Talvez devamos começar pelo jogo de ilusão patente na capa, pois ao título de Autobiografia segue-se a categorização de Romance, sobre um fundo de páginas em branco rasgadas. Não estamos portanto, pensa o leitor, no campo das biografias romanceadas. Talvez seja um daqueles romances em que se cruza a memória e vivência pessoal com a ficção? Mas depara-se o leitor, ao adentrar-se no romance, com uma epígrafe de Saramago em que se salvaguarda que «tudo é autobiografia» para depois, logo na primeira linha, encontrar a frase «Saramago escreveu a última frase do romance.» (p. 9) E, duas páginas depois, quando lemos que a campainha tocou, quem se levanta para abrir a porta é José. José Saramago, portanto, pensa o leitor, apenas para páginas adiante se aperceber que este José fala de um outro José (Saramago), que este José está a tentar escrever o seu segundo livro, e se sente partido em pedaços, enquanto o outro, Saramago, se sente completo, terminado de escrever o seu mais recente romance, intitulado Todos os Nomes, com um protagonista – de seu nome José… José, o deste livro, venceu ainda um prémio com o seu primeiro romance, à semelhança do autor, o verdadeiro, que ganhou o Prémio José Saramago (na sua segunda edição, em 2001, atribuído pela Fundação Círculo de Leitores) por volta da mesma idade do jovem escritor, personagem, com o seu primeiro livro. E este jovem escritor, José, será depois convidado a escrever a biografia do outro José, o Nobel, desdobrando-se este Autobiografia num universo literário de múltiplas realidades paralelas.
O jogo de espelhos mantém-se ao longo da narrativa, repartida em duas, mais ou menos alternadas, sendo que a história se centra mais em José do que em Saramago, enquanto o leitor vai desfiando o fio da narrativa, com as suas ideias e suspeitas, para se guiar neste exercício literário como num labirinto em que ficção e biografia se cruzam. E da mesma forma que apontamentos pessoais da vida de Saramago são reinventados num Saramago de papel, também nestas páginas se abrem outros umbrais por onde entram ainda na história figuras de carne e osso, ou inspiradas no seu referente real, como Pilar, assim como figuras de papel que conhecemos de outros romances de Saramago: o editor Raimundo Silva (História do Cerco de Lisboa); Lídia (O Ano da Morte de Ricardo Reis); Mau-Tempo (Levantado do Chão); Bartolomeu de Gusmão (Memorial do Convento); Fritz (A Viagem do Elefante).
Confluem ainda na narrativa espaços reais, da geografia íntima de Peixoto, como a Rua de Macau, e outras com nomes de ex-colónias, e muitas das personagens são ainda ressonâncias e referências de um espaço mais vasto, que assinalam a passagem de José (Luís Peixoto), o verdadeiro, pelo mundo, como é o caso de Cabo Verde. Mas a narrativa desvela mais e mais camadas, pois não só as personagens e situações são piscares de olho a um leitor atento de Saramago, como o Fritz d’A Viagem do Elefante cegar subitamente sem explicação ou esta Lídia, cabo-verdiana, ser uma lojista que em muito lembra a companhia de Ricardo Reis, em O Ano da Morte de Ricardo Reis, onde o duplicado de Pessoa (um desdobramento também ele afim de O Homem Duplicado de Saramago) se substancia num heterónimo tornado ortónimo.
Este é talvez um dos mais inovadores romances da literatura contemporânea portuguesa de um autor que se tem afirmado um pouco pelo mundo inteiro, e que já tem viajado para escrever. Uma homenagem nada beatificada a uma figura tutelar na sua escrita e na sua vida. A afirmação de que cada escritor é um protegido e um legado vivo de todos aqueles que o precederam e que pousam no seu ombro no acto da escrita.
José Luís Peixoto, autor publicado pela Quetzal, arriscou muito, tanto que, e esse é um dos momentos cruciais do livro que se pode designar genial, chega a fazer uma incursão no maravilhoso, com um episódio que tem tanto de insólito (tal como no universo saramaguiano sempre pronto a explorar os possíveis da história) como de simbólico e de homenagem, quando o anúncio do Prémio Nobel de 1998 desencadeia uma chuva… de livros de Saramago.
A leitura de Autobiografia é como uma refracção que se estende ao infinito, e que só se resolve com mais do que uma leitura do livro, onde podemos dar por nós a ler sobre a personagem (retirada de outro livro) que está a ler, agora, o mesmo livro que nós. Ver artigo
Todas as Almas, de Javier Marías, o mais recente livro de um dos mais destacados escritores espanhóis da actualidade, cuja obra tem vindo a ser publicada pela Alfaguara, é um canto melancólico de amor, de solidão, da sensação de ser estrangeiro.
O narrador sem nome, por vezes apelidado de «o espanhol», é professor de Tradução na universidade de Oxford e, dois anos depois, casado e pai de um menino, descreve-nos os dois anos que lá viveu, à semelhança do autor – pois aqui funde-se, ainda que apenas ligeiramente, autobiografia e ficção. Além de que mesmo enquanto divaga e relembra, a própria memória do narrador parece iludi-lo, como quando descreve um possível reencontro com uma jovem: «acho que me cruzei», «apercebi-me de que era ela – ou julguei aperceber-me», «não tenho a certeza se era ela» (p. 124).
Ainda que este romance evoque o ambiente de campus de outros romances académicos, onde se retratam figuras académicas com os seus tiques e idiossincrasias, Marías pinta um cenário onde todas as almas se cruzam e desencontram, como acontece, por exemplo, com a jovem da estação de comboio de Didcot, onde todos os encontros se revestem de uma aura de mistérios, pois em Inglaterra os desconhecidos não falam entre si. O narrador é um dos solteiros que predominam em Oxford, «outro perpetuador da velha tradição secular clerical daquele lugar imutável e inóspito e conservado em calda» (p. 156), e vive uma relação fugaz com Clare Bayes (uma das poucas mulheres professoras na universidade), medida a toques de sino e despertadores, por vezes uma «turbulenta e rápida meia hora entre duas aulas» (p. 97), nem sequer o suficiente para se despirem.
Esta não é uma história de amor, mas de desejo e solidão, pois este estrangeiro vive mais intensamente a lembrança e a expectativa de um encontro fugaz com a sua amante do que a relação amorosa que estabeleceu com ela. Um amante é sobretudo um ouvinte da nossa história, o reconhecimento de um eu num tu, contudo «os amantes são parcimoniosos, voluntariosos e entusiasmados, mas não durante muito tempo, e é assim que deve ser. Essa é a vossa função e também a vossa graça. (…) A nossa missão não é durarmos muito, não persistirmos, não permanecermos, porque se durarmos um pouco mais do que é suposto então lá se vai a graça e começam os sofrimentos e acontecem tragédias.» (p. 188) Ver artigo
À Mesa com os Filósofos é um fascinante tratado de Normand Baillargeon, filósofo canadiano, sobre a aparentemente improvável relação entre a comida e a filosofia, publicado pela Temas e Debates.
Na Grécia Antiga, um banquete ou simpósio reunia amigos para uma «reunião de bebedores», onde o mestre de cerimónias, além das libações, assegurava o encadeamento das conversas. Para o demonstrar, o autor serve-se de um diálogo platónico, em que Platão (428 a.C.) convive com Kant (1724), Khayyãm (1048), poeta persa apreciador de vinho, e Veblen (1857), economista e sociólogo americano. Menos de mil anos mais tarde, Tomás de Aquino disserta sobre a gula como pecado capital, num ambiente monástico em que à mesa não se fala e se faz do jejum um acto virtuoso. Kant, mais tarde, advoga que não se pode celebrar a cozinha como uma experiência estética, pois depende do gosto subjectivo de cada um, enquanto Brillat-Savarin explana que apesar de o prazer de comer satisfazer uma necessidade básica existe uma arte de comer e de degustar. Afinal, «o prazer da mesa é convivial e, como qualquer experiência estética, convida à partilha, à troca e à conversa, nomeadamente sobre os méritos dos pratos» (p. 203).
Este livro, que se pode degustar como um vinho leve, vai encorpando até se tornar adstringente, pois o que começa como uma evocação dos primórdios clássicos da filosofia, em que a comida e especialmente o vinho tiveram um papel central, rapidamente se actualiza numa arguta reflexão sobre a sociedade de hoje… dominada pela ilusória noção de que a enologia é uma ciência, quando as suas conclusões são subjectivas e manipuláveis; em que os supermercados estão concebidos para incitar a comprar tudo aquilo de que não precisamos ou nos é nocivo, pelo que se recomenda ao leitor exercitar o cepticismo e o estoicismo nas compras; em que proliferam programas de culinária e concursos a chef que advogam a cozinha como arte; onde as redes sociais inundadas por fotos de comida disputam protagonismo com corpos secos, cujo músculo, nos homens, ou magreza, nas mulheres, raiam a anorexia atlética; por discussões em torno dos benefícios de ser vegetariano ou vegan; por artigos que se contradizem em torno das propriedades milagrosas ou dietéticas de tal alimento; quais as vantagens e consequências de numa lógica económica se optar entre o locavorismo ou o libertarismo, ou seja, comprar produtos locais e da época num mercado local ou recorrer ao hipermercado onde as estações do ano se suspendem e o mundo inteiro está ao alcance da nossa barriga? Ver artigo
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