As altas montanhas de Portugal, de Yann Martel, mais uma grande narrativa da Editorial Presença, é o mais recente romance do autor canadiano de A vida de Pi.
Apesar do ritmo lento na primeira parte do livro, se bem que há quem defenda que essa é a parte mais rica e que depois a intriga desacelera, é uma história divertida e original muito bem escrita e com laivos filosóficos. O livro é composto por três narrativas distintas que acabarão por se entrecruzar misteriosamente, de forma mais ou menos revelada.
O autor de A vida de Pi refere nesse mesmo livro que o seu projecto inicial era escrever uma história passada em Portugal em 1938 mas que ao chegar à Índia e ao ouvir a magnífica história que cativou milhares de leitores por todo o mundo (e deu origem a um filme de Ang Lee) do menino à deriva num barco com um tigre acabou por abandonar essa ideia inicial.
Em As altas montanhas de Portugal o autor regressa a Portugal, começando por narrar a história de Tomás, no ano de 1917, que vive em Lisboa e é facilmente distinguível por entre as ruas da cidade pois anda “às arrecuas”, como forma de protesto a Deus, depois de ter perdido a mulher e o filho. Deparando-se com um mistério decide encetar uma viagem de carro ao Norte (penso sempre que Altas Montanhas é no fundo uma tradução incerta de Trás-os-Montes) em busca de um crucifixo do século XVII que pode muito bem conter ou representar um segredo que faria tremer os fundamentos do próprio Cristianismo. A sua travessia feita de carro, aliás num dos primeiros automóveis do país, e por alguém que nem sabia conduzir, tem um fim inesperado. Esta é das três narrativas a que se afigura mais simples, mas apesar da monotonia da viagem de carro descrita à exaustão acaba por prender o leitor ao livro logo de início.
Na segunda narrativa, 30 anos depois da história de Tomás, encontramos o Dr. Eusébio Lozaro, patologista, que prestes a começar uma autópsia é visitado pela esposa…
Na terceira narrativa, passamos à actualidade, onde encontramos Peter Tovey, um membro do Parlamento do Canadá, que após a morte da esposa acaba por adoptar um chimpanzé e muda-se com o animal para Portugal. Esta é a história mais intrigante, na forma como se questiona a natureza humana e animal, a relação entre ambos (que já se encontrava noutras obras do autor), e começamos finalmente a ligar as várias pontas soltas em torno destes homens e de uma escultura que acarreta uma possível revisão da religião e da fé.
A palavra saudade, tipicamente portuguesa, é aliás algo que atravessa todo o livro, pois as três narrativas encontram-se claramente interligadas pelo sentimento de perda de um ente amado: todos os três homens perderam as esposas. Ver artigo
Villa Celeste (publicada em 1985 pela Ulmeiro e agora integrada em O Separar das Águas e outras novelas da Relógio d’Água) traz o subtítulo de «Novela Ingénua». Porque se trata de uma narrativa com cerca de 50 páginas? Porque a sua protagonista, Teresinha – e note-se o diminutivo carinhoso -, é ela própria ingénua, capaz de encontrar felicidade nas coisas mais simples, como uma criança? Porque se trata de um conto alegórico, com uma certa moral social, narrado como quem conta uma história, com um certo jeito oralizante? Ou, como apontou alguma crítica na altura, porque consiste numa novela de «simplicidade ideológica, homóloga aliás da singeleza do estilo e da linearidade da efabulação narrativa» ?
A autora foca-se aqui noutro tipo de pobreza, a de espírito, mas sem se desviar do tema da cisão social que se prefigurava em O separar das águas. A narrativa começa pelo fim, a anunciar o clímax que se seguirá – «Teresinha Rosa já passava dos sessenta quando a vida lhe armou um campo de batalha e ela tomou o gosto ao pelejar.» (pág. 85) – para depois recuar até aos vinte anos da personagem, momento em que «os pais, a braços com seis filhas para casar, a colocaram como costureira portas adentro» (pág. 85).
Mantém-se, ainda que de forma mais secundária, a questão da classe social, ou de como os ricos usam os pobres, inclusive sexualmente, e a representação da mulher em traços menos positivos. Teresinha quando é acolhida na casa de um ramo da fidalga família dos Lebrões, onde começa por trabalhar por costureira, passa portanto a viver no sótão (imagem recorrente na escrita da autora e que nos remete para esse livro…) e será visitada por mais de vinte anos pelo patrão, Manuel Lebrão (note-se o aumentativo pejorativo), que era conhecido como um libertino rapidamente rejeita a mulher mas mantém-se fiel à empregada. A mulher aliás encara essa situação muito tranquilamente: «Fora com muito alívio que a mulher, criaturinha anémica, de gestos empastados, se vira rejeitada dos nojos conjugais. Cumprira o seu dever parindo um rapazinho muito louro, enfermiço, que Teresinha acolheu no peito generoso. Uma vez garantida a permanência dos bens familiares em legítima herança, a senhora Lebrão passou a dedicar-se aos seus vários achaques e ao jornal da paróquia.» (pág. 86) (itálicos nossos). Só nesta passagem podemos logo relevar três aspectos centrais às primeiras obras de Hélia Correia: a camponesa, isto é, a mulher pobre, é mais forte e enérgica; as mulheres de uma certa burguesia ou velha aristocracia é descrita de forma débil e uma vez cumprido o seu papel de garante da sobrevivência da linhagem facilmente se desliga do marido, ou é por este rejeitado, que preferirá encontrar prazer em mulheres de classe social mais baixa; o sexo entre marido e mulher é muitas vezes descrito como algo grotesco e bestial.
A narrativa carece de precisão temporal ou espacial, mas acabaremos por perceber, quando Villa Celeste se vê rodeada de prédios em construção que estamos na periferia de uma cidade, onde não faltará um bairro pobre, e, através da referência aos cabo-verdianos e pedreiros, sempre descritos com simpatia e compaixão, que podemos situar a narrativa na altura da descolonização, quando retornados e emigrados procuram trabalho e casa perto das grandes cidades. A Revolução de Abril será também referida perto do final da narrativa, se bem que com uma certa ironia: «estava o país inteiro de grãozito na asa», «ali para milagres já bastava ver os polícias acariciar as criancinhas» (pág. 115). Teresinha Rosa que é ao início vista como uma bruxa ou uma velha louca (a andar pelo campo a apanhar ervas e a falar sozinha) acaba por ser depois percebida como alguém cuja principal vocação é ajudar e confortar, cada vez mais angustiada pelo urbanismo que grassa em redor da sua Villa Celeste: «Com aquela cidade nascida à sua volta, começou a sentir os males da solidão. (…) O que profundamente a perturbava era ver aqueles prédios a transbordar assim de criaturas a quem não conseguia falar ou ser prestável» (pág. 104). Ver artigo
Um daqueles livros que queremos começar com apenas um conto para ir alternando com outras leituras mas, subitamente, um conto sabe a pouco e queremos sempre ler mais. Desenha-se um sorriso no rosto logo desde as primeiras linhas com o tom irónico, humorístico, e a crítica sagaz que entretece uma certa análise perspicaz e prática do insólito dos contos de fadas com a observação cáustica e mordaz de alguns comportamentos da actualidade, das massas, do ser humano, que talvez não seja tão diferente nos dias de hoje do que quando vivia nas trevas da Idade Média… Cada conto não dura mais do que umas 5 a 10 páginas, mas é justamente na condensação que se pode ver a mestria e o domínio da narrativa. As histórias discorrem de forma ligeira, sem que nos identifiquemos propriamente com as personagens, talvez porque tal como nos contos de fadas sentimos sempre essa distância entre este nosso mundinho e o irreal das suas peripécias. Quando pensamos nestas personagens dotadas de fabulosa beleza ou outros atributos que tais de grande utilidade na vida, podemos perguntar-nos, no mais íntimo, «Quem não iria querer lixar estas pessoas?», como o próprio narrador indica logo ao abrir do livro. Da mesma forma que os heróis ou protagonistas não são propriamente movidos pelas mais nobres razões, até à data não há finais felizes, pelo contrário, são tristes e quase sempre solitários, nos antípodas do “e viveram felizes para sempre”.
A edição da Gradiva é absolutamente fantástica, com ilustrações de Yuko Shimizu de um carácter negro a condizer com o tom dos contos. Ver artigo
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