Não é por acaso que escolho este livro para retomar a rubrica da Leitura da Semana depois de um interregno de 3 semanas. Nunca aqui surgiu em conversa, creio, nem quero fazer desta rubrica uma crónica mas não posso deixar de dar aquilo que pode parecer uma desculpa descabida. Este silêncio de 3 semanas em que não vos pude deixar aqui as minhas sugestões de leitura prende-se com o facto de não ter lido uma única linha neste espaço de tempo, depois de ter vivenciado a passagem do ciclone Idai na cidade da Beira, em Moçambique, onde resido há ano e meio. Face a uma situação destas, em que uma cidade fica devastada, e a nossa vida profissional e pessoal, sem casa, sem trabalho, sem condições de saúde ou de segurança, sem rotina, é difícil manter a calma e o foco. Mas o cérebro humano, ou a alma humana, surpreende-nos, e quase sempre pela positiva, permitindo manter o foco nas situações mais difíceis.
O livro Resiliência integra a colecção Inteligência Emocional da Harvard Business Review (HBR), lançada pela Actual Editora (chancela da Almedina), e é uma obra que revela isso mesmo: as chaves para o sucesso na vida profissional, que é como quem diz na vida em geral, revelando quais as características ou atitudes que permitem emergir de situações de emergência em que aquilo que conhecíamos fica virado do avesso.
«Assumimos muitas vezes uma perspectiva «dura», militarista da resiliência e da coragem. Imaginamos um fuzileiro a avançar através da lama, um pugilista a disputar mais um assalto, ou um jogador de futebol a levantar-se do relvado para uma nova jogada. Acreditamos que quanto mais tempo aguentamos, mais fortes somos, e que por isso seremos mais bem-sucedidos. Porém, toda esta conceção é cientificamente incorreta.» (p. 102)
São 6 artigos breves, sucintos, que se lêem numa pausa para um café ou num transporte público, de autores de renome como Daniel Goleman, psicólogo e autor do best-seller Inteligência Emocional, que apresentam investigações e casos de figuras que se tornaram conhecidas pelas piores e pelas melhores razões. Há diversas dicas lançadas ao leitor como manter uma rotina, assegurar intervalos para repouso, munir-se de acontecimentos e memórias positivas para aumentar a sua moeda do optimismo, saber construir relações e fazer-se rodear de conhecidos úteis que podem ser mais eficazes na reconstrução de uma carreira do que os amigos e familiares, enfrentar a realidade com alguma dose de humor negro…
A coleção Inteligência Emocional consiste em artigos acessíveis, que vão além do papaguear dos livros de auto-ajuda, com informações essenciais sobre o lado humano da vida profissional e com base em investigações comprovadas que mostram como as emoções são determinantes na nossa vida profissional. Especialmente direccionado para gestores, diretores de recursos humanos, psicólogos, e para todos aqueles com ambição profissional e pessoal de chegar mais longe e fazer melhor. Ver artigo
O livro Comportamento – A biologia humana no nosso melhor e pior não é propriamente recente, pois foi publicado em Outubro do ano passado, pela Temas e Debates, mas será certamente intemporal, até que algum estudo mais completo o possa complementar. Procurando responder à questão «Porque fazemos o que fazemos?», e recorrendo ao resultado de mais de uma década de trabalho, Robert Sapolsky tenta responder a esta pergunta centrando-se, sobretudo, no «conjunto confuso de sentimentos e pensamentos sobre violência, agressividade e competição» que a maioria dos seres humanos carrega (p. 10).
«Pondo as coisas de forma mais óbvia, a nossa espécie tem problemas com a violência. Possuímos os meios para criar milhares de cogumelos atómicos; chuveiros e sistemas de ventilação subterrânea já disseminaram gases venenosos, cartas levaram anthrax, aviões de passageiros foram transformados em armas; violações em massa podem constituir uma estratégia militar; bombas explodem em mercados, crianças com armas massacram outras crianças; há bairros onde todos, dos que entregam pizas aos bombeiros, temem pela sua segurança. E há as formas mais subtis de violência: digamos, uma infância inteira de abusos, ou as consequências para uma população minoritária quando os símbolos da maioria exalam dominação e ameaça. Estamos sempre à sombra do perigo de ter outros seres humanos a magoar-nos.» (p. 10-11)
Mas o problema e o ponto central deste livro é que ao contrário de outros flagelos que a Humanidade procura erradicar do Mundo, como doenças crónicas, ou aquecimento global, ou meteoros, a violência não parece preocupar ninguém: «Odiamos e tememos o tipo errado de violência, aquela que ocorre no contexto errado. Porque a violência no contexto certo é diferente. Pagamos bom dinheiro para vê-la num estádio, ensinamos os nossos filhos a responder-lhe e orgulhamo-nos quando, numa meia-idade já meio decrépita, conseguimos atingir o adversário com um desonesto golpe de cintura durante um jogo de básquete de fim de semana.» (p. 11)
Com irreverência e sentido de humor, suficientes para amenizar uma leitura de um livro que se estende por quase 900 páginas, e daí o seu pedido recorrente ao leitor “para que não mude de canal”, Sapolsky procura contar a história do comportamento humano por etapas, recuando no tempo: «Um comportamento acaba de ocorrer. Porque ocorreu?» (p. 14)
Neurobiólogo – aquele que estuda o cérebro – e primatologista – aquele que estuda macacos de todo o tipo –, o autor começa por analisar o que se passou no cérebro da pessoa um segundo antes de o comportamento se manifestar, recuando consecutivamente: segundos a minutos antes, horas a dias antes, dias a meses antes, recua à adolescência do sujeito, ao berço, ao útero, ao óvulo fertilizado, até chegar aos séculos e milénios antes que testemunharam o início da espécie humana e o nosso legado evolucionista.
A primeira categoria de explicação é neurobiológica mas Sapolsky adopta uma visão holística, multidisciplinar, consciente de que não é possível explicar o comportamento humano sem ir além da neurobiologia e da endocrinologia.
«Portanto, algumas vezes, o desafio intelectual é compreender o quanto somos semelhantes a animais de outras espécies. Noutros casos, o desafio é reconhecer como, apesar de a fisiologia humana manter semelhanças com a de outras espécies, nós a utilizamos de maneiras diferentes.» (p. 19)
Explora-se neste livro a biologia da violência, da agressividade e da competição, analisando os comportamentos e os impulsos que as motivam, mas este é também um tratado de psicologia sobre como as pessoas são ainda capazes de cooperação, afiliação, reconciliação, empatia e altruísmo: «procuraremos entender o virtuosismo com que nós, seres humanos, nos agredimos ou cuidamos uns dos outros, e o quão interligada é a biologia de ambos.» (p. 21)
Diz ainda o autor na Introdução que «às vezes a única forma de entender a condição humana é levar em conta apenas os seres humanos, pois as coisas que fazemos são únicas. Enquanto poucas outras espécies pratiquem o sexo não reprodutivo, nós somos os únicos que depois conversamos sobre como foi.» (p. 19)
Robert M. Sapolsky é autor de várias obras de não-ficção, como A Primate’s Memoir, The Trouble with Testosterone e Why Zebras Don’t Get Ulcers. É professor de Biologia e Neurologia na Universidade de Stanford e foi premiado pela MacArthur Foundation. Ver artigo
Se na obra A Vegetariana, da autora coreana Han Kang, a personagem começa pelo vegetarianismo para depois passar a querer anular-se enquanto mulher ou ser humano e transformar-se numa árvore, numa fuga ao real e numa oposição aos valores da sociedade contemporânea, neste romance de Sayaka Murata, Uma Questão de Conveniência, a protagonista é vista como estranha, mediante os padrões da sociedade dita normal, por levar uma vida pacata, simples e regrada, como empregada de uma loja de conveniência. Keiko tem 36 anos de idade, trabalha nessa loja há 18 anos, há 157 800 horas desde a sua primeira manhã, quando a loja abriu ao público, e não aspira a mais nada, para grande desconcerto da família e dos amigos, que também nunca lhe conheceram um namorado.
«Dentro da pequena caixa iluminada que é a loja, sinto a manhã fluir com normalidade. Do lado de fora dos vidros reluzentes e sem uma única dedada, vejo as pessoas caminharem apressadas. Mais um dia que começa. É esta a hora a que o mundo acorda e todas as suas engrenagens se põem a girar. Também eu estou em movimento, como uma dessas engrenagens. Sou uma peça no mecanismo do mundo, a rodar dentro desta manhã.» (p. 12)
Aquilo que em A Metamorfose, de Kafka, se prende com a diferença e com o desconcerto do mundo, é aqui vertido em desejo de ordem e normalidade. A loja de conveniência é como um aquário a partir do qual se avista o mundo exterior, mas sem nele se fundir, onde tudo é fácil de gerir, em gestos de autómato, que pretendem servir o outro, e o consumismo, pois o outro é aqui um cliente, que apenas está de passagem, a comprar algum bem descartável para uma necessidade imediata, seja um chocolate, um bolinho de arroz, ou uma bebida em lata.
«A campainha que avisa quando alguém entra na loja de conveniência ressoa nos meus ouvidos como o sino de uma igreja. É a certeza de que, sempre que eu abrir a porta, esta caixa envidraçada e iluminada estará à minha espera. Um mundo necessário, sólido e constante, que nunca para de funcionar. Tenho fé no mundo que há dentro desta caixa repleta de luz.» (p. 38)
O romance ganha contornos de alegoria dos tempos modernos, de uma vida anódina, em que multidões se confundem num único indivíduo, e os estereótipos abolem a singularidade de cada um, numa escrita que ganhava mais, há que dizer, em ser menos autoexplicativa, enquanto aborda temas como o papel das mulheres na sociedade, a maternidade/paternidade, a assexualidade ou o celibato voluntário.
«O padrão do mundo é rígido e os corpos estranhos são eliminados sem alarde. Os seres humanos fora do padrão acabam por ser ajustados e corrigidos.» (p. 83)
A vida é portanto feita de uma cadeia de expectativas a que temos de corresponder, sob risco de sermos alienados ou excluídos: «As pessoas continuam a meter-se nas nossas vidas mesmo depois de nos casarmos. Se não estivermos de algum modo a contribuir para a sociedade, mandam-nos procurar emprego. Se arranjamos emprego, querem que ganhemos bem. Se já estamos a ganhar bem, mandam-nos arranjar uma mulher e filhos… Somos toda a vida avaliados.» (p. 90)
A certa altura, Keiko aprende a defender-se, copiando os modelos das colegas, arrastando a voz, imitando-lhes a roupa e os acessórios, quase se confundindo com elas, mas não deixa de ser vista como alguém que vive de forma estranha. Até que ao conhecer um colega contestatário, inapto para funcionário da loja, e que passa a aproveitar-se de Keiko como um parasita, a jovem, na verdade já uma mulher, sente finalmente que a normalidade tão desejada pelos outros para si pode agora ser alcançada na sua vida, mesmo que isso implique abdicar daquilo que dá sentido à sua existência.
Uma Questão de Conveniência, publicado pela Dom Quixote, venceu o prémio Akutagawa e foi traduzido em mais de vinte países. Publicado em 2016, a edição portuguesa foi adaptada a partir da tradução brasileira feita por Rita Kohl, tradutora do japonês formada em Letras pela Universidade de São Paulo, com mestrado em Literatura Comparada pela Universidade de Tóquio.
Sayaka Murata nasceu em Inzai, no Japão, em 1979. É uma das vozes mais originais da ficção contemporânea japonesa, e uma das mais mediáticas romancistas da actualidade, escreveu para a revista Granta e foi nomeada Mulher do Ano pela revista Vogue japonesa em 2016. Trabalha a tempo parcial numa loja de conveniência, na cidade de Tóquio, alegando que a observação do quotidiano das pessoas que frequentam a loja é inspiradora para a sua obra. Ver artigo
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