Regresso às origens Ver artigo
O osso da Borboleta é o último livro de Rui Cardoso Martins, autor que tive a felicidade de ser convidado a trabalhar. Gostei muito de Deixem Passar o Homem invisível, mas este livro apesar de se enquadrar num registo diferente, deixa também a sua marca no leitor.
Temos um narrador cujo discurso quase desconexo, que acompanhamos numa corrente de consciência narrada na primeira pessoa para melhor identificação com o protagonista ou maior confusão do leitor, na medida em que o próprio narrador reconhece que os seus pensamentos são desconexos e parecem fugir ao seu controlo, o que por outro lado leva a uma escrita aparentemente desregrada, onde a oralidade está aliás profundamente vincada, através da repetição, de expressões coloquiais, do uso de palavrões. Este narrador, percebemos depois, é um criminoso que se esconde no sótão de um prédio, sótão onde se diz viver fantasmas e que albergou também, durante a Segunda Guerra, outra categoria de “alienados”, isto é, judeus, que tiveram de fugir e esconder-se para poderem preservar a sua vida. Quanto ao narrador vamos sabendo muito pouco, apesar da sua jactância e torrente de confissões e memórias – o desregramento de que falávamos -, apenas que terá extorquido a empresa, que vive à base dos pombos que apanha e do arroz que armazenou em grandes quantidades, fala com a mãe que já morreu, tem uma vitrine de bonecos que coloca em posições de modo a terem relações sexuais entre si, espreita o mundo lá fora, nomeadamente a vizinha de baixo, a D. Purificação, e chama-se Paulinho. Por vezes em capítulos alternados, a narrativa oscila entre este estranho fugitivo – cuja sanidade mental parece ter soçobrado há algum tempo – e a sua vizinha, D. Purificação, como se ela fosse uma ponte com o mundo exterior, através da qual a personagem vive a realidade que lhe escapa ou a que se escapou, se bem que sempre de forma omnisciente. Mas já na segunda parte do romance a intriga passa a centrar-se quase exclusivamente nesta senhora que, mais do que uma comum mulher doméstica que vive uma vida de pobreza, à qual já se acomodou, na sua rotina de comer apenas um galão com uma torrada três vezes ao dia, pois o dinheiro não dá para mais, e que tem uma relação conturbada com a filha que vive, por seu lado, uma ilusão, mantida numa casa pelo amante que vive a mentira de um casamento com uma mulher que julga doente de cancro.
O livro centra-se em todo um vasto leque de animais, muitas vezes parasitários, como pombos, ratos, formigas, morcegos, e no fim a nota de esperança do romance – além do desabrochar da Borboleta a que o leitor assiste na segunda parte do livro – condensa-se na frase derradeira que o encerra: «Acho que vamos sair vivos desta fábula.» Fábula de vidas miseráveis? De jogadores, extorsionistas, contrabandistas, assassinos?
A miséria, a pobreza, a infelicidade, as oportunidades perdidas parecem ser a substância das personagens com que nos cruzamos neste romance, muitas vezes num encaixe de histórias dentro de histórias, onde nos encontramos com nomes caricatos e reveladores não de um qualquer tipo social mas de uma meia natureza humana: Cândida Peixeira, Amélia do Ritz, Jaime Vadio, Mello Mascarenhas, Dundum. Muitos deles vivem inclusive num prédio cuja construção nunca foi terminada (falta de verbas?, crise financeira que se instalou?), justamente designado de Naufrágio da Marginal. Pode-se, por este esquisso da miséria humana, estabelecer uma comparação com Raúl Brandão em Os Pobres, por exemplo, ou Húmus, pois as personagens parecem viver uma morte em vida, se bem que este cenário é também uma denúncia social do Portugal recente, devassado pela crise e pela austeridade, onde apesar de tudo o sonho ainda é um condutor de esperança, nomeadamente mediante o jogo, pois é também no casino que certos momentos fulcrais da intriga se passam. Afinal a D. Purificação, já no final do romance, metamorfoseia-se em Borboleta, conhecida por dar sorte aos jogadores do casino há uns anos e ela própria sai da sua crisálidade de apatia quando faz uso pessoal pela primeira vez dessa sua sorte ao jogo para tentar salvar a vida da sua filha de um destino incerto e provavelmente fatal.
Rui Cardoso Martins é um jornalista que escreve como um escritor e vale a pena atentar na evolução que tem feito ao longo dos seus romances – preparo-me para ler outros dois. Considerando este cenário urbano, um labirinto onde as pessoas se perdem e vagueiam numa vida sem sentido, muitas vivendo de forma marginal ou alienada, aproxima-se do hiper-realismo ou realismo urbano total (para usar a designação atribuída por Miguel Real a esta corrente literária). Independentemente do grau de fantasia efabuladora ou de alguma inverosimilhança, a que se aliam muitas vezes o humor de linguagem, de situação, e a estranheza das personagens, o autor constrói um rol de personagens todas elas mais ou menos disfuncionais, que vivem à margem da sociedade ideal estereotipada da classe média, mas com as quais o leitor não pode deixar de se identificar, pois vivem um quotidiano de sobrevivência num mundo que elas próprias constroem para si, como uma bolha que as protege mas não as deixa evadir do mundo maior, o dito mundo real, que as cerca e do qual elas nos presenteiam uma perspectiva.
Temos um narrador cujo discurso quase desconexo, que acompanhamos numa corrente de consciência narrada na primeira pessoa para melhor identificação com o protagonista ou maior confusão do leitor, na medida em que o próprio narrador reconhece que os seus pensamentos são desconexos e parecem fugir ao seu controlo, o que por outro lado leva a uma escrita aparentemente desregrada, onde a oralidade está aliás profundamente vincada, através da repetição, de expressões coloquiais, do uso de palavrões. Este narrador, percebemos depois, é um criminoso que se esconde no sótão de um prédio, sótão onde se diz viver fantasmas e que albergou também, durante a Segunda Guerra, outra categoria de “alienados”, isto é, judeus, que tiveram de fugir e esconder-se para poderem preservar a sua vida. Quanto ao narrador vamos sabendo muito pouco, apesar da sua jactância e torrente de confissões e memórias – o desregramento de que falávamos -, apenas que terá extorquido a empresa, que vive à base dos pombos que apanha e do arroz que armazenou em grandes quantidades, fala com a mãe que já morreu, tem uma vitrine de bonecos que coloca em posições de modo a terem relações sexuais entre si, espreita o mundo lá fora, nomeadamente a vizinha de baixo, a D. Purificação, e chama-se Paulinho. Por vezes em capítulos alternados, a narrativa oscila entre este estranho fugitivo – cuja sanidade mental parece ter soçobrado há algum tempo – e a sua vizinha, D. Purificação, como se ela fosse uma ponte com o mundo exterior, através da qual a personagem vive a realidade que lhe escapa ou a que se escapou, se bem que sempre de forma omnisciente. Mas já na segunda parte do romance a intriga passa a centrar-se quase exclusivamente nesta senhora que, mais do que uma comum mulher doméstica que vive uma vida de pobreza, à qual já se acomodou, na sua rotina de comer apenas um galão com uma torrada três vezes ao dia, pois o dinheiro não dá para mais, e que tem uma relação conturbada com a filha que vive, por seu lado, uma ilusão, mantida numa casa pelo amante que vive a mentira de um casamento com uma mulher que julga doente de cancro.
O livro centra-se em todo um vasto leque de animais, muitas vezes parasitários, como pombos, ratos, formigas, morcegos, e no fim a nota de esperança do romance – além do desabrochar da Borboleta a que o leitor assiste na segunda parte do livro – condensa-se na frase derradeira que o encerra: «Acho que vamos sair vivos desta fábula.» Fábula de vidas miseráveis? De jogadores, extorsionistas, contrabandistas, assassinos?
A miséria, a pobreza, a infelicidade, as oportunidades perdidas parecem ser a substância das personagens com que nos cruzamos neste romance, muitas vezes num encaixe de histórias dentro de histórias, onde nos encontramos com nomes caricatos e reveladores não de um qualquer tipo social mas de uma meia natureza humana: Cândida Peixeira, Amélia do Ritz, Jaime Vadio, Mello Mascarenhas, Dundum. Muitos deles vivem inclusive num prédio cuja construção nunca foi terminada (falta de verbas?, crise financeira que se instalou?), justamente designado de Naufrágio da Marginal. Pode-se, por este esquisso da miséria humana, estabelecer uma comparação com Raúl Brandão em Os Pobres, por exemplo, ou Húmus, pois as personagens parecem viver uma morte em vida, se bem que este cenário é também uma denúncia social do Portugal recente, devassado pela crise e pela austeridade, onde apesar de tudo o sonho ainda é um condutor de esperança, nomeadamente mediante o jogo, pois é também no casino que certos momentos fulcrais da intriga se passam. Afinal a D. Purificação, já no final do romance, metamorfoseia-se em Borboleta, conhecida por dar sorte aos jogadores do casino há uns anos e ela própria sai da sua crisálidade de apatia quando faz uso pessoal pela primeira vez dessa sua sorte ao jogo para tentar salvar a vida da sua filha de um destino incerto e provavelmente fatal.
Rui Cardoso Martins é um jornalista que escreve como um escritor e vale a pena atentar na evolução que tem feito ao longo dos seus romances – preparo-me para ler outros dois. Considerando este cenário urbano, um labirinto onde as pessoas se perdem e vagueiam numa vida sem sentido, muitas vivendo de forma marginal ou alienada, aproxima-se do hiper-realismo ou realismo urbano total (para usar a designação atribuída por Miguel Real a esta corrente literária). Independentemente do grau de fantasia efabuladora ou de alguma inverosimilhança, a que se aliam muitas vezes o humor de linguagem, de situação, e a estranheza das personagens, o autor constrói um rol de personagens todas elas mais ou menos disfuncionais, que vivem à margem da sociedade ideal estereotipada da classe média, mas com as quais o leitor não pode deixar de se identificar, pois vivem um quotidiano de sobrevivência num mundo que elas próprias constroem para si, como uma bolha que as protege mas não as deixa evadir do mundo maior, o dito mundo real, que as cerca e do qual elas nos presenteiam uma perspectiva.
Deixem Passar o Homem Invisível, de Rui Cardoso Martins, ganhou o Grande prémio de romance da APE em 2010. Deixando um texto mais completo para mais tarde partilhar queria apenas referir que é uma obra bastante original e que apesar do mercado
literário estar actualmente cheio de demasiadas opções apesar de nem todas poderem ser consideradas literatura, tanto da parte de jovens autores, como de autores novos e fugazes, bem como de jornalistas, vale bem a pena perdermo-nos nos labirintos subterrâneos de Lisboa em que um cego guia uma criança, e lhe dá a ver o mundo por outros olhos, os olhos da experiência e da sabedoria de vida. É particularmente enriquecedor a forma como o autor procura traçar um mapa de uma Lisboa oculta ao mesmo tempo que conduz uma narrativa em que reflecte o que significa viver e sobreviver na grande cidade, ainda mais num cenário semiapocalíptico como o que provoca o desaparecimento das duas personagens – perdidas nos esgotos e subterrâneos. O humor persiste ao longo da obra, principalmente quando se entra em trocadilhos e mal-entendidos a propósito das coisas ridículas que se podem dizer a um invisual. Há ainda um levantamento bastante completo em torno de certos lugares comuns relacionados com o ser cego, o que lembra um pouco os jogos linguísticos em que Saramago incorria na sua escrita, ao desconstruir expressões e provérbios. Ver artigo
E se eu gostasse muito de morrer é o primeiro romance de Rui Cardoso Martins. O título não é original pois terá sido retirado da obra de Dostoiveski, Crime e Castigo. Nesta obra impera o humor negro – se bem que a ironia e um certo grotesco estejam presentes em toda a escrita do autor -, como forma de retratar um tema sério e polémico, o suicídio no Alentejo, sobre o qual se lançou também recentemente um livro, de Henrique Raposo. Apesar da seriedade do tema, o autor recorre
muitas vezes ao humor e ao ridículo na narrativa, como aliás o faz quase sempre, e a intriga acaba por se desenrolar de forma aparentemente caótica, com histórias dentro de histórias – outra das características da sua escrita -, se bem que nesta obra existe a particularidade de quase sempre que uma personagem é introduzida há sempre espaço para se descrever a morte da mesma e sempre, ou quase sempre, por suicídio.
As personagens são todas jovens do sexo masculino apresentadas pelas suas alcunhas, à medida que a narrativa se parece centrar num grupo de jovens mas o tu que conta a história, o protagonista, é Cruzeta que parece ser um jornalista.
As narrativas de Rui Cardoso Martins são sempre narradas na primeira pessoa, se bem que aqui temos a particularidade de haver um narratário, um tu, que depois percebemos ser o próprio protagonista a falar consigo próprio ou a escrever para si mesmo. O discurso torna-se por vezes desconexo, o que parece aliás retratar uma certa pós-modernidade de escrita, em que tudo acontece em simultaneidade e o tempo é fugaz e colectivo, onde muitas histórias e vozes, e ecos de citações ou situações, confluem na intriga nem sempre linear, até que se aproxima de um final insólito – que também configura os vários romances do autor. A oralidade e a repetição, além de um eu que fala consigo próprio, sendo o discurso narrativo um género de voz interior que discorre livremente, jogam um papel chave na escrita do autor, onde entram diversos registos, onomatopeias, etc..
A história centra-se num tempo incerto e num local não nomeado mas que depois percebemos ser a cidade natal do autor, Portalegre, havendo mesmo a referência à Toada Portalegre, escrita por José Régio, apesar de a cidade nunca ser nomeada. E um dos temas recorrentes nas obras de Rui Cardoso Martins, além da questão do suicídio que é muito específica da realidade alentejana, é o da crise económica e dos tempos difíceis que se vivem e a que se alude por diversas vezes. Ver artigo
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