Raízes Brancas, de Bernardine Evaristo, foi o segundo romance publicado entre nós pela Elsinore, em Junho de 2021, da autora vencedora do Booker Prize. Traduzido por Miguel Romeira, este é um romance provocador que reinventa a história, narrando um mundo às avessas, onde os negros escravizam os brancos. Ver artigo
Mr. Loverman, de Bernardine Evaristo, traduzido por Miguel Romeira, é o terceiro romance da autora vencedora Booker Prize publicado entre nós pela Elsinore. Ver artigo
Quatro Contos Consonantes é o segundo livro infantojuvenil da autora canadiana Margaret Atwood, publicado pela Ponto de Fuga, depois de No alto da árvore. Com tradução de Vladimiro Nunes, e revisão de Rita Almeida Simões, este volume reúne quatro obras infantojuvenis distintas de um dos grandes nomes da literatura contemporânea. Além de estarem exclusivamente reunidas, e pela primeira vez, graças a esta edição portuguesa, ganham ainda um tom ternamente sombrio (ao estilo de Tim Burton) com o traço distintivo das ilustrações a cores de Sebastião Peixoto – no final do livro incluem-se ainda alguns esboços das ilustrações. Ver artigo
Rapariga, Mulher, Outra, de Bernardine Evaristo, publicado pela Elsinore, concretiza verdadeiramente o significado de romance polifónico. As 12 personagens deste romance a várias vozes apenas têm em comum serem mulheres (excepto Mogan que se definirá como não-binária), quase todas negras, a viver no Reino Unido, geralmente lésbicas. Poder-se-ia até procurar eleger como protagonista Amma, a dramaturga cujo trabalho artístico frequentemente explora a sua identidade lésbica negra, até porque é em torno da noite de estreia da sua peça que muitas destas histórias se interligam, quando algumas destas 12 mulheres se reencontram.
Cada capítulo subdivide-se, em torno de um eixo que congrega várias vozes que ressoam entre si (por exemplo, no Capítulo Um, temos 3 partes constituídas pela voz de Amma, a sua filha Yazz, e Dominique, a melhor amiga). A voz narrativa está na 3.ª pessoa, todavia consegue fazer o leitor beber da perspectiva de cada uma das personagens, que representam mulheres muito díspares entre si, do mais convencional ao mais rebelde, da típica dona de casa branca de subúrbio à empregada de limpeza nigeriana que não esquece as suas raízes.
E ao contar a história de cada uma delas, a autora dá vida a uma voz credível, onde conflui o dialecto (Bummi), o sociolecto (LaTisha), e a linguagem tecnológica dos dias que correm, coloridamente plasmados nas redes sociais (Megan/Morgan). Ao que acresce, nesta vasta tapeçaria, a forma como a história das personagens atravessa, por vezes, todo o século XX, dando conta, muito particularmente, do longo e sofrido percurso do que significa ser uma mulher de cor num mundo que silencia a diferença. A pujança da narrativa conduz a uma leitura vertiginosa, sem que o leitor se perca na torrente de histórias, magistralmente fluída, capaz de uma total identificação com cada uma destas mulheres, mesmo quando páginas depois lemos com que olhos é que as outras mulheres, que em torno dela gravitam, a vêem. Um retrato que se pensaria impossível do principal legado do império colonial britânico… Uma realidade multicultural e multifacetada, muito actual e vívida, fortemente assente no colonialismo, na imigração e na diáspora, em que todas as categorias e tentativas de compartimentação são sempre fluídas – um pouco ao jeito da sexualidade destas mulheres que se redescobrem, muitas vezes, ao amar uma mulher amiga.
Um romance imperdível, impossível de pousar, que repensa com humor e quase imperceptível ironia todas as noções possíveis de identidade, género e classe. Como quando uma das poucas mulheres brancas com voz neste romance descobre que afinal tem África no seu ADN: «deitada na cama, imaginou os seus antepassados de panos a cobrir-lhes as partes, a correr pelas savanas de África e a caçar leões com lanças – mas a fazê-lo de quipá na cabeça, depois a comer “sanduíches à dinamarquesa” e paelha e a recusarem-se a caçar no sabbat» (p. 465)
Bernardine Evaristo nasceu no sudeste de Londres, em 1959, filha de mãe britânica e pai nigeriano. Autora de uma obra que versa os mais diversos géneros – romance, poesia, contos, teatro e crítica literária –, a sua escrita é caracterizada pela experimentação, ousadia e subversão. Rapariga, Mulher, Outra foi, ex-aequo com Os Testamentos (Bertrand Editora), de Margaret Atwood, o vencedor do Booker Prize 2019, recebeu a distinção de Livro do Ano e Autor do Ano do British Book Awards 2020. Foi ainda finalista do Women’s Prize de ficção 2020 e do Orwell Prize de ficção política 2020.
Cada capítulo subdivide-se, em torno de um eixo que congrega várias vozes que ressoam entre si (por exemplo, no Capítulo Um, temos 3 partes constituídas pela voz de Amma, a sua filha Yazz, e Dominique, a melhor amiga). A voz narrativa está na 3.ª pessoa, todavia consegue fazer o leitor beber da perspectiva de cada uma das personagens, que representam mulheres muito díspares entre si, do mais convencional ao mais rebelde, da típica dona de casa branca de subúrbio à empregada de limpeza nigeriana que não esquece as suas raízes.
E ao contar a história de cada uma delas, a autora dá vida a uma voz credível, onde conflui o dialecto (Bummi), o sociolecto (LaTisha), e a linguagem tecnológica dos dias que correm, coloridamente plasmados nas redes sociais (Megan/Morgan). Ao que acresce, nesta vasta tapeçaria, a forma como a história das personagens atravessa, por vezes, todo o século XX, dando conta, muito particularmente, do longo e sofrido percurso do que significa ser uma mulher de cor num mundo que silencia a diferença. A pujança da narrativa conduz a uma leitura vertiginosa, sem que o leitor se perca na torrente de histórias, magistralmente fluída, capaz de uma total identificação com cada uma destas mulheres, mesmo quando páginas depois lemos com que olhos é que as outras mulheres, que em torno dela gravitam, a vêem. Um retrato que se pensaria impossível do principal legado do império colonial britânico… Uma realidade multicultural e multifacetada, muito actual e vívida, fortemente assente no colonialismo, na imigração e na diáspora, em que todas as categorias e tentativas de compartimentação são sempre fluídas – um pouco ao jeito da sexualidade destas mulheres que se redescobrem, muitas vezes, ao amar uma mulher amiga.
Um romance imperdível, impossível de pousar, que repensa com humor e quase imperceptível ironia todas as noções possíveis de identidade, género e classe. Como quando uma das poucas mulheres brancas com voz neste romance descobre que afinal tem África no seu ADN: «deitada na cama, imaginou os seus antepassados de panos a cobrir-lhes as partes, a correr pelas savanas de África e a caçar leões com lanças – mas a fazê-lo de quipá na cabeça, depois a comer “sanduíches à dinamarquesa” e paelha e a recusarem-se a caçar no sabbat» (p. 465)
Bernardine Evaristo nasceu no sudeste de Londres, em 1959, filha de mãe britânica e pai nigeriano. Autora de uma obra que versa os mais diversos géneros – romance, poesia, contos, teatro e crítica literária –, a sua escrita é caracterizada pela experimentação, ousadia e subversão. Rapariga, Mulher, Outra foi, ex-aequo com Os Testamentos (Bertrand Editora), de Margaret Atwood, o vencedor do Booker Prize 2019, recebeu a distinção de Livro do Ano e Autor do Ano do British Book Awards 2020. Foi ainda finalista do Women’s Prize de ficção 2020 e do Orwell Prize de ficção política 2020.
Quando estreou, em Abril de 2017, a série televisiva do canal de streaming Hulu que adaptava A História de uma Serva, de Margaret Atwood, superou todas as expectativas. A série The Handmaid’s Tale, que segue agora para a quarta temporada, tornou-se uma das mais populares dos últimos anos, até pela irónica coincidência de Gileade parecer representar o futuro dos Estados Unidos da América, com a eleição de Trump. A própria autora chega a aparecer numa das cenas mais perturbadoras da série. Entretanto, as distopias parecem ter-se tornado uma possibilidade cada vez mais próxima – parece aliás que vivemos numa, com esta pandemia, que levou a que praticamente o mundo inteiro se fechasse em casa.
Os Testamentos, com tradução de Sofia Ribeiro, surge agora publicado pela Bertrand Editora, depois de ter sido lançado internacionalmente em 2019 e é a continuação, ou a conclusão, da história de Gileade, 35 anos depois da obra anterior. A intriga da narrativa tem lugar 15 anos depois do final em aberto de A história de uma Serva, até porque a segunda temporada da série se torna completamente independente da obra de Margaret Atwood. E a autora, depois de obras menos conseguidas como O Coração é o Último a Morrer, está aqui em pleno fôlego criativo, tanto que arrecadou novamente o Booker Prize de 2019 com este livro. A narrativa alterna entre a história de três mulheres, totalmente diferentes: Agnes Jemima é uma jovem já criada no regime de Gileade, filha de um dos Comandantes mais destacados; Daisy foi criada no Canadá, país vizinho de Gileade; e a terceira narradora é uma mulher mais velha, uma das Fundadoras de Gileade, com direito a estátua e a oferendas de laranjas e ovos que roçam a idolatria.
Margaret Atwood consegue manter toda a suspensão de um mundo possível que é tão ou mais plausível do que a realidade que hoje vivemos, e fá-lo com a deliciosa ironia e humor a que nos habituou: «Se queres fazer Deus rir, conta-lhe os teus planos, costumava-se dizer; se bem que, nos dias que correm, a ideia de Deus a rir está muito perto da blasfémia. Um sujeito ultrassério é o que Deus é agora.» (p. 230)
É absolutamente brilhante que se tome como protagonista uma das vilãs do livro anterior, pois a Fundadora é ninguém mais do que a execrável Tia Lydia: um pouco mais humana ou ambígua na série do que no livro, na minha perspectiva… Além de que é também ela que interpela directamente o leitor, sem qualquer pejo em revelar como a sua mente retorcida e sinuosa é capaz de tecer uma teia de aranha fatal, em que o destino das duas jovens se entretece…
É ainda muito inteligente da autora procurar responder, com esta obra, aos leitores que lhe perguntavam como é que afinal caiu o reinado de Gileade, ao mesmo tempo que tirou partido do sucesso da série e do seu impacto junto de milhares de espectadores para pegar em algumas pontas soltas, mesmo quando estas nada têm a ver com a sua obra original… Por isso, ficaremos a saber o que aconteceu, 15 anos depois, com a Bebé Nicole (este nome é tomado da série), a filha da protagonista do romance anterior, bem como o que aconteceu afinal com Offred (Defred) – este nome é um patronímio, composto pelo pronome possessivo e pelo nome do seu dono.
É quase impossível parar ao longo das 450 páginas deste livro, especialmente nas últimas 50 páginas, em que a acção se precipita e os capítulos são cada vez mais curtos, contando apenas o essencial da acção. A primeira parte do livro, contudo, forma-se num lento crescendo, em que as histórias alternadas tornam o cenário de Gileade vívido, ao mesmo tempo que se pressentem as falhas e fracturas que preparam a sua queda, laboriosa e ardilosamente tecida pela mais inesperada das personagens, cujas intenções a autora consegue indiciar muito subtilmente, sem nunca empurrar verdadeiramente o leitor. Além de que é muito difícil não sentir alguma piedade cristã pela Tia Lydia, antes uma poderosa juíza e defensora dos direitos das mulheres, conforme percebemos como foi tratada, assim como as outras mulheres, quando os E.U.A. se transformam no país ultra-religioso e patriarcal de Gileade.
Os Testamentos, com tradução de Sofia Ribeiro, surge agora publicado pela Bertrand Editora, depois de ter sido lançado internacionalmente em 2019 e é a continuação, ou a conclusão, da história de Gileade, 35 anos depois da obra anterior. A intriga da narrativa tem lugar 15 anos depois do final em aberto de A história de uma Serva, até porque a segunda temporada da série se torna completamente independente da obra de Margaret Atwood. E a autora, depois de obras menos conseguidas como O Coração é o Último a Morrer, está aqui em pleno fôlego criativo, tanto que arrecadou novamente o Booker Prize de 2019 com este livro. A narrativa alterna entre a história de três mulheres, totalmente diferentes: Agnes Jemima é uma jovem já criada no regime de Gileade, filha de um dos Comandantes mais destacados; Daisy foi criada no Canadá, país vizinho de Gileade; e a terceira narradora é uma mulher mais velha, uma das Fundadoras de Gileade, com direito a estátua e a oferendas de laranjas e ovos que roçam a idolatria.
Margaret Atwood consegue manter toda a suspensão de um mundo possível que é tão ou mais plausível do que a realidade que hoje vivemos, e fá-lo com a deliciosa ironia e humor a que nos habituou: «Se queres fazer Deus rir, conta-lhe os teus planos, costumava-se dizer; se bem que, nos dias que correm, a ideia de Deus a rir está muito perto da blasfémia. Um sujeito ultrassério é o que Deus é agora.» (p. 230)
É absolutamente brilhante que se tome como protagonista uma das vilãs do livro anterior, pois a Fundadora é ninguém mais do que a execrável Tia Lydia: um pouco mais humana ou ambígua na série do que no livro, na minha perspectiva… Além de que é também ela que interpela directamente o leitor, sem qualquer pejo em revelar como a sua mente retorcida e sinuosa é capaz de tecer uma teia de aranha fatal, em que o destino das duas jovens se entretece…
É ainda muito inteligente da autora procurar responder, com esta obra, aos leitores que lhe perguntavam como é que afinal caiu o reinado de Gileade, ao mesmo tempo que tirou partido do sucesso da série e do seu impacto junto de milhares de espectadores para pegar em algumas pontas soltas, mesmo quando estas nada têm a ver com a sua obra original… Por isso, ficaremos a saber o que aconteceu, 15 anos depois, com a Bebé Nicole (este nome é tomado da série), a filha da protagonista do romance anterior, bem como o que aconteceu afinal com Offred (Defred) – este nome é um patronímio, composto pelo pronome possessivo e pelo nome do seu dono.
É quase impossível parar ao longo das 450 páginas deste livro, especialmente nas últimas 50 páginas, em que a acção se precipita e os capítulos são cada vez mais curtos, contando apenas o essencial da acção. A primeira parte do livro, contudo, forma-se num lento crescendo, em que as histórias alternadas tornam o cenário de Gileade vívido, ao mesmo tempo que se pressentem as falhas e fracturas que preparam a sua queda, laboriosa e ardilosamente tecida pela mais inesperada das personagens, cujas intenções a autora consegue indiciar muito subtilmente, sem nunca empurrar verdadeiramente o leitor. Além de que é muito difícil não sentir alguma piedade cristã pela Tia Lydia, antes uma poderosa juíza e defensora dos direitos das mulheres, conforme percebemos como foi tratada, assim como as outras mulheres, quando os E.U.A. se transformam no país ultra-religioso e patriarcal de Gileade.
«Ficarias espantado ao perceber a rapidez com que a mente fica entorpecida na ausência de outras pessoas. Uma pessoa sozinha não é uma pessoa completa: nós existimos na relação com os outros. Eu era uma pessoa: arriscava-me a tornar-me pessoa nenhuma.» Margaret Atwood, Os Testamentos, pág. 165
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