O que ao início pode lembrar a atmosfera mágica sul-americana, com visitas a videntes e a cartomantes, rapidamente se impõe como uma narrativa brutal e fria, hiper-realista, mais próxima do 2666 de Roberto Bolaño e do seu quarto livro relativo ao femícidio. Selva Almada rejeita as premonições de um García Márquez em Crónica de uma Morte Anunciada, pois estas jovens são sempre colhidas na flor da vida num dia perfeitamente banal, em que nada fazia prever a tragédia que lhes sucede, e lança-se num inquérito em torno de três assassínios, de entre centenas que nem chegam a ser noticiados, de três raparigas, ainda quase meninas, no interior da Argentina na década de 80. Sente-se ainda como esta obra evidencia uma transição de um país onde se podia ter uma infância relativamente segura e inocente para uma nação que apesar de ter assistido a um regresso da democracia se torna cada vez menos segura, pelo menos para as mulheres.
«Estamos no verão e está calor, quase como naquela manhã de 16 de novembro de 1986 quando, de certo modo, este livro começou a ser escrito, quando a rapariga morta se atravessou no meu caminho. Agora tenho quarenta anos e, ao contrário dela e de milhares de mulheres assassinadas no nosso país desde então, continuo viva. É só uma questão de sorte.» (p. 184)
Obra singular que se inscreve no género de romance de não-ficção, ao estilo de Truman Capote, a autora narra a partir de um tempo presente os trilhos que percorre durante a sua investigação, movendo-se por uma sociedade pobre, onde é mais fácil a justiça se mostrar esquecida. A sua voz perde-se quase sempre entre a dos testemunhos recolhidos, apresentados sem qualquer distinção gráfica, e das histórias lembradas. Reina por vezes a hipótese mais do que a certeza, pois Selva Almada enquanto reúne depoimentos e descreve o seu percurso ao longo da sua investigação não resiste, enquanto romancista, a tecer caminhos fictícios para o que poderá ter acontecido.
Uma especial nota para a fantástica capa, nomeadamente pelo pormenor da horizontalidade da jovem retratada a partir de costas, dando conta do anonimato da grande maioria destes homícidios de jovens raparigas. Ver artigo
Cora é uma jovem escrava que nasceu numa plantação de algodão e apesar de nunca o ter ponderado é confrontada com a possibilidade de escolha quando Caesar lhe propõe fugir. Cora diz que não à primeira, sendo essa recusa automática a voz da avó dela, Ajarry, a falar em si. Lemos depois como Ajarry viu o mar pela primeira vez, quando é levada para as masmorras onde mulheres e crianças raptadas nas aldeias de África esperavam pelos barcos que as levariam para as Américas. Durante o seu percurso Ajarry será vendida por várias vezes, passando de uns negreiros para outros; tenta matar-se por duas vezes, na travessia do Atlântico; é marcada por várias vezes, como uma peça de gado; e o seu preço vai flutuando ao sabor do mercado, até porque há excesso de raparigas na altura, até ser vendida por duzentos e noventa e dois dólares.
Três semanas mais tarde, quando Caesar lhe volta a falar num caminho de fuga Cora acaba por dizer que sim, e dessa vez sente que é a voz da mãe, Mabel, a falar por ela, a única escrava que terá conseguido fugir da plantação.
Cora é uma personagem intrigante. Se ao início julgamos que é louca, como os restantes escravos a consideram, assistimos depois a um crescendo da personagem. Cora aliás percebe claramente a verdadeira razão por trás do convite de Caesar para o acompanhar na sua fuga: «- Achas que sou uma sortuda encantadora porque a Mabel fugiu. Mas não sou. Já me viste. Já viste aquilo que nos acontece quando temos ideias na cabeça.» (p. 64).
Cora guarda rancor à mãe que para poder fugir a terá abandonado aos dez ou onze anos (pois todos sabem que os pretos não faziam anos, simplesmente escolhiam um dia para celebrar o seu aniversário) e procura agarrar-se à única coisa que tem: um pedaço de terra de três metros quadrados onde a avó cultivava nabos e inhames. Ver artigo
Miguel Real, nascido em Lisboa em 1953, formado em Filosofia, disciplina que ensinou até recentemente se ter reformado, especialista em cultura portuguesa, investigador do CLEPUL, ficcionista, tem-se imposto como um dos mais produtivos pensadores da actualidade, com estudos sobre diversos temas e figuras da nossa cultura, além de se ter ainda destacado na crítica literária, por exemplo no Jornal de Letras.
Na sequência de Introdução à Cultura Portuguesa, onde o autor estabelecia uma teoria que divide a História de Portugal em quatro correntes de pensamento, a Planeta publicou Traços fundamentais da cultura portuguesa.
Escreve José Eduardo Franco que «o escritor Miguel Real pode ser considerado uma síntese invulgar, na nossa época apelidada de pós-moderna, de várias correntes de análise e de crítica». Escolástico, renascentista, positivista, iluminista e pós-moderno, na medida em que tem o cuidado de não impor o seu pensamento nem «absolutizar nenhuma destas propostas de método de conhecimento», chamando o leitor para o texto, ao colocar-lhe questões que lhe permitam problematizar a informação recebida. São constantes as citações e referências a obras de outros pensadores e inclusivamente a artigos de imprensa.
O autor procura distinguir claramente História e Cultura, de modo a procurar constantes históricas que deram origem ao que ele define como quatro constantes culturais: a origem exemplar de Portugal, a nação superior, a nação inferior e o canibalismo cultural.
A obra divide-se em duas partes, sendo a primeira parte mais teórica, onde o autor começa por problematizar a questão de se poder falar em identidade nacional ou dessa essência identitária que definiria o homem português, e uma segunda parte, «Práticas histórias: constantes culturais», onde se enumeram e explanam os traços fundamentais da cultura portuguesa geralmente referidos – sebastianismo, saudade, cultura de fronteira (o desejo do Outro), lusofonia – para depois se debruçar sobre algumas figuras históricas que, segundo o autor, personificam essas constantes culturais: Viriato, Padre António Vieira, Marquês de Pombal, e os canibais culturais (Tribunal do Santo Ofício, Pina Manique, jacobinos, Estado Novo).
O autor faz ainda uma céptica (por vezes bastante descontente) mas lúcida análise de Portugal hoje, cumpridas algumas etapas fundamentais do processo de modernização do país, assente em quatro visões políticas ou Mitos, e salienta que estamos num intervalo civilizacional entre o passado e o futuro, deixando no ar a questão: «Continuaremos a possuir uma identidade ou diluir-nos-emos numa Europa sem identidade?». Ver artigo
No dia 25 de Fevereiro de 1980, o linguista, filósofo e crítico literário, o estruturalista Roland Barthes é vítima de um atropelamento. Morre um mês depois, no seu quarto de hospital.
Quem matou Roland Barthes na tentativa de se apoderar da sua mais recente descoberta, a sétima função da linguagem?
O comissário Jacques Bayard vai investigar o caso mas cedo se apercebe, conforme o seu inquérito o leva a cruzar-se com figuras como Michel Foucault, Derrida, Julia Kristeva, Umberto Eco, de que se move num círculo restrito e de que precisa alguém que lhe saiba descodificar as suas conversas crípticas e que saiba ler as pessoas. Rapidamente recruta Simon Herzog, um doutorando e professor de Semiologia, com capacidades dedutoras dignas de Sherlock Holmes.
Apesar das quase 500 páginas, da profusão de citações e referências literárias, o romance lê-se muito bem, lembrando mesmo, numa acção que se desenrola de modo rápido e nos capítulos muitas vezes curtos que se sucedem, um mistério à la Dan Brown, onde se cruzam os literários da época (não falta Roman Jakobson), figuras do cinema, espiões, sociedades secretas que se baseiam nos poderes da oratória. Este romance de Laurent Binet – jornalista, escritor, músico, professor de Ciência Política – daria um bom filme. Não faltam aliás referências ao cinema e cada uma das partes do livro é localizada numa cidade diferente, como Paris, Bolonha, Ithaca, Veneza, Nápoles.
Numa «sátira insolente e tão divertida como apaixonante sobre o mundo narcísico dos intelectuais, o poder da palavra, as ilusões da literatura», a literatura cruza-se com a linguística, a política e o sexo, numa série de peripécias que raiam o surreal e onde uma das personagens principais dá por si a interrogar-se constantemente se não será antes uma personagem de um romance, o que explicaria o insólito que testemunha.
E agora vou tentar esticar isto para uma recensão de 10 000 caracteres… Ver artigo
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