Neste livro originalmente publicado em 1975, e lançado em junho deste ano pela Dom Quixote, Norman Mailer parece escrever um ensaio sobre boxe, com o rigor e a profundidade de quem escreve um ensaio literário. Refere o narrador que «A estética do boxe é muito difícil de explicar, ainda que superficialmente» (p. 199). Mas se no primeiro capítulo um leitor que nada percebe de boxe se pode sentir atemorizado, a verdade é que a prosa e a ironia do autor depressa nos agarra e gradualmente constatamos que este é um hino ao boxe de pesos-pesados e especialmente a Muhammad Ali: «No auge da sua preparação, os pugilistas vivem em dimensões de aborrecimento que as outras pessoas nem conseguem imaginar. É assim que tem de ser. O aborrecimento cria uma impaciência com a vida e um desejo violento de a melhorar. O aborrecimento cria aversão à derrota.» (p. 17)
Mas este livro é também uma memória, pois foi o autor que acompanhou o combate entre Ali e George Foreman que se realizou em Kinshasa, no então Zaire, e que sofreu um atraso de um mês devido a um corte numa sobrancelha. É ainda uma análise à identidade afro-americana, que o autor começa finalmente a perceber através do boxe, e uma elegia ao povo africano ou, melhor dizendo, congolês. Bem como uma denúncia à corrupção que assola o país:
«Considerando que Mobutu também tinha ficado conhecido pelo seu pagode chinês nacionalista e comunista, pelas residências particulares que tinha na Bélgica, em Paris e em Lausanne, pelas contas em bancos suíços, pelo namoro em curso com os árabes e pelos notáveis serviços que a CIA lhe prestava em Kinshasa, incluindo, ao que se dizia, a montagem do golpe que o havia posto no poder, não era injusto pensar no presidente Mobutu como um eclético. (Era, na verdade, a quinta-essência do ecletismo!)» (p. 34)
Norman Mailer é claramente um fã de Ali, mas não se coíbe de o descrever de forma tão humana ao ponto de assinalar as suas falhas. Um peso-pesado que «flutua como uma borboleta, ferra como uma abelha» (p. 15), «um dos melhores lutadores corpo a corpo no ringue» (p. 13) que era também um fala-barato, servindo-se aliás disso mesmo para de alguma forma desarmar os seus oponentes, um boxeador que escrevia poemas que impingia à imprensa, talvez como arma de silenciar as suas perguntas idiotas. No final do segundo capítulo, Mailer revela que é ele o narrador, o autor convidado a cobrir o combate, o que parece granjear-lhe mais fama do que tinha antes como escritor. Mas Mailer, autodesignando-se apenas como o entrevistador, apelidado de «No’min Million» por Ali, narra sempre na terceira pessoa. Inclusivamente quando se narra a si mesmo, sem pudor de o fazer a uma luz pouco abonatória:
«Acontece que o nosso sábio tinha um vício. Escrevia sobre si próprio. Não só descrevia os acontecimentos que via, mas também o seu pequeno efeito pessoal sobre os acontecimentos. Isto irritava os críticos. Falavam de devaneios do ego e das desagradáveis dimensões do seu narcisismo. Tais críticas não o incomodavam excessivamente. Já tivera um caso amoroso consigo mesmo, e nele consumiu uma boa dose de amor.» (p. 36) Ver artigo
Em tempos foi feita uma sondagem aos portugueses e constatou-se que uma esmagadora maioria não se rendia aos livros de bolso. Talvez porque na altura ainda não fora lançada a magnífica Terra Incognita, uma fantástica colecção de livros de bolso da Quetzal destinados a viajantes, composta por títulos de autores como Paul Theroux, Geoff Dyer ou Bruce Chatwin.
Michel Onfray, filósofo e intelectual francês, fundador da Universidade Popular de Caen, gratuita e criada com base num manifesto seu, tem mais de 50 títulos, versando gastronomia, filosofia, pintura, história, literatura e geografia.
Este livro, tão pequeno quanto precioso, analisa os vários passos da viagem, desde os preparativos ao regresso, do rememorar da viagem e à revisitação pela escrita ao planear uma nova partida, pois a vida é uma errância e permanecer no mesmo local ou rever infindamente os mesmos lugares impede-nos de ler «o poema do mundo» na sua completude. Este não é um guia prático, mas sim um tratado filosófico, de início mais abstracto, num devaneio poético, até que os argumentos se começam a alinhavar numa sucessão lógica, onde o princípio do hedonismo e da liberdade são fios condutores.
Para Onfray, a viagem começa numa biblioteca ou numa livraria, o que honestamente me preocupou, atendendo à minha maníaca opção de nunca consultar nada sobre os destinos a que me proponho ou a que sou convidado a ir – mesmo quando parti um pouco às cegas para países desconhecidos onde iria viver durante anos (Polónia, Botsuana, cidade da Beira em Moçambique, tendo que evitar agilmente as várias tentativas de me impingirem vídeos e imagens dos lugares para onde me aventurava partir). Mas Onfray clarifica, felizmente, que uma «mera linha de um autor mesmo que mediano desperta mais o desejo pelo lugar descrito do que fotografias ou mesmo filmes, vídeos ou reportagens. Entre nós e o mundo, coloquemos prioritariamente as palavras.» (p. 26) Ao invés de limitar o nosso deslumbramento inicial ou iludir as expectativas com imagens, podemos, portanto, ficar com a vasta plurissignificação de um verso, onde pode caber toda a poesia do mundo por ver.
«O mundo, simultaneamente vasto e limitado, o eu de cada um no seu centro, a viagem como convite a desenhar, para si, uma rosa dos ventos, depois o domicílio para se sentar e cultivar uma identidade – eis aqui algumas referências num cosmo a priori sem alegria. A geografia serve antes de mais para elaborar uma poética da existência, para dar oportunidade ao corpo de funcionar como uma bela máquina sensual, capaz de conhecer exercitando cada um dos cinco sentidos, sozinhos ou combinados» (p. 87)
Não posso deixar de evocar aqui o Sapiens – De Animais a Deuses – História Breve da Humanidade, de Yuval Noah Harari, que analisa justamente como a humanidade começou como uma sociedade de caçadores-recolectores, o que implicava justamente errância e liberdade, aproveitando ao máximo os diversos recursos da natureza, até que com a Revolução Agrícola os nossos problemas parecem ter começado, numa luta inglória contra a terra que justifique o sedentarismo e uma ilusão de segurança ou conforto. Onfray começa justamente por remontar o gene da viagem aos tempos em que com Caim e Abel a humanidade se dividiu entre o camponês e o pastor, sendo que Abel, o pastor, terá sido justamente o favorito de Deus, ao ponto de desencadear a fúria fratricida. E é desde então que todas as «ideologias dominantes» exercem domínio e violência sobre as minorias nómadas, como o judeu errante ou os ciganos. Ver artigo
Pesquisar:
Subscrição
Artigos recentes
Categorias
- Álbum fotográfico
- Álbum ilustrado
- Banda Desenhada
- Biografia
- Ciência
- Cinema
- Contos
- Crítica
- Desenvolvimento Pessoal
- Ensaio
- Espiritualidade
- Fantasia
- História
- Leitura
- Literatura de Viagens
- Literatura Estrangeira
- Literatura Infantil
- Literatura Juvenil
- Literatura Lusófona
- Literatura Portuguesa
- Música
- Não ficção
- Nobel
- Policial
- Pulitzer
- Queer
- Revista
- Romance histórico
- Sem categoria
- Séries
- Thriller
Arquivo
- Novembro 2024
- Outubro 2024
- Setembro 2024
- Agosto 2024
- Julho 2024
- Junho 2024
- Maio 2024
- Abril 2024
- Março 2024
- Fevereiro 2024
- Janeiro 2024
- Dezembro 2023
- Novembro 2023
- Outubro 2023
- Setembro 2023
- Agosto 2023
- Julho 2023
- Junho 2023
- Maio 2023
- Abril 2023
- Março 2023
- Fevereiro 2023
- Janeiro 2023
- Dezembro 2022
- Novembro 2022
- Outubro 2022
- Setembro 2022
- Agosto 2022
- Julho 2022
- Junho 2022
- Maio 2022
- Abril 2022
- Março 2022
- Fevereiro 2022
- Janeiro 2022
- Dezembro 2021
- Novembro 2021
- Outubro 2021
- Setembro 2021
- Agosto 2021
- Julho 2021
- Junho 2021
- Maio 2021
- Abril 2021
- Março 2021
- Fevereiro 2021
- Janeiro 2021
- Dezembro 2020
- Novembro 2020
- Outubro 2020
- Setembro 2020
- Agosto 2020
- Julho 2020
- Junho 2020
- Maio 2020
- Abril 2020
- Março 2020
- Fevereiro 2020
- Janeiro 2020
- Dezembro 2019
- Novembro 2019
- Outubro 2019
- Setembro 2019
- Agosto 2019
- Julho 2019
- Junho 2019
- Maio 2019
- Abril 2019
- Março 2019
- Fevereiro 2019
- Janeiro 2019
- Dezembro 2018
- Novembro 2018
- Outubro 2018
- Setembro 2018
- Agosto 2018
- Julho 2018
- Junho 2018
- Maio 2018
- Abril 2018
- Março 2018
- Fevereiro 2018
- Janeiro 2018
- Dezembro 2017
- Novembro 2017
- Outubro 2017
- Setembro 2017
- Agosto 2017
- Julho 2017
- Junho 2017
- Maio 2017
- Abril 2017
- Março 2017
- Fevereiro 2017
- Janeiro 2017
- Dezembro 2016
- Novembro 2016
- Outubro 2016