviu de cenário à sua escrita.
Na primeira parte, que dá nome ao livro, a autora rememora uma série de instantâneos da sua vida, ilustrados com fotos do álbum de família. São breves reminiscências das inúmeras moradas por onde passou, desde a casa onde viveu nos primeiros anos de vida, passando pela sua primeira memória, até à última frase incompleta de um manuscrito inacabado (em consequência da sua morte em 1965), em que relatava uma viagem pelo México com o marido e os filhos. A escrita é clara, contida, como quem põe em ordem o registo de uma vida, ocasionamente iluminada por passagens em que explana a sua paixão pela escrita, como quando visitava com o pai um velhote e colava nas paredes páginas de revistas, dispostas aleatoriamente, como um texto fragmentado que era preciso repôr para dele retirar sentido: «Creio que esta foi a minha primeira lição sobre literatura, sobre as infinitas possibilidades da criatividade.» (p. 31)
A segunda parte do livro consiste numa selecção de cartas – Berlin escrevia imensas –, numa escrita torrentosa, quase desconexa, até porque não se sabe ao que responde a autora, mas também muito autocentrada, pondo a nu uma vida turbulenta que parece nunca lhe pesar. A sua honestidade é desarmante, expondo sem comiseração o esboço de uma autobiografia possível, em que alude ao marido toxicodependente, ao seu alcoolismo, a uma das suas várias passagens pela prisão, depois de passar a infância e juventude em dezenas de casas diferentes, pois mudava constantemente de cidade e até de país, como quando viveu no Chile, e no México já em adulta. As próprias memórias que lhe ficaram, entre uma mãe que mal saía da cama e uma avó que também não era boa dona de casa, não são as mais luminosas: «A casa cheirava a enxofre, roupa suja húmida, cigarros, uísque, insecticida Flit, comida estragada. Não havia frigorífico, só uma geladeira que tinha sempre qualquer coisa podre lá dentro.» (p. 41)
Entre 1971 e 1994, Lucia Berlin trabalhou como professora, mulher de limpeza, telefonista e assistente médica, sem nunca parar de escrever, nomeadamente pelas noites dentro, sentada à mesa da cozinha, depois de deitar os seus 4 filhos. O poeta Edward Dorn, a quem dirige a maioria das suas cartas, foi uma forte influência na sua vida e escrita, e concedeu a Lucia a oportunidade de trabalhar como escritora convidada e depois como professora na unversidade, tendo-se tornado «extraordinariamente popular e acarinhada entre os alunos» (p. 193)
Nesta sua viagem, Lucia Berlin conviveu com inúmeros escritores e artistas, cuja identidade a tradutora Tânia Ganho teve o cuidado de elucidar em diversas notas explicativas que enriquecem o texto. A obra da autora está publicada pela Alfaguara. Ver artigo
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