João Paulo Borges Coelho, nascido no Porto em 1955, mas radicado em Moçambique desde a infância. Escritor e historiador, é professor de História Contemporânea de Moçambique e África Austral na Universidade Eduardo Mondlane, em Maputo, onde vive. Tem dedicado o seu estudo sobretudo à investigação das guerras colonial e civil em Moçambique, bem como à política da memória e às questões de segurança regional na região da África Austral.
Normalmente quando se fala em literatura moçambicana ressalta o nome de Mia Couto mas existem outros grandes autores menos conhecidos entre nós, como Ungulani Ba Ka Khosa (já aqui apresentado a propósito de Choriro, publicado pela Sextante) ou o autor que hoje vos trazemos. João Paulo Borges Coelho tem aliás toda a sua obra publicada pela Caminho e foi o vencedor do Prémio Leya em 2009 com O olho de Hertzog, sendo o único autor já com obra publicada a ter ganho o prémio (os restantes vencedores têm sido autores inéditos e estreantes). Já em 2004 o autor foi vencedor do Prémio José Craveirinha da Literatura, a maior distinção literária em Moçambique. Este autor pode não ser muito popular entre nós mas merece muito ser lido com atenção e tem tratado na sua obra literária diversas épocas históricas do país.
Esta obra, cujo tema principal está desde logo designado no título, e subtitulada de «Uma novela rural», apontando para o género a que pertence, sendo a novela algo entre a brevidade do conto e a complexidade do romance, assente em princípios de economia narrativa. A concisão define de facto esta obra, cuja escrita é constituída por frases muito curtas, com capítulos muito breves (no total de 144 capítulos), o que gera uma velocidade rápida de leitura. À medida que nos aproximamos do final a prosa ganha o ímpeto da força da correnteza da água aqui protagonizada, transfigurada em parágrafos que se estendem por páginas e capítulos que ganham mais terreno, como forma de dar conta do fantástico crescendo e desse enigmático final. Essa concisão própria de uma novela parece contudo posta em causa se atentarmos no considerável número de personagens. Os nomes das personagens são simbólicos, e alusivos a elementos naturais (Praado, Laago, Heera), como quem lembra que todos nós apesar de estarmos cada vez mais mergulhados em tecnologia não deixamos de fazer parte da natureza, tal como a água de que precisamos para viver e que faz parte do corpo humano. Além disso, são sempre grafados com dupla vogal, como que a ecoar na narrativa a pronúncia das vogais mais abertas (próprias de um Português mais cantado).
A alternar com a intriga principal pontuam os diálogos de Laama e Ryo que «passam metade do tempo a sondar as entranhas da natureza, a outra metade a discutir a interpretação dos resultados» (p. 17). Estes dois anciãos discutem «hoje, a água. Ou melhor, a falta dela, que aquilo que outrora era um pesado e líquido cordão não passa hoje de um tortuoso arabesco (…). No fundo, repetem sempre a mesma discussão» (p. 17), discussão essa muitas vezes feita da réplica de frases que se afiguram provérbios, sendo Ryo o mais «moderno» e «volúvel» e Laama o mais «consistente na obsessão de desnudar os fumos primordiais» (p. 17), enquanto procuram sondar a natureza e ler os seus desígnios, recorrendo mesmo a certas práticas ancestrais – presumirá o leitor – capazes de trazer a água de regresso, como quando caminham ao luar com uma concha de água. Contudo, como a própria narrativa declara, por muito que a ciência (e incluímos nós a religião) se procure instituir como «esforçada leitura paralela, as coisas seguem o seu curso cego imunes às interpelações. A natureza é um misterioso veículo em movimento deixando sacerdotes e cientistas em terra, ocupados ainda assim na tentativa de determinar o rumo da viagem!» (p. 17).
Este é portanto um romance de carência que narra a história de uma comunidade rural que atravessa um período de seca pois o rio há muito secou. As personagens que por aqui se movem estão todas elas ligadas à água, seja o pastor que precisa de campos férteis para apascentar o seu gado, seja a lavadeira que lava a roupa no rio, ou ainda os técnicos e investigadores que estudam a água ou, melhor dizendo, a falta desta. Mas esta novela rural está eivada de modernidade. Note-se a profusão de onomatopeias que dão conta dos sons e ruídos próprios de um mundo urbano que começa a transbordar para esta localidade rural, como os camiões («Vrrrrrr! Vrrrrrr!») ou os sons dos telemóveis de Ervio e Maara («Críí! Críí!»), enamorados que se contactam quase exclusivamente por esta via – como se por pertencerem a mundos diferentes vissem também o contacto entre si limitado a este meio de comunicação. Os “celulares” são aliás uma presença cada vez mais forte na sociedade moçambicana, à semelhaça do resto do mundo, pois toda a gente, por muito apartada que viva do centro urbano, possui o seu. Contudo existe a particularidade de, tal como acontece muitas vezes nos telefonemas trocados entre o casal amoroso cheios de interferências, os telemóveis serem mais um motivo de desentendimento do que de comunicação eficaz entre Ervio e Maara. Configurado principalmente na relação amorosa entre Ervio e Maara, há todo um jogo de contrários a começar pelo título da obra pois, conforme se referiu, rapidamente percebemos que Água não é algo que existe e daí dar título à obra mas sim algo que é preciso redescobrir ou reaver. A questão do colonialismo também se encontra presente neste jogo de opostos, como se pode ler quando se refere a loja do português que apesar de fechada continua a ser um marco. Por outro lado, retrata-se a presença de apoios externos em Moçambique, bem como no continente africano em geral, mediante a figura do engenheiro alemão Waasser (e adivinhe-se o que significa Wasser em alemão? Pois é: Água!).
Não deixa de haver uma reflexão em torno destas contradições moçambicanas, ao mesmo tempo que se parece denunciar também como certos apoios externos parecem completamente despropositados ou, por outro lado, infrutíferos mesmo, como é a intenção de se construir uma ponte sobre um rio seco. Mesmo o diálogo entre Laama e Ryo é aliás a representação de uma discussão assente em pontos de vista distintos apesar de serem ambos membros de uma certa antiguidade na comunidade.
É interessante atentar como o narrador se assume sempre como um nós, uma voz colectiva, pertencente a essa comunidade rural, ou assumindo-se como a própria comunidade. Este aspecto é algo que também se pode encontrar em Ungulani Ba Ka Khosa e atesta de um cuidado da literatura pós-independência em encontrar a sua voz e escrever de forma interventiva como uma consciência social ou política, pois afinal esta obra que oscila entre a seca e a cheia é também um retrato da realidade moçambicana em diferentes zonas do país, como aconteceu no rio Limpopo com as cheias de 2000, em que as pessoas subiram aos telhados das casas, mas também mais recentemente, em 2014 ou em 2015. O autor declarou, em entrevistas, tentar dar conta de como Moçambique é um país feito de desequilíbrios, como acontece justamente com a água, acontecendo por vezes haver zonas ameaçadas pelas secas enquanto que outras são simultaneamente afectadas pelas cheias. O autor debruça-se ainda, como se pode perceber no emblemático e alegórico final, sobre a questão do mundo rural como um espaço que parece condenado a desaparecer em África, cada vez mais circunscrito a terrenos que se reclamam, por vezes, para reservas naturais. Assiste ainda à narrativa um certo sentido de ironia e de humor, como por exemplo quando o engenheiro alemão Waasser reflecte como «o mundo será perfeito quando os caminhos dos rios forem todos rectos como as fronteiras de África. Não há perfídia nem ironia nesta sua aspiração, apenas racionalidade. As coisas perfeitas são as que seguem a direito evitando desnecessários gastos de energia.» (p. 49). Ainda em relação ao final, não deixa de ser sintomática a intrusão de uma certa magia, como que um resquício do realismo mágico característico de uma certa literatura pós-colonial, nomeadamente nas borboletas, símbolo caro justamente ao realismo mágico (relembre-se Cem Anos de Solidão) e na personagem cujo ventre seco de repente parece transmutar-se em nascente. Ver artigo
Factotum é a mais recente obra Charles Bukowski publicada pela Alfaguara em Março, que já traduziu e publicou outras sete das dezenas de obras do autor. Este é o seu segundo romance, publicado originalmente em 1975. Charles Bukowski nasceu na Alemanha em 1920 mas cresceu e viveu em Los Angeles durante cinco décadas, tendo publicado o seu primeiro conto em 1944 e começado a escrever poesia uma década depois. O livro, considerado como um dos seus melhores, é descrito, na contracapa, como uma «espécie de retrato do artista enquanto jovem» sendo Henry (Harry) Chinaski um alter ego de Bukowski. À semelhança de outras obras, Factotum foi adaptado ao cinema em 2005, com um resultado feliz, por Bent Hamer, com Matt Dillon, Lili Taylor e Marisa Tomei nos principais papéis.
Seguimos o percurso de Henry Chinaski durante o período da Segunda Guerra Mundial mediante o seu relato na primeira pessoa: «Cheguei a Nova Orleães debaixo de chuva às 5 da manhã» (p. 9). E à medida que o narrador vai desfiando o seu périplo pelos Estados Unidos da América vamos sabendo mais sobre esta personagem-narrador, conforme ele se digna, numa narrativa que se sucede sempre de forma linear, a ir dando pistas do que constituiu o seu percurso. Perceberemos, por exemplo, que tem tendências suicídas (o que aliás está presente no seu comportamento autodestrutivo ao longo do livro): «Fui bebendo devagar e pus-me a pensar outra vez em arranjar uma pistola e despachar o assunto: sem os pensamentos e sem a conversa.» (p. 13). Quando o pai o vai buscar numa certa noite à prisão, tendo de pagar a fiança, também se pode ler, quando este acusa o filho de não ter querido servir o seu país, que o psiquiatra declarou que ele não estaria apto. Depressão? Não se sabe ao certo mas é bem possível pois como se refere páginas depois: «A noite ia no início e eu estava a ter um dos meus acessos de depressão.» (p. 46).
Henry Chinaski procura a solidão como um casulo protector: «Eu era um tipo que se dava bem com a solidão; sem ela, era apenas mais um homem sem comida ou sem água. Enfraquecia a cada dia passado sem solidão. Não me orgulhava da minha solidão; mas dependia dela.» (p. 35). E inclusivamente bebe como forma de escapar ao outro e ao real: «Sempre que alguém se sentava ao meu lado e se punha a conversar, eu sacava de uma das garrafas e dava um gole valente.» (p. 34). A visão do outro é aliás muitas vezes grotesca: «Olhei novamente para os rostos. Parecia uma visão do inferno em repetição ininterrupta. Cada nova remessa de rostos era mais feia, demente e cruel do que a anterior. Dei um golo de vinho.» (p. 35). Se bem que o narrador também não se retrate de forma muito positiva, mas sem qualquer autodepreciação ou autocomiseração: «Apercebi-me subitamente dos pregos das solas dos meus sapatos ranhosos a cravarem-se-me nas solas dos pés. A minha camisa encardida tinha três botões a menos. O fecho das calças estava encravado a meia haste. A fivela do cinto estava partida.» (p. 84).
Começamos assim a perceber como Henry vagabundeia de trabalho em trabalho, chegando a regressar à casa dos pais apenas para logo constatar que nunca lhes conseguirá pagar a estadia, pois o pai exige-lhe o pagamento do alojamento, da comida e da roupa lavada. Dias depois a sua saída é intempestiva e aparentemente permanente, com agressão física pelo meio. A violência é também uma constante, nas relações familiares, amorosas ou no sexo esporádico que vai tendo com as mulheres que encontra, chegando mesmo a haver um momento em que se descreve toda a cena como sendo ele a vítima. Existem ainda relações que se revelam inclusivamente parasitárias – sendo o termo parasita utilizado aqui de forma intencional – como acontece com Jan, a mulher com quem Henry parece passar mais tempo dentro da sua errância. De Nova Orleães a Los Angeles, passando por Louisiana, Filadélfia ou St. Louis, o nosso protagonista, que nada tem de herói – embora entre nalgumas rixas pois encara a luta física como desporto ou diversão – vai somando os mais diversos empregos, e vai estendendo o seu registo criminal. O próprio Henry vive por vezes como parasita social, consoante se agrava a sua incapacidade em adoptar um papel social adequado e cumpridor. Henry nunca é descrito como inepto pois, pelo contrário, adapta-se com grande facilidade às suas sucessivas ocupações, revelando inteligência, até porque não possui qualquer qualificação para os mesmos. O objectivo dele parece ser somente o de chegar ao fim da semana para ganhar o cheque e comprar bebida, numa época em que devido à Guerra haveria escassez de mão-de-obra. Henry parece assim viver à margem e acima dos comuns trabalhadores. Como diz a sua companheira Jan: «Sabes, quando te conheci, gostei da forma como atravessavas uma sala. Não te limitavas a atravessar uma sala, parecia pelo teu andar que ias atravessar uma parede, como se fosse tudo teu, como se nada interessasse.» (p. 98). Henry estudou jornalismo durante dois anos e possui uma aspiração, se bem que esta se vá perdendo ao longo da narrativa, quando se designa como «um escritor temporariamente falho de inspiração» (p. 49), essencialmente um contista que escreve três a quatro contos por semana que envia por correio para diversas revistas, até que vê finalmente um dos seus contos ser aceite para publicação, com o sugestivo título de «A Minha Alma Ébria de Cerveja é mais Triste do que Todas as Árvores de Natal Mortas do Mundo» (p. 57). Apesar de ser cada vez mais evidente que Henry é um alcoólico inveterado percebemos também, inicialmente talvez com espanto, que ele próprio boicota os postos de trabalho que vai conseguindo e percebe sempre o momento em que se prepara para ser despedido, naturalmente também em prol das suas acções que são muitas vezes vexatórias. No final do livro, composto por 87 capítulos ou trechos, as desventuras do nosso herói sucedem-se a ritmo vertiginoso, correspondendo ao longo de diversos capítulos a narração breve de como ele entra e sai de mais um trabalho a cada trecho. Essa recusa de Henry em encontrar um trabalho certo pode aliás ser percebida como uma recusa geral em viver segundo as prescrições sociais. Note-se como se descreve pejorativamente as massas da sociedade: «O dia chegava ao fim. Havia gente a trepar das estações de metro cá para fora. Semelhantes a insectos, anónimas, desvairadas, as pessoas precipitavam-se na minha direcção (…). Rodopiavam e empurravam-se umas às outras; emitiam sons horríveis.» (p. 34). Henry define-se assim como uma pessoa sem ambição, na medida em que a ambição de muita gente é um triunfo vazio: «Como raio haveria um tipo de gostar de ser acordado às seis e meia da manhã por um despertador, saltar para fora da cama, vestir-se, comer à pressa, (…) escovar os dentes e o cabelo, e penar no trânsito para chegar a um sítio onde, fundamentalmente, vai fazer com que outra pessoa ganhe montes de dinheiro e se exige que se mostre grato pela oportunidade?» (p. 116). É em torno desta crítica a uma sociedade capitalista, ainda mais quando a Segunda Guerra colocou tantos valores em causa, que se concentra a ironia e o humor cáustico do autor: «As notas de embalagem nunca estavam erradas, possivelmente porque o tipo do outro lado estava demasiado assustado com perder o emprego para ser desleixado. Normalmente, vai na sétima de trinta e seis prestações do carro novo, a mulher está a tirar um curso de cerâmica à segunda-feira à noite, os juros da hipoteca estão a sugá-lo até ao tutano e cada um dos seus cinco filhos bebe um litro de leite por dia.» (p. 122).
A linguagem é simples, com frases curtas e incisivas, sem pretensiosismos, o que pode levar a julgar a escrita banal, mas a poesia e o cuidado estético estão sempre lá, mesmo quando o autor recorre a linguagem mais gráfica, conforme às personagens retratadas pertencentes a uma classe social de estrato baixo.
Este livro é uma espécie de descida aos Infernos do mito do escritor como ser marginal e liberto das convenções usuais da sociedade. Se bem que o próprio narrador alerte para a falsidade dessas construções míticas, pois o que parece prevalecer sempre é a lei da selva: «O mito do artista que passa fome era um embuste. Assim que nos apercebemos de que tudo não passava de um embuste, ganhámos juízo e começámos a extorquir e a queimar os nossos iguais.» (p. 56). Ver artigo
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