A Nossa Alegria Chegou, o quarto romance de Alexandra Lucas Coelho e o seu décimo livro, publicado pela Companhia das Letras – que está a relançar as suas outras obras -, quebra diversas convenções e géneros, e instaura um território ficcional difícil de definir, sem a complexidade narrativa de deus-dará, onde sete narrativas se cruzam, em sete dias, num romance transgénero que liga passado e presente.
«Alguns mamíferos sabem que vão morrer. Estes três sabem que podem morrer hoje.» (p. 17)
Apesar das frases fatídicas com que o romance abre, a sensação que o leitor tem é de acordar com as três personagens num paraíso, como que um Génesis da Criação. Além do índice que indica antecipadamente que a acção decorre em doze capítulos, em contagem decrescente, do doze ao um, o que é reforçado pelo texto, a cada capítulo, conforme se reforça o tempo que resta aos jovens heróis: «Duas horas para o poente» (p. 159).
Ossi, Ira, Aurora, são os nomes dos três jovens que, à excepção do da jovem Aurora, não permitem perceber de imediato os seus sexos, se bem que ao longo da narrativa ficará rapidamente claro que o género de cada um é pouco relevante à sua natureza e identidade. Inclusive os três jovens parecem ser inicialmente descritos como se se tratassem de um só ser, uma entidade mitológica:
«Três corações, seis pulmões, biliões de nervos numa cama de rede, tórax com tórax, boca com nuca, côncavos, recôncavos, convexos. Jovens como a jovem flor do cacto de Alendabar, a praia onde acordam.
Ossi segura o flanco de Ira, que segura o flanco de Aurora. Ela fecha os olhos, flecte o joelho esquerdo. Ira ganha ângulo e entra nela, com Ossi às costas. Primeira vez que acordam juntos, primeiro sexo a três, primeira hora de luz.
Este dia esperou por eles para mudar tudo. Pacto.» (p. 17)
Este primeiro dia na vida do jovem Ossi, do jovem Ira, e da jovem Aurora, é afinal, como se anunciou logo de início, possivelmente o último das suas breves vidas de flores ainda a desabrochar. A musicalidade e a sensualidade da linguagem literária de Alexandra Lucas Coelho acompanham a sensualidade da relação entre os três protagonistas, cuja relação sexual a três é descrita logo nas primeiras páginas. Se em alguns momentos do livro, o leitor pode sentir-se balançado a pensar neste livro como uma narrativa juvenil é a carnalidade e o erotismo, a alegria dos sentidos, que fazem parte da relação entre cada um dos vértices deste triângulo amoroso que claramente puxam o leitor para uma narrativa que se quer real, factual, pese embora muito do que se leia pareça inventado, como aliás parece salientado logo na segunda página, quando Felix, um quarto jovem entra em cena, ao chegar à praia de Alendabar para espalhar as cinzas do pai.
«Felix nunca esteve nesta parte do mundo. Nunca ouvira sequer o nome Alendabar:
– Parece inventado – disse à mãe (…).
Olho na estrada, Ursula respondeu:
– Todos os nomes são inventados.» (p. 18)
Os nomes de personagens são, de facto, inventados ou então, como com Felix, Ursula, Atlas, o Rei, são claramente simbólicos. Nomes de espécies de plantas e de animais são também inventados pela autora. Como a própria linguagem que se evoca neste romance é inventada. Por isso, o leitor pode novamente ser levado a pensar, num primeiro momento, de que este é um mundo inventado (com direito a mapa no verso da contra-capa), num qualquer universo paralelo de ficção alternativa, ou de um antigo mundo, mas depois percebe-se que não se incorre aqui no domínio da ficção científica nem numa qualquer distopia num futuro improvável. Leia-se a seguinte passagem sobre as histórias: «cá estarão os três para as contar, como desde o começo foram contadas, criando o que não existe para entender o que existe. O humano é esse primata (…) que imagina histórias, ri com elas, chora com elas. Só ele sabe como estar vivo é o grande buraco negro.» (p. 172)
O reino de Alendabar é constituído por três aldeias, a do vulcão, a ribeirinha e a das terras altas. Referenciam-se deuses, pirâmides, escravos e um Rei do gado, mas gradualmente encontram-se elementos de ancoragem num mundo que é bem real e próximo, com lixo a poluir os mares, aviões, helicópteros, e computadores, onde não falta inclusivamente a mais recente tecnologia de ponta, como é o caso da inteligência artificial de Jade. Contudo, fica a sensação que Alendabar é um mundo à parte, de uma era mítica, e aquilo que chega de tecnologia vem do exterior, como o próprio lixo que começou a poluir o mar há um ano.
O número três, como já foi referido, ganha também uma simbologia própria, sendo que os próprios capítulos estão repartidos em vários episódios, separados pelo símbolo de três pequenas pirâmides que formam em si próprias uma pirâmide. A própria trindade formada por estes jovens de 17 anos é vista como uma unidade: «voltarão a ser três. Nenhum deles quer ser dois com alguém.» (p. 34) Três jovens heróis que já acarretam o peso do mundo de Alendabar às costas, todos eles unidos por uma perda cujo denominador comum é o Rei, a apostar no fim de um reinado, mesmo que isso implique a morte que não temem.
Como acontecia em deus-dará, romance anterior da autora, nesta narrativa subverte-se a dicotomia do género, para chegar a um lugar onde não há masculino nem feminino, como acontece com Ira: «macho à força primeiro, fêmea à força depois, nem uma nem outro, agora.» (p. 25)
«Os humanos são homens, mulheres, transgénero, intersexo.» (p. 92)
A difusão de contornos acontece igualmente com a questão da mestiçagem, aqui traduzida na cor da pele: «Aurora corre pela beira-mar. De onde lhe vem tanta claridade? Pai escuro, mãe escura. Ira também saiu mais claro do que a mãe, mas pai não conheceu. Ossi é o mais negro dos três, de longe.» (p. 34)
O romance de Alexandra Lucas Coelho tem sempre mais de real do que de fantasia, porque Alendabar está muito próximo dos males do mundo, pelo que há sempre ecos de referências quando se lê que um dique rebentou há uns anos e foi preciso pagar a muita gente mais para se calar, do que para reconstruir o dique.
«Um hominídeo desce das árvores, o cérebro aumenta, o polegar roda, ele afia uma pedra na outra: primeira faca. Eras depois, ser matador é profissão, gravadas em templos que humanos visitarão outras eras depois, inclinando-se para a tinta semi-sumida, mas onde ainda é possível ver a matança de um mamífero, começando pelo afiar da faca. Os humanos da era digital farão ah! e oh!, impressionados com aquela violência primitiva, enquanto a não muitos quilómetros dali uma faca corta a garganta de mamíferos em série, que já cheiraram o sangue dos anteriores, e sabem que vão morrer.
O que o primitivo fazia às claras, em pequeno número, o civilizado faz em larga escala, sem ver.» (p. 53)
Quando Ira viveu na cidade, pôde ainda assistir à tragédia da desproporção humana configurada nos Invisíveis: «milhões que não bebiam água potável, e ainda assim, ou também por isso, rezavam a Deus.» (p. 159) Ira testemunha ainda a auto-imolação de um homem em protesto contra a poluição, a destruição do planeta, os combustíveis fósseis» (p. 160)
Mas apesar do prenúncio de fim dos tempos que se vive no livro, vence sobretudo o sentimento de que Alendabar pode renascer, até na forma como a sua criação e os mitos são constantemente relembrados. Até no gesto simbólico de Felix e Ursula que se preparam para comer as cinzas de Atlas, pai e marido, misturando-as com a polpa de um fruto de Alendabar, mito carnívoro de que se pode renascer a partir da ingestão do passado. O leitor colhe ainda indícios de uma ligação entre estes três jovens amantes que executam uma revolução de fim dos tempos. Indícios esses, como outros, que nunca se resolvem pois mesmo que este seja um romance de leitura breve, quase de um fôlego, em contagem decrescente, há ainda muito mais que está para lá da realidade da história e que fica a cargo do leitor resolver, enquanto Alendabar será também transformado em mito: «aquele mundo imaginário que a partir de agora só existirá nas histórias» (p. 172) Ver artigo
O escritor angolano Pepetela, vencedor do Prémio Camões em 1997, é o escritor homenageado na edição deste ano do festival literário Escritaria, em Penafiel.
A 11.ª edição do Escritaria vai decorrer de 1 a 7 de outubro e ficará ainda assinalada pelo lançamento do novo livro de Pepetela. O autor angolano, de seu verdadeiro nome Artur Carlos Maurício Pestana dos Santos, nascido em Benguela, em 1941, licenciado em Sociologia, foi guerrilheiro, político e membro do MPLA, professor universitário em Angola, membro da Comissão Directiva da União dos Escritores Angolanos, e tem publicado romances regularmente desde 1978.
A Dom Quixote publicou em Setembro 3 livros do autor: a 7.ª edição de Yaka (1985), a 12.ª edição de Jaime Bunda, Agente Secreto (2001), uma paródia a James Bond, e Sua Excelência, de Corpo Presente, o seu mais recente romance que chega hoje, dia 25 de Setembro, às livrarias. Reza a sinopse que: «Num enorme salão cheio de flores, deitado num caixão forrado a cetim branco, jaz um ditador africano. Está morto, mas vê, ouve e pensa. Vê os que lhe foram prestar uma última homenagem (ou certificar-se de que morreu), ouve as suas conversas e sussurros, e pensa… (…) O novo romance de Pepetela é também uma crítica mordaz ao abuso de poder e aos sistemas de governo totalitários disfarçados de democracias.» Ver artigo
A Quetzal lançou hoje sugestões de Livros para a Quarentena, das quais gostaria de destacar Uma Casa para Mr. Biswas, de V. S. Naipaul.
No dia 11 de Agosto de 2018, Sir Vidiadhar Surajprasad Naipaul, vencedor do Booker em 1971 e do Prémio Nobel de Literatura em 2001, faleceu aos 85 anos, de forma pacífica, acompanhado por entes queridos. O autor britânico V. S. Naipaul, cuja obra em Portugal tem sido publicada pela Quetzal, nasceu em 1932, na ilha de Trindade, nas Caraíbas, vivia em Inglaterra desde 1950. Visitou Portugal por três vezes, a última das quais em 2016, como participante no festival Fólio, em Óbidos.
A Quetzal publicou também recentemente Sementes Mágicas que dá seguimento a Metade da Vida. Dois romances do vencedor do Prémio Nobel de Literatura, V. S. Naipaul, que acompanham a vida de Willie Chandran, um homem de identidade incerta que, apesar dos seus 45 anos, sente-se deslocado, estranho à sua própria história.
Depois de 20 anos a escrever ficção e não-ficção sobre realidades que só seriam realmente abordadas muito mais tarde, como o exílio, a diáspora, o multiculturalismo, Naipaul foi um autor polémico, ora acarinhado, ora criticado pelos seus virulentos retratos. É o caso de Mohun Biswas, a personagem central de Uma Casa para Mr. Biswas, um dos mais emblemáticos romances do autor que narra as peripécias de um homem, muitas vezes pouco simpático, que passa um romance inteiro a lutar por poder morrer na sua própria casa, ao mesmo tempo que repele a pouca ajuda que vai recebendo da família da mulher. Mr. Biswas tem algo de pícaro e anti-herói, até na forma como movido pela ânsia do sonho se precipita mais que uma vez a comprar uma casa, desbaratando o muito pouco dinheiro que guarda e tem, e endividando-se perigosamente. Naipaul escreveu este livro com cerca de 20 anos e conseguiu a proeza de criar uma obra-prima, inspirando-se livremente na história de vida do seu próprio pai, um homem que, tal como Mr. Biswas, se rebelou contra as suas origens e se tornou um jornalista para o Guardian de Trindade. Ora cómico, ora trágico (o romance inicia com o nascimento de Mr. Biswas, uma criança com seis dedos), esta é a história de um homem que passa por sucessivas casas para voltar a ficar sem nada, quase sempre em choque com a mulher e a família desta. Mas esta é também a história de vida de um homem que se revolta com iras extremas (como que nascidas da força do mito) e se recusa a ser acorrentado ou escravizado pelas normas sociais e familiares que lhe são impostas (o eco do colonialismo e do exílio, pois lembre-se que Trindade era uma colónia britânica, e Mr. Biswas um hindu que nunca visitou a Índia). Ver artigo
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