Deixem Passar o Homem Invisível, de Rui Cardoso Martins, ganhou o Grande prémio de romance da APE em 2010. Deixando um texto mais completo para mais tarde partilhar queria apenas referir que é uma obra bastante original e que apesar do mercado literário estar actualmente cheio de demasiadas opções apesar de nem todas poderem ser consideradas literatura, tanto da parte de jovens autores, como de autores novos e fugazes, bem como de jornalistas, vale bem a pena perdermo-nos nos labirintos subterrâneos de Lisboa em que um cego guia uma criança, e lhe dá a ver o mundo por outros olhos, os olhos da experiência e da sabedoria de vida. É particularmente enriquecedor a forma como o autor procura traçar um mapa de uma Lisboa oculta ao mesmo tempo que conduz uma narrativa em que reflecte o que significa viver e sobreviver na grande cidade, ainda mais num cenário semiapocalíptico como o que provoca o desaparecimento das duas personagens – perdidas nos esgotos e subterrâneos. O humor persiste ao longo da obra, principalmente quando se entra em trocadilhos e mal-entendidos a propósito das coisas ridículas que se podem dizer a um invisual. Há ainda um levantamento bastante completo em torno de certos lugares comuns relacionados com o ser cego, o que lembra um pouco os jogos linguísticos em que Saramago incorria na sua escrita, ao desconstruir expressões e provérbios. Ver artigo
Depois de ter lido Siddartha e Narciso e Goldmundo chega a vez da obra publicada em 1943 que terá valido em definitivo o Nobel a este autor em 1946 e que Thomas Mann descreveu como sendo um livro sublime.
Depois de uma introdução um pouco mais densa sobre em que consiste o jogo das contas de vidro – como que uma ordem de aprendizes que procuram aliar a música a outras disciplinas, como a matemática em exercícios de perícia e abstração mental, o livro acompanha a vida escolar de Joseph Knecht – José Servo -, um jovem órfão adoptado pela administração do ensino e de quem pouco se sabe, a quem é dada uma oportunidade concedida apenas a alguns eleitos: dada a destreza musical que exibe e que chama a atenção – sem que ele o perceba – do seu professor e depois de um Mestre de Música que o visita intencionalmente para averiguar se é merecedor de continuar os estudos numa escola de elite. Mas mais tarde, nos seus dezassete anos, sente-se seduzido por um colega que pertence à “ordem secular”, um jovem laico que apenas estuda naquele local por ser de famílias importantes e que contesta abertamente em prelecções espontâneas os mais “escolásticos”, os que irão permanecer fechados na sua ordem intelectual, que tem algo aliás de ordem espiritual – sendo a meditação uma das disciplinas – a prosseguir estudos, por vezes em exercícios intelectuais estéreis e que não interessam a ninguém. Joseph dedicar-se-á como outros eleitos à procura do saber e do conhecimento absoluto, chegando a tornar-se chefe supremo da comunidade, o Mestre do Jogo de Contas, Ludi Magister Josephus III, mas a certa altura acabará por perceber que é insustentável a contradição e tensão entre o mundo exterior, sempre imóvel, e o mundo fechado em que ele e os seus irmãos se escudam. Ver artigo
Se fosse fácil era para os outros (2012), de Rui Cardoso Martins, é a história de uma road trip aparentemente inversosímil feita por um grupo de amigos, agora em plena idade adulta, todos eles aparentemente a fugir de um passado de insatisfação ou desilusão, o que pode levar a desfechos, à medida que a narrativa se aproxima do fim, inesperados, pois esta viagem de carro ao longo da interestadual norte-americana parece também uma forma de viverem a vida e aproveitarem uns bons últimos momentos. As situações descritas são muitas vezes insólitas, anedóticas mesmo, quase saídas de um filme cómico de série B.
O narratário desta vez é uma ela, aparentemente a mulher do protagonista que terá falecido de doença.
O processo de escrita, mais uma vez, é livre, numa prosa fluída, em que a corrente de consciência determina uma narrativa que se torna livre, desconexa por vezes, com constantes divagações e deambulações, e histórias factuais e documentadas ou simplesmente inventadas que se aproveitam, onde se coloca a “nu” muitas vezes os próprios pensamentos do narrador, que por sua vez se parecem entrelaçar com os do autor. As marcas de diálogo são inconstantes pelo que por vezes aquilo que parece ser discurso do narrador é apenas o reproduzir de diálogos entre as personagens, onde tudo é passível de discussão e revisão. Além de outras características comuns à escrita do autor existem algumas diferenças: neste livro é muito mais forte e visível um processo de metaficção em que o narrador/autor por várias vezes coloca também a nu o próprio processo de escrita, onde parece derivar em torno da palavra ou da expressão certa, em que alterna entre um “agora” e um “então”, sendo por vezes claro que narra in locu outras vezes que claramente se esforça por relembrar com exactidão o sucedido. Ao pósmodernismo deste compósito caótico juntam-se constantes alusões ao cinema, pois a descrição muitas vezes traz a recordação de filmes norte-americanos, nomeadamente filmes de cowboys. O Alentejo continua a ser o local de referência do protagonista e o contraste entre Portugal e os Estados Unidos da América são recorrentes, pois as descrições são muitas vezes feitas em decalque ou por comparação entre os dois países. Além da questão da crise, foca-se muito a questão do capitalismo – note-se que o que permite às personagens ingressarem nesta louca viagem para a América e subsequente road trip é um cartão de crédito da falecida esposa (?) do protagonista que será utilizado enquanto os bancos não derem pelo erro, pois a correspondência e a publicidade continuava a a chegar à sua casa, como se ela ainda fosse viva. Pelo meio, denunciam-se ainda questões como a escravatura, a exploração dos índios, a bomba atómica, em suma, toda a série de extremismos e totalitarismos possíveis. O tom dominante é o de um certo pessimismo para com a vida e a realidade actual.
Próximo do final, os últimos capítulos serão cada vez mais curtos e breves, conforme o grupo se vai desfazendo, por vezes com finais insólitos ou incertos. Ver artigo
Porque afinal eu também leio de tudo um pouco, não vou discutir questões de literariedade, nem de cultura de massas ou de literatura popular, até porque a leitura só faz sentido enquanto prazer, abandono do mundo e busca de conhecimento ou sentido. Mas como amante e estudioso de literatura sei também que daqui a uns anos o que hoje se chama literatura um dia entrará certamente nos domínios da paraliteratura porque, afinal, a verdadeira literatura é aquela que, por muito que se leia, deixa sempre uma marca, um murro no estômago, uma sensação de desorientação e ao mesmo tempo de completude.
Deixo aqui um exemplo daquilo que por muito que os anos passem duvido (espero) que seja esquecido do que eu considero literatura, com passagens emblemáticas de um dos meus romances favoritos da literatura portuguesa: O Meu Mundo Não É Deste Reino, de João de Melo (e pelo que verifiquei não está aqui apresentado ainda) Ver artigo
Terminado outro romance de Agustina Bessa-Luís, A corte do Norte, fica sempre a sensação de se ter lido uma obra contada em espiral, pois não há propriamente uma intriga nem mesmo uma linearidade narrativa, mas sim uma série de analepses e prolepses, em torno de uma figura central, que é Rosalina, a Baronesa de Madalena do Mar, ou mais exactamente em torno do enigma do que terá acontecido a Rosalina que um certo dia desapareceu.
A narrativa situa-se na ilha da Madeira, mais precisamente, na povoação de Corte do Norte, Ponta Delgada, e centra-se, inicialmente, na figura de Rosalina que depois se cruza com Sissi, a imperatriz Elisabeth de Áustria (Inverno de 1860-61) que se encontrava na ilha em convalescença, cuja visão aliás parece perturbar e transformar Rosalina. Mas como se afirma no início este é também um romance que se centra não em Rosalina mas sim na ilha, na insularidade, na saudade, e em particular na possibilidade de se poder escrever a História.
Ao longo de cinco gerações o enigma de Rosalina persegue alguns dos seus descendentes que, por muito que repensem e procurem remexer no passado, isso só servirá para criar mais e mais conjunturas acerca do que possa ter realmente acontecido. Deste modo, A corte do Norte inscreve-se numa linha pós-modernista do romance histórico, em que a História nunca aparece como passível de ser fixada enquanto lei ou facto, mas sim como uma verdade temporariamente válida e sempre em revisão. Por outro lado, o enigma de Rosalina é de tal forma premente que as gerações que a sucedem parecem não poder resolver-se, isto é, a identidade de cada um só se pode cumprir quando o mistério que os precede puder ser resolvido. Inclusivamente é curioso como à ambiguidade ou incerteza do passado, se junta a questão da duplicidade ou do duplo, como no facto de Rosalina se confundir com a actriz Emília de Sousa, além de ser recorrentemente apelidada de Boal (a propósito de uma casta de vinho), mas mais especialmente no facto de os próprios descendentes da Baronesa, como por exemplo Rosamund, conforme são também possuídos por essa vontade de decifrar o enigma dessa mulher cujo corpo nunca foi encontrado, parecerem subitamente copiá-la não só no físico, o que sempre se pode explicar pela intemporalidade genética, mas no próprio comportamento.
Este é um romance inacabado, característica aliás da escrita agustiniana, pois cabe ao leitor decifrar o enigma e cifrar as suas próprias interpretações, todas elas válidas (à semelhança de Rosalina que a cada nova investigação sofre uma morte diferente), que trata bastante da questão da Madeira (local que me é particularmente querido pois faz parte dos meus costados), essa pequena nação à parte, com os seus modos próprios, a sua história, os seus ditos e palavras, mas também, apesar da relativa ausência de linearidade cronológica, da História do país ao longo de século e meio, onde a autora/narradora (é difícil distinguir neste caso, onde aliás, o próprio “eu” surge claramente assumido no final do romance) tece as suas considerações sobre o devir histórico, filosófico, social, político, económico… Em suma, Agustina é um mundo à parte, no qual entro sempre a medo, mas saio sempre refeito. Afinal estas cerca de 250 páginas levaram-me quase uma semana, até porque temos de seguir cuidadosamente o fio da narrativa mas também deliciar-nos com os aforismos com que Agustina constantemente presenteia o leitor. Falta-me agora ver o filme de João Botelho. Em conclusão, dizia, «O epílogo desta história não se há-de escrever nunca.». Ver artigo
E se eu gostasse muito de morrer é o primeiro romance de Rui Cardoso Martins. O título não é original pois terá sido retirado da obra de Dostoiveski, Crime e Castigo. Nesta obra impera o humor negro – se bem que a ironia e um certo grotesco estejam presentes em toda a escrita do autor -, como forma de retratar um tema sério e polémico, o suicídio no Alentejo, sobre o qual se lançou também recentemente um livro, de Henrique Raposo. Apesar da seriedade do tema, o autor recorre muitas vezes ao humor e ao ridículo na narrativa, como aliás o faz quase sempre, e a intriga acaba por se desenrolar de forma aparentemente caótica, com histórias dentro de histórias – outra das características da sua escrita -, se bem que nesta obra existe a particularidade de quase sempre que uma personagem é introduzida há sempre espaço para se descrever a morte da mesma e sempre, ou quase sempre, por suicídio.
As personagens são todas jovens do sexo masculino apresentadas pelas suas alcunhas, à medida que a narrativa se parece centrar num grupo de jovens mas o tu que conta a história, o protagonista, é Cruzeta que parece ser um jornalista.
As narrativas de Rui Cardoso Martins são sempre narradas na primeira pessoa, se bem que aqui temos a particularidade de haver um narratário, um tu, que depois percebemos ser o próprio protagonista a falar consigo próprio ou a escrever para si mesmo. O discurso torna-se por vezes desconexo, o que parece aliás retratar uma certa pós-modernidade de escrita, em que tudo acontece em simultaneidade e o tempo é fugaz e colectivo, onde muitas histórias e vozes, e ecos de citações ou situações, confluem na intriga nem sempre linear, até que se aproxima de um final insólito – que também configura os vários romances do autor. A oralidade e a repetição, além de um eu que fala consigo próprio, sendo o discurso narrativo um género de voz interior que discorre livremente, jogam um papel chave na escrita do autor, onde entram diversos registos, onomatopeias, etc..
A história centra-se num tempo incerto e num local não nomeado mas que depois percebemos ser a cidade natal do autor, Portalegre, havendo mesmo a referência à Toada Portalegre, escrita por José Régio, apesar de a cidade nunca ser nomeada. E um dos temas recorrentes nas obras de Rui Cardoso Martins, além da questão do suicídio que é muito específica da realidade alentejana, é o da crise económica e dos tempos difíceis que se vivem e a que se alude por diversas vezes. Ver artigo
William e Wilson são dois gémeos idênticos e ambos possuem a letra W no nome pois afinal trata-se de um DUPLO V. O tema do duplo e do doppelganger encontra-se assim na base desta intriga que se passa entre as memórias de infância e adolescência no Brasil pós-ditadura e no Cairo, no tempo presente da narrativa, se bem que cerca de 20 anos depois de se terem visto pela última vez um dos irmãos é agora Cleópatra… Ver artigo
Palavras que falam por nós, de Pedro Braga Falcão, parece-me um livro imprescindível a qualquer amante da leitura e das palavras. Sem cair na secura de um dicionário ou de um glossário, o jovem autor (1981), doutorado em Literatura Latina, e professor de Latim, Grego e História das Religiões na Universidade Católica, parte à descoberta das raízes da língua portuguesa e das histórias que as palavras contam, a partir da sua raíz etimológica. Focando-se, naturalmente, no latim, não deixa ainda assim de repescar a origem etimológica das palavras também no grego e no indo-europeu, aproximando-as ainda de outras línguas como o russo ou o germânico, quando tal se justifica. Parece-me um aturado trabalho de pesquisa mas mais louvável é a forma como o livro é escrito e a história das palavras se desdobra. O livro é dividido em dez capítulos e o que o autor faz é aproximar palavras muito diversas e aparentemente diferentes, no sentido que hoje lhes atribuímos, segundo uma espécie de campo semântico: amor e paixão, elogio, desamor, rua, escola e cultura, etc. Desta forma palavras como amor ou patético ou deslumbrar são habilmente aproximadas pelo autor a partir do seu sentido original, muitas vezes com laivos de cultura, que me permitiram por exemplo perceber finalmente a designação de Sinfonia Patética de Tchaikovsky (que afinal tem a ver com algo que provoca emoção e só depois evoluiu para algo digno de pena). E, como última nota, de um livro cuja leitura considero realmente imprescindível reconheço ainda o sentido de humor do autor e a leveza do tom, que nos faz sentir como se estivéssemos a assistir a uma palestra que se desdobra no tempo mas em sentido inverso, levando-nos para trás até aos princípios da nossa língua. (Ah e fiquei também a saber que sofro de nostalgia: a dor que se sente pelo regresso à nossa pátria ou, por vezes, a lugares irremediavelmente perdidos mas que subsitem ainda e apenas na memória, como a infância. Talvez por estar nostálgico esteja a apreciar tanto este livro que me leva à minha outra casa que é a língua portuguesa) Ver artigo
Mais uma vez os títulos em português nem sempre fazem muito jus à obra da autora, normalmente considerada como literatura chick ou light. Neste caso particular o título até está muito próximo do original. A obra não está ao nível de Xeque ao Rei, que consegue um dos voltefaces mais fantásticos na ficção publicada nos últimos anos, mas que mais uma vez se perde com a tradução para o português (aconselho vivamente a ler a obra no original para ser verdadeiramente surpreendido no último capítulo), mas é um agradável regresso da autora e ao universo dessa obra. Reencontramos Roy Straitley, professor em St. Oswald, um colégio de rapazes, «um velho Rei solitário no tabuleiro de xadrez», um baluarte – ou dinossauro – de um método mais tradicional de aulas, além de ensinar justamente essa língua “morta” que é o latim há 34 anos. Enquanto St. Oswald ainda sofre do rescaldo dessa anterior tragédia, situação ocorrida anos antes e que resulta na morte de uma menina local, uma nova ameaça paira sobre a instituição que deveria ser um modelo de exemplaridade e excelência. Mais uma vez a autora não foge a temas mais actuais – como fez em O aroma das especiarias – e a pedofilia, o fanatismo religioso e a tortuosidade de certas mentes perversas são as forças que ameaçam o colégio. Ver artigo
Este é um dos meus prazeres culposos. Penso que atraído pela publicitação da autora como a nova mestre do romance fantástico, na senda de Marion Zimmer Bradley, comecei a ler as trilogias – os seus livros saem sempre em conjuntos de 3 – de Juliet Marillier. A nova trilogia, de que este livro constitui o segundo volume, é em torno não de uma das de duas personagens – Blackthorn & Grim. Ler esta autora é um pouco como ouvir, digamos, Enya: a melodia é sempre a mesma ainda que mude um pouco a letra, por isso quando se volta ao universo da autora as histórias são familiares, sempre em torno de tradições célticas e contos de fadas. Esta trilogia e este livro em particular é diferente dos anteriores da autora visto que para já a protagonista não é uma jovem donzela inocente mas sim uma mulher já com alguma idade e marcada pela vida, pois sobreviveu à morte do marido e do filho e é movida por um desejo imparável de vingança, mesmo depois de ter vivido um ano horrivel numa prisão onde foi sujeita a atrozes humilhações, onde conheceu aliás Grim, essa personagem que como o nome indica é um pouco “disforme”, um homem de grande estatura e que é sempre confudido como um simples, um pobre de espírito, um brutamontes. O livro é ainda original pela sua estrutura tripartida, em que alternam as narrações feitas a partir da perspectiva de Blackthorn, Grim e Geiléis, a mulher que pede ajuda à mulher sábia. Esta estrutura resulta do facto de o leitor ir tomando conhecimento das diferentes histórias que se irão entrelaçar mais no final, pois cada uma das personagens esconde segredos e motivos próprios, além de que é particularmente enternecedor o modo como nos apercebemos dos sentimentos de Grim por Blackthorn, que continua sempre a recusar ver o inevitável, tanto na dedicação de Grim por si como dentro do seu próprio coração achando simplesmente que formam um duo forte em função das tristes circunstâncias que os juntaram. Ver artigo
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