A propósito da atribuição hoje do Prémio José Saramago, lembrei-me de publicar esta recensão, ainda que extensa, publicada recentemente na Colóquio Letras Ver artigo
Sensivelmente um ano depois de Um Gentleman em Moscovo, a Dom Quixote publica As Regras da Cortesia e, novamente, numa belíssima edição de capa dura, com excelente tradução de Tânia Ganho, que aliás enriquece a leitura com contexto sócio-cultural relativo ao cenário e indica cirurgicamente as alusões e jogos literários que pontuam a narrativa. Apesar de publicada em segundo lugar, esta foi a obra de estreia de Amor Towles. O autor nasceu em Boston, formou-se em Yale e este seu primeiro romance, originalmente publicado em 2011, foi considerado um dos melhores livros do ano pelo Wall Street Journal, traduzido para mais de 15 línguas e teve os direitos de adaptação ao cinema comprados – pode-se aliás imaginar uma adaptação ao estilo do The Great Gatsby de Baz Luhrmann. O escritor trabalhou durante 20 anos como investidor e dedica-se agora exclusivamente à escrita.
A acção inicia na última noite do ano de 1937, quando Katey, filha de emigrantes russos, e Eve, a sua colega e quarto e melhor amiga, conhecem Tinker, um jovem banqueiro e um verdadeiro cavalheiro, envolto no seu sobretudo de caxemira, num clube de jazz com o esperançoso nome de The Hotspot. Contado a partir da sua perspectiva numa sábia e bem-sucedida meia-idade, cerca de 30 anos depois, Katey vai relembrar como se apaixonou, como viveu e sofreu, como iniciou a sua escalada social. E, apesar de ser sempre um tema delicado e uma declaração passível de polémica, a voz narrativa na primeira pessoa, filtrada pela perspectiva da protagonista, é de tal modo bem conseguida que sentimos que o autor do romance é, na verdade, uma mulher.
Neste livro ressoa ainda a paixão do autor pela Rússia (cenário do seu segundo romance) e pelos autores russos, além de haver um constante jogo intertextual com diversas obras, poemas e autores. O próprio título da obra é adaptado a partir de um guia de boas maneiras de George Washington e quase todos os títulos de capítulos contêm referências literárias, ou não fosse a jovem heroína uma leitora inveterada. Note-se aliás esta passagem: «Coberta de neve em pó, Washington Square não podia estar mais bonita. (…) No número 25, uma mão abriu uma cortina no primeiro andar e o fantasma de Edith Wharton contemplou a praça com tímida inveja. Doce, perspicaz, assexuada, observou-nos a passar, perguntando-se quando é que o amor que ela imaginara com tanta mestria ganharia coragem para lhe bater à porta.» (p. 36)
É curiosa a tímida dicotomia que se tece entre a vida na alta sociedade e a maravilha de nos retirarmos do mundo e viver em simplicidade como no Walden de Henry David Thoreau, mas é inegável que a verdadeira protagonista deste romance é a sedutora cidade de Nova Iorque, quando emerge vitoriosa do fim da Depressão, apesar da guerra que se avizinha na Europa.
Através de Tinker, Katey conhece toda uma nova sociedade e descobre o conforto do luxo, mas sem nunca se deslumbrar: «quando uma pessoa perde a capacidade de tirar prazer do mundano – do cigarro fumado na soleira de casa ou da bolacha de gengibre comida no banho e imersão –, provavelmente colocou-se numa situação de perigo desnecessário.» Podemos até não concordar com estes pequenos prazeres, e optar por outros, mas o certo é que «temos de estar prontos para lutar pelos prazeres simples da vida e para os defender da elegância, da erudição e de toda a espécie de tentações cheias de glamour.» (p. 159) Para nós leitores, este será certamente um desses prazeres da vida. Ver artigo
Se o leitor não atender ao título, pode surpreendê-lo que os 16 ensaios e discursos de Jonathan Franzen, reunidos neste volume, publicado no final do ano passado pela D. Quixote, se debrucem não sobre literatura ou escrita, mas essencialmente sobre o meio ambiente; detentor de uma voz pessimista, ou cruamente realista, de que as medidas que sejam tomadas simplesmente já não podem evitar o pior, pois mesmo que tudo se mude, como se defendia há mais de 20 anos, a ideia de que a aceitação universal dos factos e uma acção colectiva à escala mundial pode travar o pior é, afinal, uma ficção (p. 27). Note-se como Moçambique, no espaço de um mês, foi assolado primeiro pelo ciclone Idai (que eu vivi, aqui na Beira) e depois pelo Kenneth, provocando centenas de mortos e dezenas de milhares de desalojados, naquele que já é considerado o pior cenário de catástrofe ambiental do Hemisfério Sul. Ver artigo
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